quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O Natal algarvio e as charolas de Moncarapacho

José Carlos Vilhena Mesquita

A temática natalícia reveste-se, na sociedade ocidental, de inúmeros panejamentos, desde a música, passando pela pintura até à poesia, onde marcadamente se faz sentir a tradição e o gosto popular. No nosso país, o culto do Deus-Menino remonta aos primórdios da nacionalidade, muito embora a moda trovadoresca dos provençais haja desviado as atenções palacianas para os assuntos mais mundanos e pagãos. De qualquer modo o nosso «Cancioneiro Geral» dá-nos, ainda assim, alguns belos exemplos da temática bíblica onde, naturalmente, assume posição de destaque o nascimento de Jesus.
Será, todavia, Gil Vicente, no século XVI, quem irá fazer da simbologia natalícia um objecto vivo e cheio de significado, nos autos de Mofina Mendes e dos Quatro Tempos. Segue-se-lhe Baltasar Dias, que, no espírito da Escola Vicentina, compôs o Auto do Nascimento, abrindo, por assim dizer, as portas a uma autêntica avalanche literária, toda ela virada para os problemas inerentes à Natividade.
Desde então o Natal tem sido ponto de encontro dos vultos mais proeminentes da literatura nacional. Recordo, por exemplo, Almeida Garrett na Lírica de João Mínimo, Júlio Dinis nas Pupilas do Senhor Reitor, as Farpas, de Ramalho Ortigão, os contos de D. João da Câmara, Raul Brandão, Fialho de Almeida, e, por fim, as poesias de António Feijó, Fernando Pessoa, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, e outros poetas das gerações mais recentes.
Nos tempos que correm, a Natividade deixou de ser simplesmente um tema bíblico para se transformar num acutilante tema de contestação político-social, revoltadamente acusatório das disparidades económico-sociais existentes na sociedade moderna.
Na transição do Natal erudito para o Natal popular, podemos verificar, de região para região, sensivelmente os mesmos sentimentos. Porém, estes são extrovertidos de acordo com a sua própria cultura. Daí o Natal algarvio apresentar poucas variantes entre os seus concelhos, muito embora se note uma acentuada diferença na conservação dos costumes entre o litoral e a serra.
De qualquer modo, é nas gentes marítimas que se verifica maior devoção contrastando estas com o paganismo das aldeias do interior. Ora é na freguesia de Moncarapacho, no concelho de Olhão, que mais se acentua esse carácter profano, materializado na constituição de grupos musicais que, na maior parte dos casos não vão além de seis elementos, e aos quais o povo baptizou de «charolas» ou «charoleiros».
Efectivamente, esses grupos musicais que transportam um vistoso estandarte, calcorreiam os vários lugares da freguesia, não lhes escapando o monte mais íngreme ou o cerro mais inóspito. Em chegando à soleira das portas, o ensaiador do grupo popularmente cognominado de o «principiador» canta alegremente, em toada rápida, mas estridente, uma quadra alusiva ao Natal, sendo logo corroborado pelos restantes elementos que, em coro, repetem os versos.
A música que lhes serve de fundo é tocada com instrumentos bem populares, por vezes nada ortodoxos, mas que ilustram a alegria e o poder de improvisação deste povo. Os moradores respondem com vivas e aplausos, consolidados pela oferta de filhóses, pastéis de batata-doce, figos, pinhões e, naturalmente, regados com a boa aguardente de medronho.
As «tournées» das charolas são verdadeiramente extenuantes, pois que, geralmente, percorrem vários quilómetros desde o anoitecer até ao raiar da madrugada. Curiosamente, de ano para ano, os charoleiros vão marcando as portas, de tal forma que só cantam para aqueles que no ano anterior os receberam favoravelmente. Assim, louvam os seus «benfeitores» com orações e quadras, especialmente criadas para o efeito, sendo algumas delas bem agradáveis de ouvir. No caso dos donos da casa não contribuírem com o respectivo óbolo, então os charoleiros vingam-se entoando quadras de carácter depreciativo, por vezes insultuosas, as quais o povo chama de «chacotas».
Ilustremos o que acabamos de afirmar com alguns exemplos. Assim, aos generosos «benfeitores» são dedicados versos como estes:

Esta casa é bem-feita
E talhadinha ao pico;
À gente; que nela mora
Deus lhe dê a salvação.

Ou então:

Esta casa é bela casa
É casa de um lavrador;
A mulher é mui formosa,
A filha é uma flor.

Porém, àqueles que se recusam a abrir a porta são-lhes atiradas chacotas às vezes muito desagradáveis:

Esta casa não é casa,
É casa de algum escrivão;
Tem a mulher bexigosa,
A filha como um tição.

Ou então:

O toucinho é muito duro,
Uma faca não o corta;
Mande dar a esmolinha,
Se não faço asneira à porta.

Como é evidente, estas chacotas nem sempre acabavam bem, não sendo raros os casos em que os charoleiros batiam em desordenada retirada frente ao temperamento pouco acolhedor de algum conterrâneo mal-humorado e de caçadeira em punho. De qualquer maneira; uma noite de charolas em que não se cantassem chacotas não era noite de festa. E estas “charoladas”, diga-se de passagem, não se executavam apenas na noite de Natal, pois que se repetiam igualmente, talvez com mais calor, na noite de passagem de ano e, sobretudo, nos Reis.
Presentemente, a tradição mantêm-se, no entanto, por a sua força se manifestar mais ruidosamente nas noites do Ano Novo e dos Reis, é frequente confundir-se as charolas com o cantar das Janeiras. Contudo, os versos são bem diferentes, dependendo, obviamente, das datas a festejar.
Assim, no Natal entoavam-se cânticos tão belos quanto estes:

Cantemos, vamos cantar,
Cheios de santa alegria
Que nasceu Deus Menino,
Filho da Virgem Maria.

Nasceu p'la meia-noite
Dum tão memorável dia
O Salvador deste mundo
Filho da Virgem Maria.

Nasceu no meio da pobreza
Como reza a profecia
Descendo do céu à terra
O desejado Messias.

Nasceu em pobre arramada
Onde boi e mula havia,
Sem mantas nem cobertores,
Em uma noite tão fria.

Nas vésperas do Ano Novo, as Janeiras ressumam um sentimento mais dramático e emocionante, quando cantadas no género destas que passamos a citar:

Esta noite é de Ano Bom,
É noite de mer’cimentos,
Por ser a primeira noite
Que Jesus sofreu tormentos.

Foram eles tantos, tantos,
Que até a carne lhe cortaram;
O Menino ficou, ferido,
Pingas de sangue lhe tiraram.

Foram três pingas de sangue,
Não nas deixem apanhar:
Uma é para o povinho.
Outra é para o jantar
E das três a que sobrar
Essa é para o Deus Menino.

As Janeiras não se cantam,
Mas nós vimo-las cantar,
Pedindo anos melhorados
E longa vida gozar.

Quanto às cantigas dos Reis, vulgarmente denominadas “reisadas”, verificámos que o seu carácter é mais histórico, versando sobretudo a viagem dos três Reis Magos pelos áridos desertos:

Quem são os três cavaleiros
Que fazem sombra no mar?
São os reis do Oriente
Que a Cristo vêm adorar.

Lá das bandas do Oriente
Os três Reis Magos se partem;
Guiados por uma estrela,
Vêm ver outro Sol que nasce.

Esse Sol dizem que é Cristo,
Filho do Eterno Pai,
Que vem salvar este mundo,
Revestindo humana carne.

Aquele Herodes malvado,
Mui perverso e daninho,
Mandou ensinar aos Reis
Às avessas o caminho.

Terminadas as cantigas, os charoleiros batiam às portas na esperança de os atender um anfitrião que tivesse o menino bem «armado», isto é, que no presépio não faltassem as iguarias repartidas por vários andares numa escalada sucessiva, como se de uma Torre de Babel se tratasse.
Nas residências dos ricos lavradores não faltava, por isso, um “lauto presépio” de linguiça, presunto, carnes variadas e deliciosos pastéis de mel, filhós, bolinhos e empanadilhas de batata-doce, tudo decorado com frutos secos da região. No final, bem aquecidos e inspirados na cálida medronheira algarvia, reuniam-se as charolas em local previamente marcado, geralmente no largo da aldeia, onde encetavam concursos, renhidos combates, entusiásticas competições e despiques, tudo isto ao som instrumental das modinhas populares, às quais as moçoilas correspondiam com um pezinho de dança.
Actualmente, as tradições etnográficas vão-se paulatinamente esbatendo, em parte por falta de incentivos que garantam a sua manutenção e sobrevivência. Apesar disso, subsistem ainda alguns agrupamentos espalhados por esse Sotavento algarvio, com especial destaque para os concelhos de Loulé, Olhão e Tavira. E no domínio da literatura oral o Algarve foi, e continua a ser ainda hoje, uma fonte inesgotável do romanceiro nacional.
É costume dizer-se que no algarvio sobressai um inatismo poético. De facto, também aqui não é estranha a tradição enraizada na cultura árabe que, neste vasto amendoal, cultuou a lira de Orfeu durante séculos. Foram tempos de grande prosperidade cultural jamais igualados pelos sucessivos reinados cristãos.
Mas, desses tempos ficou-nos o exemplo e a inspiração dos poetas da estirpe de João de Deus, Bernardo de Passos, João Lúcio, Cândido Guerreiro. Emiliano da Costa, Júlio Dantas, António Aleixo e muitos outros mais recentes que, por não confiarmos na memória, nos escusamos de referir.
No entanto, e apesar dos poetas que acabamos de nomear não terem versejado ao gosto popular, à excepção de António Aleixo, não podemos deixar de remeter o leitor interessado no estudo da literatura oral e popular, para o valioso espólio recolhido pelo rev. Dr. Francisco Xavier de Ataíde Oliveira, o qual se encontra compilado na obra Romanceiro e Cancioneiro do Algarve. Através dessa notável colectânea podemos hoje comprovar quão rico foi o nosso povo nas suas danças e cantares tradicionais. Perante tão abundante fonte não será por certo difícil extrair dela agora uma Antologia de “remances” e quadras populares dedicadas ao tema da Natividade.
Relativamente ao teatro de tradição oral, obviamente convertido em verso, convém referenciar o Auto da Pratica dos Três Pastores, que remonta ao século XVII e cuja autoria é atribuída, segundo Teófilo Braga, a Frei António da Estrela. Todavia, foi o mesmíssimo Auto recolhido por Ataíde Oliveira no concelho de Loulé, onde era amiudadamente representado pelo povo local, julgando por isso que o seu autor fosse daqui proveniente.
Seja como for, a autoria desse auto, por uns atribuída a Gil Vicente, por outros a Frei António da Estrela, e, finalmente, por Ataíde Oliveira à pena de Domingos Carneiro, não deixa de ser um imbróglio, tão significativo quanto enigmático, para os estudiosos do teatro popular e da cultura portuguesa.
Efectivamente, o «Auto dos Três Pastores», que figura entre os dez mais importantes autos de Natal pertencentes ao teatro popular português, não é absolutamente o mesmo que a Dr.ª Carolina Michaelis de Vasconcelos editou há décadas atrás, pelo que urge fazer uma edição crítica da peça, procurando; tanto quanto possível, identificar-se o texto com o seu presumível autor.
O Algarve encontra-se, assim, bem representado em matéria de teatro sobre o Natal, havendo, estamos certos, outros autos por recolher nos recônditos meandros da serra algarvia. As orações, as canções, as adivinhas, as anedotas e os ditos, são um manancial inesgotável do empirismo popular. É urgente pesquisar e recolher essa riqueza, sem a qual a cultura portuguesa se acha, dia após dia, cada vez mais pobre.

