domingo, 26 de julho de 2009

Um quadro da vida lisboeta nos anos vinte - JORGE SAN-BASILIO - Um sambrasense desconhecido


J. C. Vilhena Mesquita

Quando há tempos atrás um antigo aluno me solicitou que escrevesse algo sobre a cultura sambrasense pensei imediatamente que deveria evitar nomes consagrados como Bernardo de Passos, José Dias Sancho ou Estanco Louro. Estive indeciso entre o poeta João Braz Machado, o jornalista Jorge San Basílio ou um dos membros da ilustre família Passos: a escultora Rosalina, o escritor Boaventura ou o professor Virgílio.
Dadas as minhas afinidades com a imprensa escolhi a figura mais apagada daquelas que acabo de citar: o jornalista Jorge Máximo de Sousa Basílio.
Foi efectivamente um homem singular, mas obscuro, que a vida dotou de fracos recursos, sacrificando-lhe a existência numa penosa luta da qual sairia ingloriamente derrotado. Nasceu em S. Brás de Alportel a 4 de Julho de 1896, no seio de uma família modesta que, vendo-lhe concluída a instrução primária, o empregou como praticante de farmácia. A sua educação integra-se nos princípios da religião católica e no conservadorismo do regime monárquico. E quando o João Rosa Beatriz aclamava a República o nosso aprendiz de Botica fazia versos e escrevia cartas de amor às moçoilas bem trajadas. Em breve percebeu que a democracia na freguesia não ia tão longe. As herdeiras dos negociantes da cortiça, cuja fortuna fazia inveja por todo o concelho, não estavam destinadas a qualquer simplório lá do burgo.
A necessidade de afirmação do jovem Basílio, a sua vocação para as letras e a amizade do patrão – o farmacêutico Agostinho Mora Faria – explicam o facto de com apenas 16 anos vir a público como director de um semanário local intitulado «O Algarvio», cuja fundação data de 17-3-1912. Um mês depois os mentores da aventura jornalística aperceberam-se de que o rapaz era menor, substituindo-o no cargo de director pelo seu patrão, na verdade o alter ego da iniciativa e o instilador do carácter venenoso e polemicista das suas colunas. A sua origem prende-se com o facto em 6 de Janeiro desse ano os republicanos, do Partido Democrático de Afonso Costa, haverem fundado o semanário «Ecos do Sul», sob o patrocínio de Manoel Enrique Frade e da batuta do Dr. José Baptista Gomes e do prestigiado novelista Boaventura Passos.
A reacção católica e monárquica, temerosa das perseguições e excessos que lhe poderiam advir do novo regime, utilizou a humildade de alguns jovens talentos – como Jorge S. Basílio – para atacar, da forma mais veemente, as hostes adversárias que se acolhiam nas colunas dos «Ecos».
Os artigos com que o jovem redactor desancava no burguesismo dos novos-ricos e no agnosticismo republicano – condimentados no mais bilioso estilo polemista – evidenciavam a sua tão natural quanto rara facilidade de expressão, numa ligeireza das formas e das palavras em que espelhava a subtileza de espírito, incomparável graça e mordaz sarcasmo de um publicista de talento. Devido ao seu carácter prestável e voluntarioso, acrescido da sua prosélita defesa da causa católico-monárquica, houve logo quem nessa altura o cognominasse de Jorge São Basílio, em resultado da abreviatura com que firmava os seus artigos no jornal. A falta de pergaminhos elitistas levou-o a transformar o jocoso epíteto numa espécie de aristocrático pseudónimo – Jorge de San-Basílio, com o qual se tornaria conhecido e admirado na imprensa lisboeta.
A experiência jornalística de «O Algarvio» (que as circunstâncias da época extinguiram em 28-7-1912) revelar-se-ia, no seu espírito moço, tão fugaz quanto traumatizante. No fundo, aspirava libertar-se daquela que foi em tempos a "capital da cortiça" – responsável pelo fornecimento à indústria transformadora de 50% da produçäo nacional – a cuja prosperidade económica ficou também a dever a sua elevação a concelho em 1-7-1914.
Todavia, essa riqueza devido à sua má distribuição era mais aparente do que real. A concentração dos capitais de investimento em escasso número de famílias, cujo espírito de iniciativa era não só bastante retraído como pouco inovador, permite-nos visionar, à distância dos nossos dias quão difícil era vencer numa sociedade rural em vias de desenvolvimento urbano. Numa terra cujo comércio retalhista possuía 246 lojas, das quais 5 eram farmácias e cerca de 200 eram tavernas, facilmente se compreende que nela campeava o alcoolismo e muita pobreza envergonhada. Perante este quadro, algo negro para os olhos de hoje, logicamente não abundavam as oportunidades de trabalho no foro das letras, sobretudo no jornalismo. Outra coisa não seria de esperar numa população que em 1911 tinha um índice de analfabetismo da ordem dos 77,8% e apenas 2856 pessoas que sabiam ler. Um povo alheio à instrução e às coisas da cultura não era boa companhia para um jovem tão promissor como Jorge San-Basílio.
A solução destes casos tem sido, tanto no passado como no presente, sempre idêntica – a emigração. Umas vezes voluntária outras de circunstância ocasional (como é exemplo o serviço militar), o certo é que os jovens saíam das suas terras de origem em direcção aos centros populacionais, buscando aí melhores condições de vida e de sucesso económico. Quando assim não resultava então rumavam para o estrangeiro. A Europa, a bacia Mediterrânica e as terras de África eram ao tempo os principais pólos de atracção emigratória.
O Jorge de San-Basílio não fugiu à regra. Emigrou para Lisboa. Na capital fez de tudo um pouco e conforme as oportunidades. Trabalhou no comércio, foi empregado de escritório, escrevinhou nos periódicos e fez-se jornalista sempre que lhe sorriu a ocasião. Nos altos e baixos afogava as mágoas no álcool. Era a marca das origens.
Relacionou-se aqui e ali, com toda a espécie de gente. E em alguns casos conviveu com quem já tivera pretensões na vida. Foi amigo de poetas, artistas e escritores, políticos, anarquistas e aristocratas, tuteando com a malta da Lisboa fadista. Sobreviver, com um mínimo de dignidade e orgulho, era o seu objectivo mais imediato.
A sua prosápia, ar soberbo e superior, elegância de gesto, finura no trato e argúcia de argumento, conferiam-lhe uma presença de espírito a que os sobejos da causa monárquica se faziam rogados. Nunca encontrei justificações para o seu conservadorismo nem para a sua fidelidade monárquica. O certo é que nos anos da guerra – em que o regime republicano se faz reconhecer internacionalmente e se afirma irreversível aos olhos da Europa – o Jorge San-Basílio aparece pela primeira vez ligado à política. Fez-se sidonista.
O pesado esforço de guerra, impopularizado pela sangria dos constantes recrutamentos, trouxe à evidência a necessidade de um golpe reaccionário que estancasse o sangue derramado nos campos da Flandres. O governo não aguentou as pressões internas e caiu às mãos do germanófilo Sidónio Pais. O sebastiânico general surgiu aos olhos do povo como anti-guerrista e pretenso pacifista. A reacção católica e monárquica arvorou-o como seu estandarte. Em breve a revolução sidonista acabaria legitimada pela vontade popular. E á boca das urnas nunca um presidente obteve tão esmagadora vitória eleitoral. Entre os seus apoiantes estava o Jorge de San-Basílio, escrevendo comunicados, publicando manifestos, lançando boatos, abrindo sedes e Centros de Juventude Sidonista. Era o movimento da euforia nacional. A ditadura voltara e o povo tacanho rogava ao Presidente que se fizesse Rei !
Mas no dia 12 de Dezembro de 1918, à porta da estação do Rossio, o Presidente-Rei seria abatido a tiro. Extinguia-se, deste modo, o sonho restauracionista da facção monárquica e apagava-se mais uma quimera sebastianista, das muitas que ilustram a nossa história. Era o desalento geral. Fugiu cada um para seu lado e o movimento sidonista esfumou-se quase sem deixar rasto.