(artigo publicado no Suplemento de Natal do «Diário de Notícias», edição de 25 de Dezembro de 1981)

sábado, 27 de novembro de 2010

O Órgão da Sé de Faro - do pouco que se sabe ao muito que se presume

Junto ao coro alto, na nave esquerda da Sé de Faro, encontra-se um belo e majestoso órgão, de perceptível traço joanino, de tonalidade acharoada, decorado com cenas bucólicas de inspiração chinesa, emoldurado em talha dourada, constituíndo um resplandecente conjunto artístico, sem paralelo no nosso país. Trata-se de uma peça de inegável interesse histórico e cultural, que no contexto do património musical algarvio assume lugar cimeiro e até de particular relevo no acervo artístico português.
Nesta trabalho analisam-se não só as suas origens históricas, como a autoria, os restauros e até a existência de uma peça gémea no Brasil desta notável jóia artística do património musical português.
Em torno do chamado Órgão Grande da Sé Catedral de Faro gerou-se uma questão de capital importância, que consiste, tão simplesmente, na sua origem cronológica e na consequente aquisição do mesmo por parte do cabido farense. O desconhecimento deste pormenor é, por si, suficiente para fazer desmoronar algumas das opiniões formuladas sobre o assunto e, com isso, obrigar a reformular as investigações precedentes.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Florbela Espanca no Algarve (parte II)

José Carlos Vilhena Mesquita Como já se disse, a permanência de Florbela Espanca em Quelfes não foi relevante e julgo que se desenrolou ao longo de apenas seis meses, de marasmo, sossego, solidão literária e exílio, pouco conformes ao seu natural estado de espírito. Amiúde vinha a Faro visitar o cunhado Manuel e consultar o seu médico assistente, então conhecido pelo «Doutor Índio», visto se tratar de um canarim natural de Goa, que gozava de grande fama em toda a província, especialmente no campo das doenças pulmonares, que rigorosamente lhe impunha um tratamento de repouso absoluto. Escusado será dizer que Florbela detestava ir a Faro, só porque o médico a submetia a minuciosos exames. Como, aliás, detestava Olhão por não suportar o cheiro fétido e pestilento que ressumava da Ria. Apesar disso, gostava do seu alvo casario e, especialmente, adorava ver o pôr-do-sol que, afirmava já mais ter visto espectáculo tão belo. Curiosamente, estranhava o facto de no Algarve o Sol nascer sobre o mar e pôr-se no mesmo mar sobre o qual se elevara. Tratava-se de um acontecimento raro, esquisito e que contado aos seus amigos alentejanos passaria, naturalmente, por uma ingénua balela. No entanto, existem sonetos que recordam esses momentos inesquecíveis, marchetados pela natural beleza de um sol inebriante, que empresta a este céu aquele azul extasiante que só os poetas sabem cantar, reflectido nesse mar imenso que atraiu os argonautas lusitanos para revelarem ao mundo novos mundos nunca antes navegados. Convém notar que apesar de Florbela Espanca não aceitar de ânimo leve as imposições do «Dr. Índio», o certo e que ele era a única pessoa que a compreendia, que com ela discutia os problemas da psique, confessando frustrações mútuas, discutindo literatura e revelando-se, tal como ela, um grande cultor da poesia de Verlaine. Antero de Quental. António Nobre, etc... Também o conceituado médico era um infeliz que cedo perdera a esposa, igualmente vitimada por um aborto mal curado. Quão parecidos eram seus fados! «O médico vem a casa regularmente, receita, aconselha, demora-se com certeza junto dessa doente que fala de António Nobre e de Verlaine. (...) O médico é o seu único amigo, no plano de compensação do seu processo psíquico. Ele dá nomes transfigurados e tranquilizantes da natureza dos seus males. Com ele pode falar à vontade, caracterizar a doença quando a descreve ao nível clínico. Os segredos não são precisos, porque essa história clínica e uma libertação para eles, sem lhes impor uma culpa».[1] Florbela, desesperada de nada fazer, passando os dias deitada, comendo, escrevendo, meditando, sem nunca se levantar da cama. Recomendação que o médico lhe exigira cumprimento e que ela estritamente se via compelida a executar. No entanto, apesar dessas visitas que o seu médico assistente fazia ao «ermitério de Quelfes», e não obstante o contacto que mantinha com o exterior através das cartas dirigidas ao pai, à futura madrasta, ao irmão e aos amigos, o certo é que a sua situação psíquica ultrapassava já o estado da saturação, agravando-se progressivamente aquela fatídica neurose que a arrastará para a morte nas vésperas da publicação do seu livro mais querido: Charneca em Flor. Estou tão triste e aborrecida! Tenho ódio ao Algarve. Será exactamente esse ódio, essa inconstância, essa inatingível procura da felicidade, que irá determinar a sua separação e consequentemente o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, nessa altura (1921) um considerado funcionário bancário de Vila. Nova de Portimão. Terminado o tratamento que confirmara o depauperamento físico suscitado por um aborto, invalidando assim a hipótese de doença pulmonar, Florbela escuda-se com os seus compromissos académicos e parte sozinha para Lisboa, onde conclui, com aproveitamento, o primeiro ano do curso de Direito. Matricula-se nas cadeiras do ano seguinte e regressa a Évora onde se reunirá aos seus familiares, trazendo já na ideia a publicação do seu primeiro livro. E assim, no ano seguinte, dá a público O Livro de Magoas cujo título anuncia já o seu temperamento, o espírito magoado de uma mulher que sofre de uma pluralidade interior: «De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...! De ter vivido e não ter sido Eu». O espectro da fama, a ansiedade de ser conhecida, admirada, respeitada, o desejo de poder impressionar com o seu talento os amigos e os desconhecidos, de acelerar a inveja dos seus inimigos, são tudo sintomas de uma estreante autora que sonha com as palavras do pai: «Serás uma Espanca que há-de ficar». Desinteressada pelo passado, move uma acção de divórcio contra o seu marido, fundamentando-se no abandono de que havia sido vítima durante três anos. Servindo-se do testemunho de um farmacêutico amigo e de um oficial de diligências do próprio tribunal, consegue que na cidade de Évora, a 30 de Abril de 1921, fosse notificado o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, pacatamente fixado na piscatória vila de Portimão, regaladamente livre dessa mulher, dessa diva que ele mimoseou com todo o sacrifício que as suas parcas possibilidades lhe proporcionaram. A irmã do marido, a professora Doroteia Moutinho, permaneceu em Quelfes, desiludida com a cunhada mas, ao mesmo tempo, admirando o seu talento com aquela piedade de quem sente pelos doentes a ternura de um perdão eterno. Tempos depois a bondosa Doroteia casaria com um abastado proprietário rural, muito conhecido no meio, José de Sousa Guita, de seu nome, que por curiosidade era o dono da escola e da casa onde habitara, e onde se albergara a insatisfeita poetisa de Vila Viçosa. Infelizmente, já todos desapareceram, tanto os familiares de Florbela como os de seu primeiro marido, restando apenas a geração que se lhe seguiu, agora muito dispersa por Lisboa, Évora, Portimão e Beja. Florbela Espanca casaria mais duas vezes. Primeiro no Porto, com António José Marques Guimarães, de 26 anos, ao tempo alferes de Artilharia da Guarda Nacional Republicana. Cerca de dois anos depois, divorcia-se daquele militar para se consorciar, logo a seguir, com o médico Mário Pereira Lage, de 32 anos, com quem permaneceu até à morte. No dia 7 de Dezembro de 1930, às 22 horas, suicidou-se na sua residência da Rua 1.º de Dezembro, em Matosinhos. No dia imediato, data do seu aniversário, descia à terra um corpo de 36 anos, cuja existência atormentada havia sido dilacerantemente sacrificada ao génio narcotizante de uma lírica mística e pagã, eivada de um certo narcisismo insatisfeito. Para terminar, gostaríamos de aqui, nestas mesmas colunas que em Janeiro de 1931 pela voz de António Ferro, logo corroborada por Lopes de Mendonça, D.ª Cândida Aires, Bourbon e Menezes, e, por fim D. Fernanda de Castro, defenderam, sustentaram e venceram a ideia de em sua memória se levantar um monumento; se pugnasse hoje, meio século volvido, pela incrustação de uma placa comemorativa da sua presença naquela modesta casa de Quelfes, onde Florbela Espanca receou enfrentar o mesmo espectro que 12 anos mais tarde ceifaria um dos mais notáveis talentos poéticos deste século e de toda a literatura portuguesa. [1] Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, a Vida e a Obra, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Arcádia, 1979, p. 68.
(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 6 de Agosto de 1983)

sábado, 23 de outubro de 2010

Florbela Espanca no Algarve (parte I)