Jorge San-Basílio partiu para o Brasil onde procurou refúgio e certamente a fortuna que nunca lhe sorriu. Não era um homem de sorte. As portas não se abriram à sua passagem e a ruína não tardou. Resolveu regressar, à pressa e quase à míngua. Em Lisboa recomeçava tudo de novo: jornais, tabernas, boémia e fado. Estava no seu ambiente.
Por volta de 1919 soube da existência em Faro de um jornal cujo título era idêntico àquele que dirigira em S. Brás de Alportel. Ainda por cima arvorava-se como "órgão de propaganda autonomista", o que lhe agradava sobremaneira. Enviou logo um artigo e prometeu outros que não chegaram à estampa. Dirigiam «O Algarvio» de Faro os jovens estudantes do Liceu Jacinto da Cunha Parreira e Mário Lyster Franco. A este último ligar-se-ia dois anos mais tarde numa profunda amizade, repleta de tropelias e diabruras, mais descabeladas do que as dos repúblicos de Coimbra. Ouvi-as contar de viva voz ao Dr. Lyster Franco e de algumas delas guardo breves relatos num livro de memórias, que publiquei em 2005 com a chancela da AJEA Edições.
Sem nunca ter logrado obter uma vida desafogada, o certo é que San-Basílio desde que passou a acompanhar o jovem Mário Lyster Franco, então estudante de Direito, deixou de sentir os insultos da miséria a que envergonhadamente se sujeitara. Tornaram-se companheiros inseparáveis. Os "cobres" de um e os conhecimentos do "meio ambiente" do outro fizeram-se notar na sociedade lisboeta. De dueto passaram a terceto com a adopção do Ferreira de Castro – nessa altura ainda incipiente contista e folhetinista de jornais e revistas baratas. Aumentaram depois para quarteto com a adesão do Eduardo Frias, também ele jornalista promissor e futuro novelista de mérito. Por fim tinham já uma tertúlia com o Artur Portela, o escritor Assis Esperança, o poeta Silva Tavares, o actor Eduardo Freitas, o jornalista Agostinho Paulo, e outros mais ocasionais do que "fixos".
Fizeram coisas do arco-da-velha. Convenceram o Eduardo Frias a entrar na Jaula dos Leões, correndo o risco de ser devorado, só para vencerem uma aposta que o desgraçado desconhecia. Durante o Verão, e sem que alguém disto soubesse, venderam ao "prego" os cobertores da pensão. Inventavam as maiores mentiras à porta da Brasileira, e não raras vezes lançavam uns "ditos" tão vituperinos que deixavam o velho Gualdino Pais – o rei dos sarcastas – com ataques de riso. Outras vezes espicaçavam o orgulho de ginasta e acrobata do ainda desconhecido pintor Almada Negreiros, que quando não achava piada às gracinhas ameaçava vingar-se com os punhos. Ao poeta António Botto não poupavam gracejos, piropos e até pequenas quadras algo indecorosas, acerca das quais, aliás, viriam a pedir-lhe perdão. No lago da casa do Prof. Coelho de Carvalho – emérito Presidente da Academia das Ciências – roubavam magníficos peixes vermelhos e gordas carpas para os lautos jantares na pensão do Ferreira de Castro. Enfim, uns inocentes boémios sem outra maledicência que não fosse a simples boa disposição.
Não se lhe conheceram paixões, mas se as teve não as confessou. Nessa altura o "amor mercenário" entre os jornalistas era causa comum. Disso foi exemplo o próprio Ferreira de Castro – a quem chamavam o brasileiro, não só pelo sotaque como ainda pela forma de vestir – a quem não escapavam as mais tenras aquisições do Bairro Alto.
Parece que a única paixão do San-Basílio eram as gravatas. Perdia a cabeça quando visionasse nas montras da baixa uma gravata bonita. Os tons de azul eram a sua perdição. Podia não ter um centavo no bolso, mas arranjava logo maneira de a trazer ao pescoço. O casaco podia estar puído, as calças descosidas, o colarinho coçado e sebento, as peúgas rotas, os sapatos descambados... Mas a gravata estava sempre impecável! Era o seu cartão-de-visita – dizia ele.