J. C. Vilhena Mesquita A fugaz passagem de Florbela Espanca pelo Algarve tem sido pouco estudada pelos seus biógrafos que, naturalmente, se têm mostrado muito mais atentos aos factos que marcaram directamente a sua amarga existência. Porém, permitam-me que discorde da macrobiografia e que modestamente me embrenhe na obscuridade dos episódios pouco conhecidos, «a priori» irrelevantes, mas que teremos de admitir, constituem os microfactos, na maioria dos casos, indispensáveis e urgentes para o desvelamento dos chamados «acontecimentos notáveis». Pois, na vida de Florbela d'A1ma da Conceição Espanca, verificam-se muitos «pontos negros», que apenas se afloram sem que, contudo, se penetre no cerne das suas origens, na essência da sua constituição. Ora, a permanência daquela poetisa em terras do Algarve não tem constituído, ainda, um objecto de investigação para os ensaístas da nossa literatura ou para os historiadores da nossa cultura, talvez porque a sua estada foi efémera, transitória e indelével. A razão da transferência daquela poetisa alentejana para a pacata Aldeia de Quelfes, no concelho de Olhão, prende-se com questões de saúde e data da Primavera-Verão de 1918. Nessa altura, Florbela já campeava nos jornais, mormente no «Notícias de Évora», creditando-se como uma jovem poetisa de rara sensibilidade, espelhando desde logo uma inspiração transcendente e mística, de uma beleza algo amarga. Vinha atraída pelo clima ameno, de ares puros e grande calmia, que então se vivia na orla marítima desta província. A sua doença aparentava sintomas de tuberculose e a prudência aconselhava-a a fugir dos ares poluídos e da vida atribulada, que experimentara como estudante do 1.º ano de Direito da Universidade de Lisboa. Nessa época Florbela era já uma mulher feita. Tinha 24 anos de idade e era casada com Alberto de Jesus Silva Moutinho, mais velho do que ela um ano. A sua vida conjugal prolongava-se desde há cinco anos e um aborto, associado a um estado de espírito verdadeiramente inconstante, degenerara num esgotamento físico-psíquico muito próximo dos sintomas da tuberculose. Restava-lhe escolher o local mais apropriado ao seu completo restabelecimento. Escolheu Quelfes. Porque? É simples! A zona da beira-serra algarvia que se estende desde os Vilarinhos, passando por Alportel até Moncarapacho, era muito aconselhada pelos médicos havendo inclusivamente a salientar a existência de uma sanatório no lugar de Almargens, no concelho de S. Brás de Alportel, originariamente destinado ao tratamento dos trabalhadores dos caminhos-de-ferro. Além disso, o pai de Florbela, o conhecido antiquário João Maria Espanca, era muito bem aceite por estas bandas, que frequentemente visitava na ânsia de encontrar e adquirir objectos de arte de comprovado valor e antiguidade. Portanto, tudo leva a crer que conhecendo bem a região e sabendo por experiência própria o quanto ela era benéfica no tratamento de tais doenças, tenha aconselhado a filha a vir para o Algarve, em vez de demandar as terras altas do Norte. Acrescente-se a tudo isto, o facto de em Faro residir o irmão de seu marido, o Manuel, de que era grande amiga, e cujo fraternal afecto conservou até à morte. Nada nos repugna afirmar que a seu alvitre resida mais uma das razões que motivaram a sua permanência nesta província. Mas, nessa altura, atendendo à amizade que a unia ao cunhado, porque não escolheu antes a cidade de Faro? Muito naturalmente porque nesta cidade os ares não seriam tão propícios à sua doença quanto os de Quelfes, que se situa na zona do chamado Barrocal, área morfologicamente intermédia à serra, e ao litoral. Mas, nesse caso, porquê Quelfes e não Moncarapacho, por exemplo? Ora aí é que reside a principal questão! E a explicação foi-nos revelada pelo Dr. Antero Nobre, grande investigador da cultura e da história olhanense, que, não há muito tempo, lançou de balde o alvitre de na casa que Florbela Espanca habitou, que felizmente ainda existe, se colocasse uma lápide, assinalando, com inteira justiça, a veracidade do facto. Infelizmente, o dono do imóvel recusou-se a permitir tal «sacrilégio», talvez com medo que assim se impedisse a futura hipótese de naquele lugar vir a construir um prédio novo. E a ideia morreu sem ter qualquer seguimento, apesar de mesmo assim se ter iniciado uma subscrição pública para comportar as despesas de elaboração da referida placa comemorativa. Enfim…, coisas que só acontecem no Algarve. Mas estava eu dizendo que a explicação da sua fixação em Quelfes reside no facto de aí se encontrar colocada como professora primária uma irmã solteira do marido, que se chamava Doroteia, e que partilhava a residência com uma amiga. Logicamente que ela era a pessoa mais indicada para os ajudar pois residia no local apropriado ao tratamento de Florbela e, além disso, tinha conhecimentos suficientes da vila de Olhão que permitissem ao irmão ganhar a vida como explicador de matérias liceais, trabalho esse que ele já havia desenvolvido nos concelhos de Redondo e de Évora. Inclusivamente era esse o único ganha-pão do casal, muito embora o pai de Florbela já patrocinasse os estudos da filha contribuindo com uma mesada que, associada aos rendimentos do Alberto Moutinho, era substancialmente capaz de permitir a sobrevivência de ambos. Portanto, atendendo a que Olhão Se encontrava a dois quilómetros da casa da irmã e que aí existia um colégio onde podia exercer a sua actividade de explicador, o Alberto Moutinho concluiu, naturalmente, que não valia a pena pensar duas vezes. E assim aconteceu. Fixaram-se em Quelfes, muito provavelmente desde Março de 1918 até Setembro desse mesmo ano. Uma efémera estada, portanto. Contudo, foi suficiente para que Florbela se restabelecesse dos achaques provocados pelo aborto e pudesse, inclusivamente, dedicar-se à meditação poética, à produção de alguns sonetos, que mais tarde foram reunidos em livro. Curioso será notar que a amenidade do clima algarvio e a placidez da aldeia de Quelfes vão estar na base da separação do casal e no seu consequente divórcio. Assim, enquanto o marido, mais calmo e sensato, preferia a segurança e a tranquilidade da província, situação que mais se coadunava com o seu espírito modesto e resignado, capaz de viver com as maiores dificuldades, sem que isso constituísse uma verdadeira desgraça; Florbela, ao invés, preferia o luxo, o convívio com gente culta, mais de acordo com o seu feitio e com as suas carências afectivas. Florbela amava a cidade, o movimento e o rebuliço, a sua roda de amigos e, especialmente, sentia uma vontade intrínseca de ser adorada, na expressão mais sublime do termo. O marido não podia regular-se pelo mesmo diapasão. Daí a sua incompatibilidade. Efectivamente, não se pode dizer que Florbela Espanca tenha sido feliz nesta sua torturante permanência em Quelfes. Assim se comprova através de breves passagens das suas cartas, datadas de 19 de Abril, 18 de Maio e de 5 de Junho, justamente compiladas em livro por Azinhal Abelho e José Emídio Amado, Cartas de Florbela Espanca (1949), nas quais faz transparecer a sua desilusão, o seu desencanto a sua, ao fim e ao cabo, permanente frustração. «Estou farta disto tudo. Se me vejo daqui para fora não acredito, mas o raio do médico diz que se me vou embora que não duro seis meses e eu tenho medo.» Mas ainda mais saturante e dramática poderá considerar-se esta passagem: «Não me digas que fico cá até ao fim da vida. Era melhor dar um tiro nos miolos.» A solidão da aldeia igualmente atormentava o seu espírito sequioso de comunicação, de carinho, de afecto, de admiração, de fama…, com a qual sempre sonhou, mas que só veio a obter depois da morte. «Não imaginas como eu passo os dias aborrecida. Não há ninguém com quem a gente possa conversar.» Tal como muito bem observa Agustina Bessa Luís, «todas as suas perturbações, a emoção exaltada, o esgotamento, as insónias, a intolerância aos alimentos, às pessoas, ao género de vida, a tuberculose encoberta, as dores de cabeça, as infecções, toda a espécie de repugnâncias físicas e morais, anunciam a instalação da neurose. Provavelmente com o desgosto sexual aparece o grande motivo desentendimento no matrimónio.»[1] No entanto, é errado pensar-se que ambos viviam numa situação económica matizada por privações insustentáveis e adversas ao seu espírito, já que o contrário se comprova através de uma carta, datada de Junho de 1918, na qual se verifica que o Alberto Moutinho ganhava cerca de 45$00 mensais como explicador, e que, acrescido do ordenado da irmã e da mesada que recebia do pai, dava perfeitamente para levarem uma vida desafogada. (artigo publicado no «Diário de Notícias» em 5 de Agosto de 1983) [1] Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, a Vida e a Obra, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Arcádia, 1979, p. 46.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Um presépio napolitano do século XVIII na aldeia de Moncarapacho


José Carlos Vilhena Mesquita

Já em tempos aqui falámos na existência dum magnífico museu na aldeia de Moncarapacho, cujas características são verdadeiramente peculiares e facilmente constatáveis na sua própria organização empírico-popular, a contrastar com o valor e até a raridade de algumas das peças ali expostas.
O singelo edifício do museu, acoplado à seiscentista capela de Santo Cristo, compõe-se apenas de dois pisos, que se resumem unicamente a duas salas. Na primeira, amontoam-se dezenas de peças arqueológicas, pertencentes à valiosa colecção do Dr. José Fernandes Mascarenhas, a maioria das quais a necessitarem de um estudo urgente e profundo. Neste âmbito julgamos que seria bastante profícua a colaboração do Gabinete de Arqueologia da Universidade do Algarve, cuja acção científica se tem vindo a disseminar por toda a região, desde o litoral à serra. No segundo piso, reúne-se a colecção de arte sacra do padre Isidoro Domingos da Silva, com algumas preciosidades dignas de relevo, misturadas com outras peças menos importantes, num eclectismo verdadeiramente encantador, nada chocante, resplandecente de luz e de cor.
Mas, de entre todo o seu recheio, assume particular interesse um valioso presépio napolitano, datado da segunda metade do século XVIII, composto por 40 figuras policromas, duma graciosidade espantosa e a que não faltam os mais subtis pormenores escultóricos, que só o engenho e a arte dos barristas italianos seria capaz de realizar.

A origem dos presépios

Todos sabemos o que são presépios. Contudo importará certamente aos mais curiosos conhecer as origens dessas representações artístico-religiosas da Natividade. E para satisfazer essa curiosidade direi que a sua origem é de insondável memória, se bem que seja tradição fazê-la remontar ao século XIII, mais precisamente a 1224, altura em que S. Francisco de Assis fez representar ao vivo, e depois em barro, no eremitério de Gréccio nos Montes Sabinos, o nascimento de Cristo. Nessa lúgubre gruta o fundador da Ordem Franciscana ergueu junto ao presépio um altar sobre o qual rezou a missa da meia-noite. A tradição sacralizou-se e nesse local se edificaria um templo a S. Francisco em cujo altar figura um dos mais célebres quadros de Giotto no qual se apresenta o «Patriarca de Assis» precisamente a construir um presépio. De então para cá os templos católicos, pelo mundo espalhados, passaram a armar os seus presépios na quadra natalícia, em homenagem ao seu tradicional criador.
Com o decorrer dos séculos novos matizes se introduziram nos presépios, irradiando do seu centro religioso todo um espaço cénico verdadeiramente profano, mas ao mesmo tempo muito mais realista, que lhe emprestaria a animação e a alegria de algo que supostamente se movimenta, tem vida e está vivo. Para esse engrandecimento e persistente diversidade muito contribuíram os espanhóis, italianos, portugueses e austríacos, sendo de realçar na Península as escolas de Múrcia e de Mafra, que pela mão de Salzillo e de Machado de Castro se tomaram mundialmente célebres.

A escola napolitana

Mas foram, sem sombra para dúvidas, os Napolitanos os verdadeiros e mais exímios coroclastas da grande arte escultórica de Setecentos. A eles se deve a transição da arte sacra renascentista para o realismo expressionista da arte popular, perseguidora do grotesco e do satírico como significado natural da vida, contra a opressão da aristocracia e a fanatização da Igreja. Foram eles que nos meados do século XVII impulsionaram uma nova arte (e nunca uma arte menor) ao dotarem as antigas figuras, inertes e inexpressivas, de articulações móveis que permitiam variar as posições e criar uma nova dinâmica ao estatismo da própria composição artística. Inclusivamente as figuras que eram arquitectadas em arame, sobre cujas extremidades se fixavam os braços, as pernas e a cabeça esculpida em madeira, passaram a crescer em proporção, atingindo 35 a 45 centímetros de altura, o que as tornava verdadeiramente gigantescas quando comparadas com as antigas miniaturas das igrejas. Por conseguinte, será o século XVIII a verdadeira «era dos presépios».
Apoiados e, fundamentalmente, patrocinados pelo monarca Carlos de Bourbon, os artistas napolitanos puderam aperfeiçoar e intensificar a produção de presépios. Todavia, um ex-artista e grande admirador desta arte, o padre Rocco (membro da corte e conselheiro do rei), salientar-se-ia como o grande impulsionador do fabrico e construção de presépios para as igrejas e palácios napolitanos. Deste modo, rapidamente se desenvolveu o número de coroclastas a ponto de os historiadores italianos chegarem mesmo a qualificar os presépios de a loucura colectiva de Nápoles do século XVIII.

O realismo das figuras

Em breve o significado evangélico do presépio seria ultrapassado pelo carácter profano da maioria das figuras, que passaram a identificar-se muito mais com a vida quotidiana de Nápoles. Por outro lado, a cena da natividade desenrola-se à luz do dia e não à noite, enquanto a singela gruta de Belém passava a ser representada por um templo romano em ruínas, rodeado por rochedos e tojos, marcadamente influenciada pelo estilo neoclássico que então despontava na Europa. À sua volta fervilhava o quotidiano napolitano, ostentando os reluzentes trajes da época, a cuja beleza se prendem facilmente os olhos do observador atento e sensível ao dinamismo estático dos vendedores de frutas e legumes, dos músicos, dos saltimbancos, dos pastores, das crianças que correm atrás dos animais, dos camponeses em trajes domingueiros, do açougueiro, da padeira e sobretudo dos locais mais típicos da cidade, nomeadamente a praça central, a taberna, a mercearia, o albergue, o fontanário, as casas dos camponeses, a Câmara Municipal, a cadeia, etc... Toda esta beleza, materializada até ao mais ínfimo pormenor na captação do real, define a verdadeira arte popular do século XVIII, não só na Itália como praticamente em toda a Europa do Sul. No caso napolitano, expoente máximo da arte do presépio a obtenção de toda esta inacreditável perfeição só foi possível graças ao trabalho conjunto de pintores e escultores, alfaiates, artesãos e até de arquitectos.

Autores célebres

A maioria destes presépios estão assinados pelos seus autores que à sua volta chegaram mesmo a formar pequenas escolas de oleiros. Deste modo ficaram eternamente lembrados os nomes de Domenico António Vaccaro, Matteo e Felice Bottiglieri, Nicola Domma, Giuseppe Cappiellon, Francesco Celebrano, Lorenzo Mosca, Salvatori di Franco, Giacomo Viva, Giuseppe Gori, os irmãos, Trilocco, Francesco Gallo, Tommaso Schettino, os irmãos Gennaro, Giovan Battista Polidoro e principalmente Giuseppe Sammartino, que se notabilizou como o mais famoso e apreciado escultor do século XVIII.
Existe, presentemente, em Nápoles a mais completa e valiosa colecção particular de presépios do mundo reunida no palácio da família Catello. Mas, os mais belos e no seu conjunto os mais numerosos presépios napolitanos encontram-se depositados no Museu Nazional di S. Martino em Nápoles. Não obstante, em Roma, encontra-se a Associazione Italiana Amici del Presepio, onde se reúne um centro mundial de documentação presepística, um riquíssimo arquivo internacional de fotografia e ainda se publica a revista Il Presépio. Por conseguinte, são estas as instituições que ao presente se encontram vocacionadas para a estudo e conservação dos presépios napolitanos. Suponho, contudo, que a existência do interessante exemplar de Moncarapacho lhes deverá ser desconhecida, apesar de o mesmo haver sido inventariado sob a classificação de interesse público.

Presépio napolitano em Moncarapacho

A presença de um presépio napolitano no Museu Paroquial de Moncarapacho deve-se unica e exclusivamente à persistente e total dedicação que o seu fundador padre Isidoro Domingos da Silva tem votado à conservação do património artístico da sua região. Compõe-se de 45 peças, 11 das quais são representações animalistas embora destas apenas seis sejam verdadeiramente napolitanas. Pertenceu à família Júdice Fialho, grande impulsionadora da indústria conserveira algarvia, que em consequência das partilhas do seu património acabou por ser doado ao Asilo de Santa Isabel em Faro. Aí, durante largos anos na quadra natalícia foi exposto ao público, mas o desconhecimento do valor das próprias peças permitiu que o desleixo originasse progressiva e irremediavelmente a sua desagregação e infelizmente a destruição de algumas figuras.
Nestas circunstâncias o viria a encontrar o padre Isidoro Domingos da Silva, alertado pela notícia de que aquela instituição se preparava para vender o seu majestoso presépio. Ajustada a transacção, que orçou em pouco mais de uma dezena de contos, depressa aquele sacerdote enviava as corroídas figuras, que ainda restavam, para o Museu de Arte Antiga, a fim de serem restauradas nas oficinas José de Figueiredo. Os trabalhos de restauro duraram dois anos e obrigaram a um pormenorizado estudo das suas figuras, que foram comparadas com outras da mesma época e estilo artístico, nomeadamente com as do deslumbrante presépio da Cartucha de San Martino, em Nápoles. O Dr. Bairrão Oleiro, que se encarregou de mandar inventariar o presépio, datou-o da segunda metade do século XVIII e atribuiu a sua autoria aos escultores italianos Nicola, Saverio Vassallo ou Giuseppe Sammartino. Pessoalmente julgo que se deverá atribuir a autoria a este último por ser o mais famoso e o que melhor atelier possuía na época.
Todas as figuras têm cabeça de terracota e os membros superiores e inferiores de madeira policromada. Das quarenta figuras de que se dá noticia no «Diário de Governo», III Série, n.º 55 de 6/3/1975, constam catorze camponeses e seis camponesas, quatro homens (não identificados), cinco negros, um mendigo, quatro pastores, quatro ovelhas e dois cavalos. Esta discriminação parece-nos bastante incompleta, pois que alguns dos camponeses pela riqueza das suas vestes parecem identificar-se com ricos agrários, muito distantes dos simples pastorelli e dos sumptuosos Reis Magos, que aqui são identificados apenas como «homens». As figuras de negros, à excepção de um rico mercador árabe, representam os escravos (por isso são mais pequenas, cerca de 26 cm de altura) e, por incrível que pareça, da Sagrada Família nem ao menos se dignaram chamá-la pelo seu nome bíblico. Em suma, para ficarmos apenas por aqui, no inventário do presépio não se procurou identificar os seus componentes, o que me parece inadmissível visto não ser tarefa muito difícil de executar. Os trabalhos de restauro, que incidiram fundamentalmente sobre as roupagens, as mãos e os pés dos bonecos, foram graciosamente prestados pela citada instituição, gesto esse que salientamos contagiados pela alegria com que sempre a ele se refere o benemérito padre Isidoro Domingos da Silva. Foi um acto da maior justiça prestado a um humilde clérigo que toda a vida lutou para erigir um museu na sua paróquia. Logrou realizar esse sonho ao cabo de trinta anos de insondáveis canseiras e privações, muitas vezes pedindo dinheiro emprestado quando as suas economias já se haviam esgotado.
Os Moncarapachenses, que ao seu intrépido e incansável prior muitas obras de beneficência ficam devendo, não tiveram ainda o bom senso de demonstrar a sua gratidão promovendo-lhe uma homenagem que, entre outras iniciativas, culminasse com a atribuição do seu nome ao Museu Paroquial. Seria um acto do mais elementar reconhecimento e gratidão, que só não se concretizou pelo facto de no Algarve o “progresso” turístico e o materialismo quotidiano haverem empedernido o coração dos seus naturais e ofuscado os seus olhos com o fulvo matiz da ganância, da inveja e da ignorância.
Os homens de valor no Algarve nada valem. E, ainda que daqui saiam e à sua custa se façam gente de algo, raros são os que se entristecem de nascer algarvios.
Estranha sina... desditosa gente.

Publicado no «Diário de Notícias», supl. de Natal, 21-12-1984

quarta-feira, 31 de março de 2010

A Páscoa no Algarve

José Carlos Vilhena Mesquita

Desenraizado das tradições histórico-etnográficas, o Algarve bem se pode queixar do seu turismo estereotipado, que paulatinamente lhe foi esbatendo a riqueza do seu folclore e a fé das suas seculares manifestações religiosas. Deste modo se foram perdendo muitas procissões e romarias, algumas até de carácter profano, que hoje não só lhe dariam uma certa homogeneidade cultural, como ainda por certo constituiriam um forte atractivo turístico na região. E não se pense que o fraco espírito religioso dos Algarvios é hoje o mesmo dos seus antepassados, pois que o contrario se atesta pelas largas dezenas de templos que cobrem a orla litoral. Aliás, outra coisa não seria de esperar numa região totalmente virada para o mar, histórica e economicamente dependente das fainas marítimas, que desde sempre foram temerariamente exercidas por frágeis embarcações a remos ou à vela, de entre as quais se destaca o tradicional e famoso caíque de Olhão, que após a revolta contra os Franceses atravessou em 1808 o Atlântico e para dar tão heróica boa-nova à Família Real, então refugiada no Brasil.
As próprias armações do atum, que nesta província tornaram universalmente conhecidas e apreciadas as nossas conservas (já hoje inexistentes devido ao afastamento dos tunídeos da costa algarvia), foram em tempos alvo de manifestações religiosas interessantíssimas, às quais quase sempre não era estranha a presença do Bispo da diocese. Certas cidades como Tavira, Faro, Portimão e Lagos tiveram em tempos várias procissões anuais que atraíam às sedes dos concelhos muitos milhares de fiéis, algumas das quais espontaneamente organizavam feiras, tudo contribuindo em larga escala para o engrandecimento do comércio local. Mas o progresso foi delapidando as tradições e a religiosidade do povo (materializado por outros ideais talvez menos consentâneos à nossa gente), encerrando-se as igrejas, votando-as ao abandono e à ruína, ao mesmo tempo que as manifestações de âmbito nacional perdiam igualmente o seu carácter conglomerante de outrora.

Do jejum ao baile no terreno das igrejas

Nesta ordem de ideias se encontra a festa principal da Igreja, a Páscoa, que, apesar de nalgumas regiões do País assumir características muito especiais, como é exemplo o Minho, nem por isso se pode afirmar que no Algarve elas eram desprovidas daquele brilho, compenetradamente triste e desolador, da Semana Santa, com todas as suas procissões e rituais religiosos que há séculos lhe andam ligados.
No Algarve a festa pascal apresenta algumas diferenças etnográficas entre a serra e o litoral. No interior, onde as populações rurais viviam com maior dificuldade, e muitas vezes sem o apoio religioso minimamente indispensável, apenas prevalecia a prática do jejum nos dias santificados e a realização de pequenos bailes no terreiro da igreja no próprio Domingo de Páscoa. Nesse dia comia-se um pouco melhor, geralmente uma peça de carne de porco, carneiro ou, no pior dos casos, um frango; os doces só se faziam nas casas abastadas e resumiam-se à tradicional doçaria de amêndoa e figo. No litoral, a tradição era bastante mais rica. Faziam-se procissões na Semana Santa, pagavam-se as promessas, guardava-se jejum nos dias próprios, faziam-se oferendas, etc... No Domingo de Páscoa davam-se grandes festas nas casas ricas dos comerciantes e industriais, comia-se borrego ou carneiro assado, reunia-se a família e realizavam-se alguns jogos tradicionais. Em matéria de doçaria faziam-se os folares de mel, bolos finos de amêndoa delicadamente decorados, bebiam-se vinhos generosos das regiões de Lagos e Tavira, para além dos acostumados bailes nas sociedades recreativas e clubes populares.