Já que falamos no Ferreira de Castro importa lembrar que foi grande amigo de Jorge de San-Basílio e com ele conviveu nas redacções de alguns periódicos lisboetas. A certa altura um velho amigo de San-Basílio, o jornalista e visionário colonialista Simão de Laboreiro – grande animador da produçäo de borracha na Lunda – decidiu fundar um novo jornal monárquico (sucessor do «Tempo» que a populaça lhe saqueara e a polícia mandara encerrar) com o título «A Palavra». A intenção era idêntica à do órgão anterior: enaltecer a monarquia e atacar a república. Inspirava-se no sidonismo, a que também pertencera o órgão anterior. Mas agora dizia-se apenas monárquico e apartidário. Para redactores convida o San-Basílio o Ferreira de Castro, o Eduardo Frias e o Mário Lyster Franco. Instaladas as oficinas e a redacção entregou aos quatro a decisão de elegerem entre si os corpos directivos.
A experiência no ramo deixava ao Ferreira de Castro e ao San- Basílio a disputa do cargo principal. Porém, ao Ferreira de Castro nem se lhe admitiam dúvidas. Tinha nome feito. Fundara a revista «A Hora», publicara já um livro (Mas..., 1922), colaborava no «ABC», enfim... era ele o director e não se pensava mais no assunto. Meteu o braço no Eduardo Frias e saiu porta fora. O San-Basílio nem teve tempo para esboçar as suas legítimas pretensões. Ficou possesso de raiva.
Praguejando e esgrimindo argumentos jurou vingar-se, enquanto ao lado do Lyster Franco descia a Calçada do Duque até ao Café Itália. Sentaram-se nas mesas do fundo para que se abafassem os vitupérios. Dali a nada chega o jornalista Agostinho Paulo que perante a excitação do colega não esboçava o mínimo gesto. O tom das ameaças lançadas pelo San-Basílio ao Ferreira de Castro crescia de proporções. Sangue, dentes e pisaduras era o mínimo que se antevia no primeiro encontro.
Mas eis que a realidade apressa as fantasias do destino. O Ferreira de Castro, jogando agilmente a sua bengalinha de brasileiro, entra no Itália com o Eduardo Frias em amena cavaqueira e dirige-se ao balcão, talvez para comprar cigarros. Divisam o grupo na mesa do fundo e fazem-lhes um aceno com visível boa disposição. O San-Basílio, estava no ponto. Levanta-se num repente e dirige-se velozmente ao Ferreira de Castro. Antevia-se uma triste cena de pugilato. Mas não! Segreda-lhe qualquer coisa ao ouvido e regressa na maior calma para junta dos companheiros.
O Lyster Franco ficou atónito. Perguntou-lhe porque não consumara as suas ameaças, ao que ele respondeu em tom enraivecido: «Fui dizer ao Ferreira de Castro que lhe queria bater, que o queria esfacelar, mas que não posso levantar os braços porque tenho os sovacos rotos.»
E ninguém se riu... porque até era verdade!
No fundo, a amizade era mais forte do que as vaidades e ambições pessoais. A vida, sempre tão imprevisível, manteve-os mais ou menos unidos ou, pelo menos, em permanente contacto. Todos singraram...
Porém, da tertúlia do Café Itália o menos afortunado sempre fora o San-Basílio. Apesar de tudo parece que lhe encomendaram em 1927 um livro que teve como título "Um Problema Nacional – A questão do jogo sob os aspectos moral, económico e fiscal".
Da sua, algo penosa, "via-sacra" através dos periódicos lisboetas merece especial destaque a passagem por «A Capital», «A Situação» e «O Século». E na redacção deste último vespertino lograra conquistar o seu lugar à custa de muito talento, dedicação e esforço.
Quando nada fazia prever uma desgraça eis que ela acontece aos 36 anos de idade, num fatídico 10 de Novembro de 1932. Desiludido, solitário, deprimido pelo álcool e ardendo em febre lança-se da janela de um 4º andar, numa tentativa suicida para acabar com tão penosa existência. Não resistiu aos ferimentos. Morreu, ali, no chão húmido da calçada, um ser humano de obscura existência, cansado da solidão.
Pobre San-Basílio, humilde e apagado... permanece esquecido.

5 comentários:

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