A procissão das Tochas

No âmbito destas tradições, profundamente religiosas, assume particular destaque a Procissão das Tochas realizada, no dia de Páscoa, em S, Brás de Alportel, a qual tem na sua essência a comemoração de um dos mais heróicos acontecimentos históricos do Algarve: a expulsão pela confraria dos moços solteiros das tropas inglesas comandadas pelo duque de Essex, que em Julho de 1596 saquearam a cidade de Faro e o seu termo. A procissão percorre as ruas da vila enquanto o povo acompanhante grita em uníssono: «Aleluia. Cristo ressuscitou como disse, aleluia, aleluia, aleluia». No final, as “tochas”, que consistem em simples hastes coloridamente decoradas com flores, são prostradas na calçada formando um vasto tapete florido sobre o qual o sacerdote caminha ao mesmo tempo que empunha o Santíssimo. Em seguida, o prior celebra uma missa campal à qual assistem milhares de fiéis, na mais completa devoção. Ultimamente tem-se realizado um concurso para apuramento das mais belas tochas da procissão, o que se acentua apenas por constituir uma estratégia para a conservação do património etnográfico daquela bela e acolhedora vila serrana.
Em suma, as tradições da Páscoa Algarvia sempre foram ténues e hoje são quase inexistentes, à parte uma ou outra procissão da Semana Santa, que ainda se realiza em Faro, e a tão celebrada Procissão das Tochas, em S. Brás de Alportel, à qual nos referimos já nestas colunas.

(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 22-04-1984)

segunda-feira, 15 de março de 2010

As origens e desenvolvimento do Ensino em Faro

José Carlos Vilhena Mesquita

O ensino em Portugal possuiu, desde as suas mais remotas origens, uma inspiração religiosa a que não era estranho o acesso que, desse modo, se veiculava para a vida eclesiástica. São por demais conhecidas as escolas monásticas ou conventuais da Idade Média, que em Alcobaça, Coimbra e Lisboa, tiveram os seus expoentes de prolixidade e sucesso, formando um corpo de magistrados, legisladores e juristas, responsáveis pela construção do Estado de direito que, paulatinamente, se ergueu no tempo e disseminou os seus valores culturais e linguísticos pelos quatros cantos do globo. A fundação dos Estudos Gerais, em que se enraizou o ensino universitário, surgiu como reflexo da necessidade de aumentar os conhecimentos e a preparação cívica daqueles que, não pertencendo à classe religiosa, se ofereciam para servir na administração pública e, principalmente, na defesa dos direitos que aos cidadãos consignavam as Ordenações do Reino.
Não restam hoje quaisquer dúvidas, nem oferece contestação afirmar-se que são intrinsecamente religiosas as origens do ensino em Portugal. E se nos primeiros tempos cabia aos Dominicanos, Beneditinos, Agostinianos e a outras ordens religiosas a missão de educar e de preparar tanto os novos quadros da Igreja como os do próprio aparelho de Estado, o certo é que a partir de meados do século XVI esse papel passou, quase exclusivamente, para as mãos dos Jesuítas. O ensino tornara-se praticamente monopólio dos inacianos, que para seu benefício e serviço fundaram a Universidade de Évora no local e edifício que ainda hoje, reabilitado e despojado dos vícios de outrora, serve os actuais objectivos de formar as gerações vindouras no espírito científico e na liberdade crítica.
O ponto de viragem estabeleceu-se no consulado do Marquês de Pombal, cuja reforma do ensino constitui a pedra basilar do nosso actual sistema. A expulsão dos Jesuítas obrigou aquele estadista a repensar toda a organização do processo educativo operando, a partir de 1759, uma reforma que tinha algumas parecenças com a administração pública, já que atribuía a todas as cidades e principais vilas do reino uma escola de «aprender a ler, escrever e contar». E neste âmbito não fez discriminações, porque não só estendeu o ensino às colónias, como até instituiu escolas públicas femininas, o que constituía uma atitude de renovação e progresso mental.
O ensino secundário, se assim se lhe pode chamar, não tinha grandes semelhanças com a actualidade, já que era uma espécie de preparatórios para a Universidade. Consistia na leccionação das cadeiras de Gramática Latina, Língua Grega, Retórica e Filosofia, para cuja efectivação se fundaram as competentes escolas nas cidades mais populosas ou nas que fossem cabeça de Comarca. A reforma só teve verdadeira concretização já no declinar do consulado pombalino, precisamente na altura em que a Universidade de Coimbra recebia os seus modernos Estatutos, verdadeiro monumento do ensino cientifico, que colocava o nosso país ao lado das nações mais progressistas da Europa. A filosofia educativa que inspirara o pombalismo fundamentava-se na criação de um ensino estatal e laico, em cuja imagem e semelhança se perfilariam, até hoje, as principais revisões do aparelho e do sistema educacional.
A partir de 1759 assistiu-se a uma lenta implementação do processo que deu origem a sucessivas colocações de professores, atribuição de novas escolas e, diga-se em abono da verdade, muita incongruência, insatisfação e algum desalento. Por isso é que só em 1773 a cidade de Faro teria, completo e preenchido, o seu quadro de professores, cujo elenco, só por curiosidade, aqui se enuncia: Ler, Escrever e Contar: António José Rodrigues; Gramática Latina: João dos Santos de Proença Capinhão; Língua Grega: Dimas Tadeu; Retórica: José Feliciano Coelho; Filosofia Racional: José Ferreira Cidade.
O ordenamento educativo do Algarve ficaria completo em 1779, mas já sob o domínio da «viradeira» que inspirou o reaccionarismo do governo mariano. Para inflectir a situação e esbarrondar o projecto pombalino, entregou-se o ensino aos conventos de religiosos existentes nas respectivas comarcas. Daí os conventos de Faro se encarregarem da Filosofia Racional e da Gramática Latina, enquanto que os franciscanos de Lagos, Portimão, Monchique, Silves e Loulé, assim como os paulistas de Tavira, asseguraram não só a Gramática Latina, como ainda a administração das primeiras letras.
Com implantação do regime liberal, constitucional e parlamentar, os objectivos pombalinos voltaram a inspirar o espírito reformista que presidiu aos novos destinos do ensino em Portugal. Em 1836, com o advento do «Setembrismo» e sob a batuta ministerial de Manuel da Silva Passos, procedeu-se ao reordenamento educativo da nação, do qual ressaltam os Liceus Nacionais, as Escolas Médico-Cirúgicas, as Escolas Politécnica de Lisboa e do Porto, o Conservatório de Arte Dramática, as Academias de Belas Artes de Lisboa e do Porto, a Escola do Exército, etc. Nunca se tinha ido tão longe numa reforma educativa. E o princípio inspirador continuava a ser o mesmo: estatal e laico, como o propusera Pombal.
Ainda assim, o Liceu de Faro só abriria as suas portas em 1849, para dois anos depois receber da Rainha D. Maria II a carta legitimadora da sua fundação. Daí por diante, assiste-se em Faro à fundação das escolas de Desenho Industrial Pedro Nunes, a Escola Primária Superior, a Escola Normal Superior, a Escola Comercial e Industrial Tomás Cabreira, o Magistério Primário, a Escola de Hotelaria e Turismo, o Instituto Politécnico e a Universidade do Algarve. Por elas passaram sucessivas gerações e nelas adquiriram a sua formação de base muitos dos principais quadros técnicos e intelectuais de que o Algarve se pode hoje orgulhar.
A par dessas escolas de grande projecção, outras existiram certamente mais humildes, mas nem por isso menos importantes. É por essa razão que não devemos esquecer, as filantrópicas iniciativas particulares (de maçons e republicanos) em torno da chamada «educação popular», de que foram exemplo os Centros Republicanos, onde pontificaram alguns vultos locais das lutas pela emancipação feminina, como Maria Veleda ou Inácia Anes Baganha; a Universidade Popular do Algarve, fundada por iniciativa do Dr. José Dentinho e propalada pelo Dr. Francisco Fernandes Lopes, na qual se pronunciaram brilhantes conferências e até se ministraram cursos livres; o Círculo Cultural de Camões, que serviu de refúgio e camuflagem a alguns elementos da «Resistance Française», como Lionel de Roulet, Heléne de Beauvoir e até mesmo sua irmã, a escritora Simone de Beauvoir, que veio a Faro proferir uma palestra a convite do Círculo; o seu sucedâneo Instituto da Alliance Française, que julgo ainda subsistir, embora com muitas dificuldades; o Círculo Cultural de Faro, que é de todos o que maiores tradições guarda de uma subtil luta pela emancipação intelectual das classes trabalhadoras contra o «Estado Novo» e o regime Salazarista, cuja fabulosa biblioteca e a própria instituição correm o risco de desaparecer na voragem do desinteresse geral; os Colégios particulares Farense e Algarve, este ainda em actividade; e, por fim, a mais recente de todas as iniciativas particulares, em benefício da educação e no espírito do ensino livre, que é a Universidade do Algarve para a Terceira Idade, que sem apoios significativos nem instalações próprias vai sobrevivendo com muitas dificuldades, razão pela qual se tornou digna do maior apreço social, não só pela sã convivência e alegre confraternização que se manifesta entre todos os alunos, como ainda pela divulgação dos conhecimentos, que de vários quadrantes científicos são ali transmitidos aos seus alunos.
Em desenvolvida análise, obviamente muito mais haveria para explanar e enaltecer neste breve rol de instituições que serviram e desenvolveram, nas suas natura limitações, a formação educativa e cultural do Algarve. Mas, em síntese, basta tocar-lhes, ainda que ao de leve, para que ressaltem da poeira dos tempos, sem que percam a patine da História.

terça-feira, 9 de março de 2010

Uma Quarteirense que Camões Amou

Em 1980 assinalou-se o 4º Centenário da morte do maior vate da Língua portuguesa. Porém, perdeu-se então a oportunidade de, através de uma singela placa evocativa, se perpetuar a existência no Algarve da casa que foi berço a D.a Francisca de Aragão, considerada como a musa inspiradora dos Lusíadas. O edifício, na praia de Quarteira, denominada «Estalagem da Cegonha», foi, no século XVI, residência de Nuno Rodrigues Barreto, alcaide-mor de Faro e vedor da Fazenda do Algarve, pai da «loira, viva, esperta e azougada» Francisca de Aragão. Foi nessa vetusta casa apalaçada do morgadio dos Barretos, que nasceu a formosa Francisca de Aragão, que viria a ser figura de proa nas cortes de Portugal e de Espanha. Trata-se de um assunto pouco conhecido sobre uma jovem algarvia, originária da distinta família dos Barretos, que pontificou na corte portuguesa nos finais do século XVI, no período de transição da perda da nacionalidade para a dominação filipina, cuja descendência foi também eminente na vizinha Espanha.

terça-feira, 2 de março de 2010

Vila Real de Santo António no I centenário do seu Fundador

Estudo relativo às comemorações do I Centenário do Marquês de Pombal, realizadas em 1882, as quais tiveram no Algarve forte repercussão em Vila Real de Santo António, cuja fundação no séc. XVIII se deve inteiramente à política de fomento das Pescas implementada por aquele grande estadista. Este estudo foi publicado na revista «Património e Cultura», n.º 9, Vila Real de St.º António, 1983, pp. 9-17.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Quem foi Silvio Pellico? Um Herói? Um Traidor?

Este estudo sobre a vida e obra do célebre escritor italiano Silvio Pellico, foi publicado em 13/04/1982, no suplemento de «Cultura e Arte» do vespertino portuense «Comércio do Porto», por solicitação do meu saudoso amigo Prof. Doutor José Augusto Seabra, que no ano seguinte seria nomeado Ministro da Educação do IX Governo Constitucional, formado pelo então designado "Bloco Central", o qual vigorou entre 1983-1985.
A figura de Silvio Pellico é, ainda hoje, pouco conhecida em Portugal, sendo que na Itália é uma das figuras cimeiras do Romantismo oitocentista. O estudo que agora se coloca ao dispor dum público mais vasto é apenas uma visão de síntese de toda a problemática histórica que envolveu a vida daquele notável escritor italiano. Reedito-o em homenagem ao Prof. Seabra, falecido em 27-05-2004.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Esplendor renascentista no portico da Igreja de Moncarapacho


José Carlos Vilhena Mesquita


A lendária aldeia de Moncarapacho, pertencente ao concelho de Olhão, cuja origem se perde na longa noite dos séculos, pode orgulhar-se de possuir o mais belo pórtico renascentista de todo o Algarve. A sua beleza, associada à perfeição do estilo, rivaliza muito de perto com a extraordinária fachada da Misericórdia de Tavira, obra primorosa desse obscuro arquitecto que foi André Pillarte, a quem alguns estudiosos quiseram, igualmente, outorgar a autoria do pórtico de Moncarapacho. Pessoalmente, discordo dessa hipótese, visto que nessa altura aquele artista encontrava-se ainda na cidade do Gilão, a completar a sacristia, a casa dos despachos, e outras dependências pertencentes ao referido templo da Misericórdia. Mas isso são questões muito mais complicadas e que não cabem nesta pequena nota de carácter divulgativo, que tem apenas por objectivo chamar a atenção dos leitores para a riqueza do património cultural algarvio.
Assim, a igreja matriz de Moncarapacho, de cujo pórtico iremos falar, data da segunda metade do século XVI, e nesse mesmo local existiu em tempos uma simples capela romano-gótica, que, no século XV, cedeu o seu lugar a um mais amplo edifício da invocação de Santa Maria da Graça, cuja transformação e ampliação ocorreria um século depois, facto esse que facilmente se constata no interior do templo. As razões que motivaram esta adulteração prendem-se, por certo, com o crescimento económico e demográfico da freguesia, que através da construção de tão majestoso templo pretenderia, talvez, demonstrar o seu progressivo florescimento.

Largos rendimentos

Por outro lado, a devoção dos seus habitantes por Santa Maria da Graça originou a legação de avultados cabedais e propriedades aforadas, que por morte deixavam àquela igreja. Daí resultaram largos rendimentos, que se empregaram na ampliação do templo para o seu actual aspecto, assim como permitiram a aquisição de ricas alfaias, paramentos e belíssimas imagens, algumas delas hoje recolhidas no magnífico museu paroquial daquela freguesia.
Não esqueçamos, também, que para aqui vieram residir algumas famílias nobres que se haviam distinguido nas ferozes batalhas do Norte de África e na dura epopeia dos Descobrimentos. Este facto constituiu mais uma das razões do crescimento económico e populacional da freguesia. A título de exemplo, citaremos os solares, alguns deles já desaparecidos, dos Corte-Reais, dos Sárrias ou Sarres e Mendonças, dos Pessanhas, dos Tripauxos e de várias outras famílias de que já não reza a História.
Mas, descendo ao pormenor, devemos acrescentar que a fachada desta igreja deverá datar de 1551, e o seu estilo, como já afirmei, é nitidamente renascentista. E muito lamentamos que o Prof. Albrecht Haupt, considerado como suprema autoridade no renascentismo português, não tivesse conhecido este belo pórtico, pois que dele, por certo, iria tecer as mais favoráveis considerações, comparando-o, muito provavelmente, com outros da mesma espécie que gozam de maior fama.
Na verdade, a monumentalidade deste pórtico, associada à beleza escultórica dos soldados romanos vigiando, cenas da paixão de Cristo, encimadas pela imagem da Virgem sob um formoso baldaquino, no qual o Arcanjo Gabriel a saúda chamando-lhe «Cheia de Graça», levou o Dr. José Fernandes Mascarenhas, dedicado estudioso moncarapachense, a designá-lo de «arco de triunfo do velho e novo testamento em pedra».
A porta apresenta-se em arco de volta perfeita, despido de elementos decorativos, ladeado por duas pilastras, ornadas por elementos naturais estilizados, videiras, loureiros, heras e outros vegetais, desenvolvidos num espiral ascendente. Na base das pilastras vêem-se dois bustos em baixo relevo já muito desgastados. Os capitéis são jónicos e os ábacos emoldurados apresentam-se pouco ortodoxos. Os frisos interiores acham-se decorados em cada métopa com cenas da prisão e sacrifício de Cristo, vendo-se em pormenor alguns puxando cadeias ou empunhando chicotes de suplício. A arquitrave também se encontra decorada com elementos naturais, folhas de abacante e outras, em desenvolvimento horizontal. Na parte superior da cornija encontra-se uma espécie de frontão trapezoidal, ladeado pelas estátuas de S. Pedro e de S. João, tendo ao centro uma clarabóia circular, que talvez pretendesse imitar uma rosácea. Ao cimo, um baldaquino do tipo gótico, dentro do qual se acha a imagem de Nossa Senhora da Graça, que parece aguardar a chegada do anjo Gabriel, que está ao seu lado esquerdo.

Mescla de estilos

Contudo, o interior do edifício é uma mescla de Gótico e de Renascença, motivado pelas frequentes alterações de que foi alvo ao longo dos séculos. O arco da capela-mor data de 1581, e em estilo renascentista, assim como a abóbada terminal da nave do Evangelho. São também visíveis as reminiscências romano-góticas nos cunhais das cabeceiras, o que demonstra uma diferença de alturas, em tempos existente, entre as naves central e laterais. Observam-se também várias nervuras góticas nas capelas do Senhor dos Passos, de Santo António e das Almas. São igualmente góticos os arcos e as nervuras da capela do Calvário e por detrás da capela-mor vêem-se ainda as mísulas que possivelmente sustentavam a primitiva abóbada da abside gótica. Da ancestral ermida, provavelmente contemporânea da Sé de Faro, ainda permanecem visíveis um capitel e três bocetes de singela feitura.
À parte os elementos arquitectónicos, são ainda dignas de especial referência as pinturas do retábulo da Capela das Almas, representando o Purgatório, as da Capela do Calvário, onde se vê S. Gregório Magno que tem por insígnia um livro de música, e as da Capela de Santo António, cujas pilastras do arco frontal são de uma beleza rara. Os azulejos polícromos que recobrem as paredes destas capelas datam do século XVII e são esplendorosamente belos. O púlpito de pedra tem a forma de cálice, com uma copa octogonal, decorado com pinturas iguais às dos arcos da igreja, datadas do século XVIII.
Algumas das peças de estatuária desta e de outras igrejas encontram-se hoje a recato no magnífico Museu Paroquial, obra de dois grandes beneméritos locais, ao qual nestas mesmas colunas demos em tempos o devido destaque.


(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 10 de Julho de 1983)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O Algarve e a Cortiça ou a ameaça de uma riqueza



José Carlos Vilhena Mesquita

Considerada desde há milénios como uma das principais riquezas naturais à flor da Terra, a cortiça deverá ser encarada no seu dualismo pragmático e económico. Assim, para os mais leigos no assunto, compete-nos informar que no nosso país, fundamentalmente na zona a sul do Tejo, produz-se mais de metade da cortiça mundial. A sua qualidade é, insofismavelmente, a melhor do mundo, fazendo deste produto natural a principal mercadoria do nosso comércio externo.
Como curiosidade, refira-se que cerca de metade do volume da cortiça é composto de ar que se encontra alojado em poliedros estanques revestidos de resina, os quais numa casca com 8 cm de espessura poderão cifrar-se em mais de 500 milhões de células. Devido a esta particularidade, a cortiça é indispensável como isolante do som e do calor, sendo, por isso, a sua aplicação múltipla e variada. Além do mais é levíssima, estanque, sem cheiro ou sabor, é elástica, resistente, impermeável e não é tóxica. Cientificamente, a cortiça (quercus suber) não é mais do que a camada suberificada das células protectoras do córtex da árvore e resulta de um meristema secundário que se radica na periferia do caule como se se tratasse da epiderme humana.
A árvore da cortiça é, como todos sabem, o sobreiro, que só começa a produzir a partir dos 20 anos de vida, e o seu habitat natural situa-se nas regiões arenosas, de terrenos profundos e soltos, com altitudes inferiores a mil metros, sob um clima de forte insolação do tipo mediterrâneo continental caracterizado por verões secos e Invernos rigorosos. A zona de implantação do sobreiro estende-se, por conseguinte, pela bacia mediterrânica e, numa escala decrescente, os principais produtores de cortiça são Portugal, Espanha, Argélia, Itália, Tunísia e França.

Produzirmos mais de metade dos valores mundiais

A área total da produção mundial anda à volta dos 2050 milhões de hectares e o rendimento anual é da ordem dos 400 mil toneladas, cujo valor comercial atingiu no ano transacto cerca de 500 milhões de dólares: Especificamente no nosso país, a área de exploração totaliza 656.200 hectares e a produção cifra-se em valores superiores a 200 mil toneladas anuais, o que equivale a dizer que produzimos mais de metade dos valores mundiais.
Refira-se, igualmente, que um sobreiro tem uma longevidade média de 150 anos e que, normalmente, dele não se consegue extrair mais de uma dúzia de «reproduções», se bem que a partir das cinco primeiras “tiradas” a qualidade da cortiça venha a diminuir progressivamente. Em média dum “chaparro” extrai-se pouco mais de uma arroba de cortiça, dum sobreiro cinquentenário obtemos o triplo e dum octogenário mais de 15 arrobas. As árvores descascadas tomam uma cor ferruginosa devido à oxidação dos tecidos em contacto com o ar, iniciando-se imediatamente o processo de recomposição que, por força da natureza, é, apesar disso, bastante lento, visto que só dali a nove anos é que estará em condições de poder sofrer idêntica operação.
A principal aplicação da cortiça situa-se ao nível da indústria rolheira, que absorve 65% de toda a cortiça vendida, senda de primordial qualidade as rolhas de champanhe produzidas nas nossas fábricas de Santa Maria de Lamas. Além disso a cortiça aplica-se na indústria do calçado, na construção civil, na indústria automóvel, nas artes plásticas, na decoração do lar, na caça, na pesca e no desporto em geral. Ultimamente, tomando em consideração a sua baixa combustibilidade, serve para forrar os tubos de ventilação dos submarinos nucleares, para transportar isótopos radioactivos a mais de 800º C, para protecção de naves espaciais e satélites de comunicação e, inclusivamente, foi há bem pouco tempo aplicada cortiça portuguesa como isolante térmico da camada externa da nave espacial «Columbia».

Os preços da arroba baixaram assustadoramente no mercado

Acontece, porém, que um dos problemas que mais afligem os agricultores da serra algarvia é a questão do tratamento e comercialização da cortiça. Fala-se, inclusivamente, de alguns casos em que se verificam situações de pré-ruína, visto que os preços da arroba da cortiça baixaram assustadoramente no mercado, a ponto de atingirem cotações inferiores àquelas que se verificavam em 1980.
Efectivamente, enquanto há dois anos atrás os industriais pagavam 1000$00 por arroba, hoje mostram-se relutantes em oferecer ao produtor 800$00 pela mesma quantidade de matéria-prima. Em contrapartida, os honorários a despender com o aluguer da força de trabalho especializada subiram em flecha, atingindo verbas praticamente incomportáveis. Atendendo a que no Algarve a exploração suberícola se processa nas regiões da serra interior, os custos de extracção da cortiça são substancialmente agravados pelo facto de primeiramente se ter de proceder à decapagem do terreno, que pela sua morfologia se transforma numa faina árdua e onerosa. De facto, para se proceder a tal tarefa é necessário alugar alfaias mecânicas, próprias para o efeito, que cobram ao agricultor entre 1000$00 e 1500$00 escudos à hora. Acontece que a remoção do mato numa propriedade de extensão relativamente pequena nunca custa menos de 20 contos. Saliente-se que esta acção de decapagem do terreno não se processa nos mesmos moldes do Alentejo, onde o solo e plano e árido. Daí podermos afirmar que, à partida, o agricultor algarvio está em desvantagem económica relativamente ao seu vizinho alentejano.

Os salários subiram e a cotação da cortiça baixou

Quanto à contratação de mão-de-obra experimentada na arte de descascar o sobreiro, é preciso reconhecer que a sua taxa inflacionista cresceu na razão inversa dos preços que a matéria-prima atinge no mercado. E isto porque enquanto os salários subiram a cotação da cortiça baixou. Assim, nos dias que correm, um “tirador” de cortiça não ganha menos de 2000$00 por dia. A sua função, sendo a mais especializada, baseia-se numa técnica ancestral, transmitida de pais para filhos, que consiste no rigoroso manejo do machado, cuja afiada lâmina penetra, com precisão milimétrica, até ao tecido interior da árvore sem lhe provocar a mais pequena beliscadura.
Aliás, diga-se de passagem, que uma leve incisão no tronco interno provocaria a formação de nódulos que prejudicariam extraordinariamente a futura qualidade da cortiça. Por outro lado, um bom “tirador” é capaz de num dia extrair 360 kg de matéria-prima sem ferir uma única árvore. Daí resulta naturalmente a justificação para a possível exorbitância do seu vencimento.
Após a contratação do “tirador” é preciso proceder de igual modo com o “ajuntador”, cuja função se resume simplesmente ao amontoar das pranchas e canudos da cortiça em local apropriado à sua expedição. Só por isso ele ganha entre 1500$00 e 2000$00 por dia. Por outro lado, como normalmente os sobreiros se estendem por terrenos bastante acidentados, não é possível a utilização de veículos motorizados para o transporte da cortiça, pelo que se terá de colmatar esta dificuldade através da contratação do “homem da besta”. Ora, acontece que o aluguer do homem e da mula anda à volta dos 2500$00 diários. É curioso que ao animal são incorporadas cangalhas laterais que permitem a sustentação da matéria-prima. Normalmente aguenta com algumas centenas de quilos empilhados de forma especial, semelhante a uma abóbada formada por inúmeros canos de cortiça. Só através desta operação é possível descer os íngremes cerros da recôndita serra algarvia. Por vezes, a vários quilómetros de distância, aguarda a sua chegada o motorista, que por seu turno transfere a matéria-prima para os respectivos centros industriais de transformação. Para cumprir essa tarefa o camionista cobra cerca de 15$00 por arroba, fora as despesas da quilometragem que serão cobrados conforme a distância a que se situam as devidas indústrias.

As razões da preocupante baixa dos preços

No apuramento final das despesas de extracção, verifica-se que cada arroba de cortiça custa em média ao produtor cerca de 300$00. Se em 1980 o preço da arroba esteve no mercado a 1000$00, logicamente este ano, atendendo às aludidas despesas, deveria atingir os 1300$00. Mas, por incrível que pareça, oscila entre os 750$00 e os 900$00, o que equivale a dizer que o seu preço real, deduzidos os custos de extracção, é de 500$00.
Agora pergunta-se: a que se deve esta baixa dos preços? Muito naturalmente à inadmissível facilidade de importação da cortiça espanhola que, devido à sua exploração mecanizada, ao câmbio e, sobretudo, à inferior qualidade da mesma, permite atingir no mercado um preço bastante inferior ao vigente no nosso país. Porém, o pior de tudo isto é que esta cortiça, pretensamente portuguesa, é exportada para os nossos clientes do norte da Europa, que ao aperceberem-se da sua inferior qualidade acabarão por perder a confiança na nossa matéria-prima. Em contrapartida, quem ganha com isso é a Espanha, que só exporta para os países da CEE a cortiça de melhor qualidade, equilibrando com isso o seu preço menos competitivo.
Nesta conformidade, o país é duplamente prejudicado, não só internamente como no estrangeiro. Por essa razão, os agricultores do Algarve, na sua maioria, não tem mandado descascar os sobreiros, por não compensarem os preços no mercado, deixando ficar nas árvores a cortiça por mais um ou dois anos à espera de melhores dias, ou seja de melhores preços. Porém, esta disposição de vender a cortiça com 10 ou 11 anos é lesiva ao País, pois são mais dois anos que se perdem na produção, se bem que se melhore na qualidade do produto. Todavia, se os preços se mantiverem mais ou menos a este nível, a qualidade continuará a ser prejudicada pela oferta, o que em boa verdade trará a ruína a muitas casas agrícolas. Cremos mesmo que, por este andar, a cultura do sobreiro, protegida superiormente desde 1310, aquando do reinado de D. Dinis, tem tendência a ser abandonada, senão mesmo substituída por outra mais rentável.

À espera de medidas enérgicas e moralizadoras

Urge, portanto, que o Governo tome medidas enérgicas para atalhar a este estado de coisas que, obviamente, não só prejudicam quem moireja nos campos como, inclusivamente, agravam a economia do País que corre o risco de ver a sua cortiça rejeitada futuramente nos mercados internacionais.
Refira-se que o deputado pelo círculo de Beja, Dr. António Chagas, considerado especialista na matéria, expôs este problema na Assembleia da República, onde a questão mereceu da parte de alguns membros do Governo, entre eles o ministro da Agricultura e Pescas, Dr. Basílio Horta, a mais viva repulsa, a ponto de responsabilizar os industriais pela situação existente no Alentejo e no Algarve. Recorde-se que nos concelhos de São Brás de Alportel, Loulé e Tavira, nomeadamente nas regiões da Cova da Muda, Vale de Luís Netos, Estragamantens e Cachopo, produz-se a mais qualificada cortiça de toda a província do Algarve.
Ficamos, assim, a aguardar a publicação de legislação competente que permita o escoamento da produção interna e proíba os abusos oportunistas dos industriais corticeiros, que na mira de chorudos lucros prejudicam enormemente a economia nacional.


(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 18-08-1982)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O Museu e a Escola

José Carlos Vilhena Mesquita


Com imensa mágoa verifico que a maioria das escolas portuguesas não aproveita convenientemente as potencialidades culturais das áreas geográficas em que se acham inseridas. Assim, raramente os estudantes do ciclo preparatório ou das escolas secundárias fizeram uma visita de estudo aos museus, monumentos e palácios da sua área residencial, sem esquecer os passeios pelo campo, que hoje os professores já não fazem. O que é pena, pois constituem verdadeiras aulas práticas de botânica, geologia, mineralogia, zoologia, etc. Numa época em que assistimos ao crescimento avassalador de uma nova ciência como a Ecologia que, sem ser por acaso, tem congregado o interesse e a atenção dos nossos jovens, não compreendemos porque é que não se abrem as portas da escola para o campo.
O museu é, no seu próprio contexto geográfico, o mais valioso espólio do património local. Nele se deposita a memória dos nossos antepassados e através dele poderemos fazer uma verdadeira e alucinante viagem no tempo. Aí se contacta com testemunhos insubstituíveis cuja observação e estudo nos farão compreender melhor a nossa história. Porém, há que preparar convenientemente essa visita para que não nos confrontemos com situações ou peças museológicas que nada nos dizem por lhes desconhecermos o significado. Não vale a pena levar as crianças a visitar uma praça-forte sem terem previamente uma noção do que foi e em que consistiu o feudalismo.
Na verdade, jamais poderemos esquecer que os testemunhos permanecem eternamente mudos se não os soubermos interrogar e, convêm lembrar, ir ao museu não é o mesmo que ir ao supermercado. Para nele se penetrar é preciso ter cultura, que só se adquire na escola, daí que as visitas só se devam efectuar a partir de um determinado nível etário e intelectual. De contrário, a visita será contraproducente e os jovens poderão contrair a ideia de que os museus são cemitérios inúteis, tristes, aborrecidos, frios, sem alegria nem significado. Raramente lá voltarão.

A formação estética

Mas há um sector pouco explorado, ou pelo menos negligenciado, pelos nossos pedagogos no âmbito da museologia, que é a formação estético-artística dos alunos. Em parte, esta situação também se fica devendo à intrínseca desmotivação dos professores para a expressão estética. E não raras vezes se assiste a retumbantes fracassos quando os mais zelosos professores entregam os seus alunos aos cuidados de um erudito especialista que, naturalmente, não consegue adaptar o seu discurso aos parcos conhecimentos culturais dos jovens. Nessa altura, uma visita que se previa ser um êxito pedagógico transformou-se numa chachada e numa total perda de tempo. Os alunos nada perceberam do que lhes foi dito e normalmente limitam--se, em certos casos, a comentar e ridicularizar os trejeitos e o snobismo intelectual do seu ilustre cicerone. A informação cultural, por mais interessante e correcta que possa ser, deverá sempre obedecer a um esquema pedagógicos.
Por outro lado, uma visita ao museu sem ser guiada está também votada ao fracasso, já que não basta aos alunos a «liberdade da descoberta», pois que necessitam dos meios indispensáveis a essa mesma descoberta. Normalmente, os directores dos museus reprovam este tipo de actuação, visto que, sem preparação nem ordem, os alunos chegam mes mo a causar incómodos e distúrbios de vária ordem.

Organizar uma visita

Como proceder então? É simples. Toda e qualquer visita ao museu terá de ser forçosamente preparada em gabinete pelos respectivos responsáveis pedagógicos, que deverão previamente conhecer o espólio museológico e determinar as peças, conjuntos salas ou colecções que mais interessam aos seus alunos.
É fundamental que na aula anterior à visita sejam ministrados aos alunos alguns conselhos sobre o carácter do museu, algumas normas de conduta e de respeito para com a instituição e ainda algumas pistas sobre aquilo que irá ser observado. Nunca e deve privar o aluno do prazer da surpresa e do gosto pela descoberta. O jovem deve directamente contactar com o objecto ou com a obra de arte, para que sinta nisso algum prazer. Nessa altura ele descobre, regista e, sobretudo, familiariza-se com a arte e com a própria instituição.
Torna-se indispensável e até fundamental que o orientador pedagógico da turma ou da disciplina em que essa visita de estudo estiver enquadrada forneça previamente aos alunos um inquérito sobre algumas peças que eles irão descobrir no museu, assim como alguns roteiros cronológicos que possibilitarão caminhos repartidos por grupos (discretamente acompanhados pelo professor), que serão compensados pelo prazer da autodescoberta.
À entrada do museu, deve-se apresentar os alunos ao director e aos conservadores, solicitando-se depois a estes algumas breves palavras de saudação e de esclarecimento sobre os objectivos culturais da própria instituição. Os alunos sentir-se-ão respeitados e satisfeitos, para além de perceberem mais facilmente que estão em presença de um verdadeiro santuário da cultura, que facilmente se poderá transformar em laboratório de investigação histórica.
No final da visita verificaremos, através da leitura dos inquéritos, que nem sempre os melhores observadores são os melhores alunos, pois que a capacidade de análise e reflexão sobre a arte não exige, nesta idade, um «background» cultural de peso, mas antes uma forte sensibilidade, que, como se sabe, é inata. Para esses, devemos dar alguns conselhos e, sobretudo, motivá-los para que não desperdicem as suas intrínsecas inclinações artísticas, de que poderão vir a colher no futuro um glorioso sucesso.

Nas aulas seguintes

Se possível, nas aulas seguintes deverá abrir-se um debate sabre a importância dos museus, a sua necessidade, o seu interesse e ainda sobre o valor de algumas peças nele expostas, as quais poderão eventualmente ser confrontadas com outras da mesma espécie, através da projecção de «slides» ou de gravuras. Veremos que dessa discussão surgirão opiniões interessantíssimas que convirá registar e até, se possível, publicar no jornal da escola. A elaboração de uma reportagem por um grupo de trabalho acerca da visita e da integração do museu na escola seria um exercício complementar da mais elevada importância pedagógica e a sua publicação ou divulgação pública tornar-se-ia imprescindível.
Enfim, aqui está sumariamente a fórmula ideal para a concretização de uma visita de estudo ao museu da nossa localidade, que facilmente se pode adaptar a outros tipos de visitas, como aos monumentos ou ao campo. A posição do professor pode ser activa ou discreta, mas sempre acompanhando os seus alunos, prestando-lhes informações e esclarecimentos que estes registarão no seu bloco de apontamentos. Um relatório final e o preenchimento de um inquérito serão importantes ferramentas pedagógicas para a boa formação estético-artística e histórico-cultural do aluno.
Resta-nos apenas esperar que na província, onde existem dos mais maravilhosos museus do País, se tornem as visitas culturais numa prática corrente das escolas.


(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 12 de Janeiro de 1984)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Algarve precisa de mais museus que falem do seu histórico passado


José Carlos Vilhena Mesquita

A província do Algarve, expoente máximo do turismo nacional, não pode, infelizmente, orgulhar-se de possuir muitos e variados museus, pese embora o seu passado histórico se encontre vincadamente perpetuado nos inúmeros testemunhos arqueológicos deixados pelos povos oriundos das grandes civilizações mediterrânicas.
Saliente-se que a museologia no Algarve nasce, por via de regra, da iniciativa particular e fundamenta-se na doação de colecções pertencentes a comprovincianos obviamente dotados de marcante espírito científico e altruístico. O primeiro exemplo partiu do arqueólogo Estácio da Veiga que em vão pretendeu criar o Museu Arqueológico do Algarve, com sede em Faro. No entanto, grande parte do espólio recolhido aquando das escavações que efectuara para a Carta Arqueológica do Algarve (1878-1883) foi recuperado por Monsenhor Joaquim Maria Pereira Botto, que, a 4 de Março de 1894, fundou na capital desta província o «Museu Archeologico e Lapidar Infante D. Henrique» designação essa que ainda hoje conserva.
Em Lagos, idêntica iniciativa se ficou a dever ao José Formosinho, que nesta cidade erigiu o que pode considerar-se, sem exagero, o segundo melhor museu em todo o Algarve.
Quanto a Vila Real de Santo António, beneficiou da oferta feita, pelo genial xilogravurista Manuel Cabanas, que foi deputado à Assembleia Constituinte, de uma. valiosa colecção de gravuras esculpidas pelo seu punho. Mais recentemente em Moncarapacho, o rev. P. Isidoro Domingos da Silva, sacerdote da mais elevada formação eclesiástica, e o Dr. José Fernandes Mascarenhas, escritor e investigador de reconhecido mérito, ofereceram à sua paróquia duas notáveis colecções, uma de Arte Sacra e outra de Arqueologia, capazes de fazer inveja a qualquer museu do nosso país.
Oficialmente, no Algarve apenas estas localidades possuem um museu de que possam orgulhar-se, com especial destaque para Faro onde podem ainda ser visitados os museus Etnográfico, Marítimo e Antonino.

Museu de Moncarapacho, a concretização de um sonho já antigo

Desta vez, porém, falaremos apenas do Museu Paroquial de Moncarapacho, inaugurado há pouco mais de um ano.
Fundada em 19 de Junho de 1471, pelo então bispo de Silves, D. João de Melo, a freguesia de Moncarapacho possui vestígios de ocupação muito remota, pois nela foram postos a descoberto vários testemunhos pré-históricos, como é o caso de cilindros totémicos de configuração antropomórfica; ídolos neo-eneolíticos e inúmeros artefactos pertencentes a povos metalúrgicos do período neolítico. Posteriormente, ali deixaram assinalada a sua passagem Romanos, Visigodos e Árabes, todos eles representados nas galerias do museu.
Muito embora a ideia da fundação deste museu fosse uma velha aspiração da freguesia, o certo é que foi necessário aguardar pelas comemorações do seu quinto centenário para, definitiva e oficialmente, se encarar com optimismo a concretização deste justo e merecido sonho. Como atrás referi, a iniciativa partiu de dois beneméritos, o padre Isidoro Domingos da Silva e o Dr. José Fernandes Mascarenhas, o primeiro detentor da riquíssima colecção de arte sacra (a que atrás aludi), e o segundo de um não menos notável espólio arqueológico. Refira-se que ambas as colecções foram avaliadas em milhares de contos aquando da inauguração no ano passado, no dia 12 de Julho, do museu que pode assim considerar-se um dos mais importantes museus paroquiais do País.
Por estranho que pareça, desde o lançamento da primeira pedra, que marcou o início da construção do edifício, em Setembro de 1971, até à sua inauguração em Julho de 1981., foram dez anos de canseiras e impedimentos diversos que quase fizeram perigar a sua. Concretização, não fosse a vontade indómita dos seus beneméritos fundadores.
O edifício, modesto de proporções mas sóbrio de linhas, encontra-se adstrito à secular Capela de Santo Cristo onde, segundo reza. a história, muitos prodígios e milagres se registaram ao longo dos últimos cinco séculos.

Como as pratas algarvias «viajaram» até Baiona

A ancestral ermida, cuja construção remonta ao ano de 1632, encontra-se esplendorosamente revestida de azulejos policromos datados de 1663, provenientes de Lisboa, possivelmente de uma das 12 mais importantes olarias que na cidade então existiam.
Por altura das invasões francesas, os soldados de Junot, como represália pela derrota sofrida junto à ponte de Quelfes, assaltaram a indefesa freguesia de Moncarapacho não escapando ao saque os valiosos objectos e alfaias de culto existentes na vetusta Capela de Santo Cristo. A maior parte do espólio, criminosamente obtido, pode apreciar-se, ainda hoje, em alguns museus da França, nomeadamente no de Baiona, que não esconde inclusivamente a proveniência moncarapachense das suas peças de prata.
Enfim... coisas da História que, por tristes e ignóbeis, nos escusamos de recordar. Seja como for, na sua idoneidade e no barroquismo da sua talha, a capela de Santo Cristo não poderia ter melhor aproveitamento do que aquele que o povo de Moncarapacho lhe acaba de dar, ao transformá-la em Museu.
Mas penetremos no edifício. este núcleo museológico divide-se em dois grandes sectores: o da Arqueologia e o da Arte Sacra. O primeiro encontra-se instalado no pavimento inferior do edifício e compõe-se sobretudo de artefactos paleolíticos, de cerâmica calcolítica e de várias peças epigráficas, heráldicas e numismáticas pertencentes às épocas da ocupação romana e árabe. Assumem particular destaque um enorme vaso árabe destinado a ablações religiosas, várias lápides epigráficas islâmicas que o Dr. Garcia Domingues tem estado a decifrar, dezenas de ânforas romanas e tubas árabes, alguns; cipos sepulcrais e marcos miliários; com especial destaque para aquele que o Dr. José Fernandes Mascarenhas identificou como sendo o que assinalava a estrada de Ossónoba a Balsa. Além de tudo isto, podem ainda observa-se inúmeras peças de inegável valor museológico, como uma colecção de lucernas, algumas cornijas arquitectónicas, capitéis coríntios de belo talhe, um túmulo romano em perfeito estado de conservação, lápides; taças, pratos e múltiplas peças de cerâmica provenientes da estação arqueológica romana de Alfanxina, situada nos arredores da freguesia de Moncarapacho.

Valioso presépio do séc. XVIII é peça de interesse nacional

No andar superior está reunida a colecção de arte doada pelo rev.º P.e Isidoro Domingos da Silva, merecendo especial referência um valioso presépio napolitano considerado de interesse nacional, datado do século XVIII, presumivelmente anterior à escola de Machado de Castro, e que pertenceu ao magnata da indústria conserveira, Júdice Fialho. Refira-se que só existe um presépio semelhante no Museu de São Paulo, no Brasil, coevo deste e possivelmente importado da mesma origem por algum português emigrado em terras de Vera Cruz.
O prior Isidoro da Silva adquiriu este presépio a uma freira que se encontrava no orfanato de Santa Isabel, em Faro, e que, atendendo ao confrangedor estado de degradação em que a peça se encontrava, preferiu vendê-la a quem se propunha restaurá-la e conservá-la num museu. Posteriormente, seguiu para o Museu de Arte Antiga, onde se procedeu ao seu gracioso restauro. Regressado ao Museu de Moncarapacho, foi logo considerado como peça de interesse público, já que, na Europa, não há notícia de existir nenhum outro que se lhe assemelhe ou equipare em grandeza e majestosidade artística.
Mas não é só este famoso presépio napolitano que merece a nossa visita atenta e demorada ao Museu de Moncarapacho. Outras peças ali existem de incomensurável valor artístico, nomeadamente um valioso calvário lavrado em marfim e pau-santo do século XVI em estilo indo-português; dezenas de imagens sacras, algumas delas com séculos de existência, recolhidas nas imediações do concelho de Olhão; e ainda alfaias, panejamentos e objectos de culto religioso; além de ricas colecções de cálices, custódias e moedas de valor incalculável; peças de mobiliário, com especial destaque para uma bonita arca setecentista do reinado de D. João V; quadros de interesse regional como os assinados por Bernardo Marques e Henrique Pousão; fotocópias de documentos que atestam o heroísmo do povo olhanense frente às tropas invasoras de Junot; animais embalsamados e toda uma série de pequenas peças de interesse não só artístico como etnográfico.
Em suma, um museu repleto de muita coisa valiosa e rara, à mistura com peças, talvez de pouca importância museológica, mas de inegável valor decorativo. Não obstante isso, gostamos francamente da secção de Arqueologia, que nos pareceu bem ordenada se atendermos à exiguidade do espaço a ela destinado. Além disso, não podemos deixar de salientar a imponência que esse deslumbrante presépio napolitano assume no meio do vasto espólio artístico, aqui e ali marchetado por imagens sacras, algumas de sabor popular a atestar a sua ancestralidade.
Para terminar, cumpre-nos assinalar a carência de um funcionário, a tempo inteiro, que sirva de cicerone aos eventuais visitantes, e, especialmente, de um catálogo ou guia interno do Museu, no qual se discrimine a função e importância de cada uma das peças ali expostas. Isto para não falar já da inexistência dos tradicionais postais e diapositivos reproduzindo as peças de maior valor e que, vendendo-se normalmente à entrada dos museus, não só contribuem para a divulgação da cultura e do património local, como contribuem também para a amortização das graves dificuldades financeiras que se vivem em instituições deste género.
Apenas a título de curiosidade, direi ainda que a entrada é grátis.

(artigo publicado no «Diário de Notícias» de 7-09-1982)