quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A Procissão das Tochas, em São Brás de Alportel

José Carlos Vilhena Mesquita

A rainha da beira serra algarvia comemora, anualmente, no Domingo de Páscoa, o seu mais glorioso feito histórico através de uma festa profana, que a Igreja converteu numa grandiosa manifestação religiosa. Curiosamente, as origens desta festa remontam ao século XVI, mais precisamente ao dia 25 de Julho de 1596, data em que, segundo reza a história, se verificou a invasão da cidade de Faro e seus arredores pelas tropas do duque de Essex.
Na verdade, é hoje dado como certo que, nessa data, aquele nobre militar invadiu o Algarve, após ter infligido estrondosa derrota na Baía de Cádis, a esquadra de Filipe II. Contudo, falou-se durante muito tempo que o saque, e o consequente incêndio da cidade de Faro, havia sido obra do famoso pirata Sir Francis Drake, que as más-línguas apontavam como amante da rainha Isabel I de Inglaterra, por ironia cognominada de «a Virgem».
O referido alvitre partiu do cronista algarvio João Baptista da Silva Lopes, que, nas suas Memórias Eclesiásticas do Bispado do Algarve, a páginas 345 diz o seguinte:«Em 25 de Julho de 1596, foi ella [cidade de Faro] incendiada pelos inglezes, que a accommettêrão com huma esquadra comandada por Francisco Drake, sendo governador do Algarve Rui Lourenço de Távora, e Bispo D. Fernando Martins Mascarenhas, talando e assolando tudo quanto encontrárão até á Aldêa de S. Braz, aonde se diz que chegarão, escapando do incêndio apenas a igreja de S. Pedro, e a da Misericórdia. Então se consumirão os cartórios e livros antigos tão interessantes para a História; consta, por tradição, que boa parte da livraria do Bispo D. Jerónimo Osório, roubada nesta occasião, fora levada para a Universidade de Oxford, onde existe
Todavia, sabemos hoje que a invasão não foi chefiada pelo «corsário negro», mas antes pelo duque de Essex, que, para além de incendiar a cidade, assaltou, de facto, a biblioteca que pertenceu ao citado bispo, e famoso humanista, depositando-a depois na universidade de Oxford. Contudo, nem toda a biblioteca foi roubada, pois que aquele nobre inglês, como não era pessoa muito ilustrada, preferiu a beleza das encadernações à qualidade ou ancestralidade das obras e dos manuscritos. Daí que a maior parte dos livros depositados na biblioteca da Universidade de Oxford seja de carácter místico-religioso, principalmente manuais e tratados de teologia, ciência essa que, em larga medida, constituiu a base de formação intelectual daquele insigne estudioso.
Portanto, apesar do prejuízo que este facto acarretou para a história da cultura portuguesa, não podemos deixar de afirmar que a maior parte dos nossos historiadores costuma exagerar um pouco, quando se refere ao apocalíptico acontecimento, visto que sendo livros escritos em latim, que versam temas litúrgicos, não tem hoje a aplicabilidade e o interesse dos tempos de outrora.
Quanto à data apontada como verídica, há ainda quem discorde dela, talvez por que se apoiam em Rebelo da Silva, que, na sua História de Portugal, vol. VIII, a páginas 145, afirma que os ingleses eram senhores de uma armada de 130 velas, chefiada por Lord Effingham, que tinha sob o seu comando oito mil ingleses e uma frota holandesa, que conjuntamente atacaram e destruíram a esquadra de Filipe II, que se encontrava fundeada em Cádis, no dia 20 de Junho de 1596. Um mês depois, avistaram as costas do Algarve, desembarcando então em Faro cerca de três mil homens que, após 48 horas de sangue e fogo, retiraram em direcção aos mares do Norte.
Não nos parece que Rebelo da Silva esteja no pleno uso da razão. No entanto, o que é certo é que, durante esse período de ocupação estrangeira, uma franja do exército inglês derivou até S. Brás, onde, apesar do seu número, foi heroicamente repelido pelos rapazes solteiros da freguesia.
Efectivamente, «tendo os inglezes entrado em Faro, na força de três mil homens, saqueado os haveres dos seus habitantes, incendiando toda a cidade, não escapando cousa que tivesse valor, tiveram conhecimento de que a povoação de S. Braz era rica e importante, e que valia a pena ir sobre ella para a por tambem a saque.
Organizado um forte destacamento, marcharam sobre S. Braz e chegando ali, encontraram todos os habitantes desprevenidos, sendo-lhes fácil roubar o que encontravam. Não contentes, porém, com os roubos e mortes que praticaram, lançaram fogo á egreja, o que produziu uma grande indignação entre os habitantes. Foi então que, passado o primeiro panico, alguns rapazes solteiros, uniram-se como um só homem, e cahindo sobre os inglezes, fizeram n’elles grande chacina obrigando-os a bater em retirada, largando o que tinham saqueado
» (in Almanaque de S .Braz d’ Alportel para o ano de 1894, p. 22).
O heroísmo dos sambrasenses encontra-se, inclusivamente, narrado na única fonte que a este facto se refere com o rigor do pormenor: «Ha a confraria do nome de Jesus, em que só servem os solteiros, em memoria de quando os inglezes deram fogo a esta egreja, e invocando as taes solteiros o nome de Jesus se opposeram contra aquelles anglicanos, e os lançaram fora, com feliz successo, acção que se obrou em dia de S. Thiago Apóstolo, e n’esse dia lhe fazem a festa com as suas cavalhadas de tarde» (António Pereira. da Silva, «Descripção de S. Braz», manuscrito depositado na Torre do Tombo, dotado de 1757).
Curiosamente, as armas empunhadas pelos rapazes solteiros não passavam de lanças improvisadas machados rústicos, chucos e alfaias agrícolas, com as quais «cahiram destemidamente sobre os inglezes» (Sebastião Joaquim Baçam, «S. Bras do Alportel», 1912). Daí nasceu a alcunha de “cachamorreiros” para os Alportelenses. A única fonte que fala com orgulho desta alcunha pertence a João Manuel Rodrigues de Passos, quando, a dado passo, afirma o seguinte: «Caros, conterrâneos, a palavra cachamorreiros, com que nos alcunharam, parece que teve origem n’aquella data (25 de Julho de 1596), em consequencia. dos nossos ascendentes terem feito retirar á cacheirada a pirataria ingleza. Tal alcunha, pois, é, uma glória para nós filhos d’esta formosa rainha da beira serra». (in Almanaque de S. Bras, de 1894).
Presentemente, a comemoração deste ano heróico constitui uma extraordinária manifestação religiosa, eivada porém de um certo machismo, derivado precisamente do seu carácter histórico.
Esta festa celebra-se no Domingo de Páscoa, e o povo chama-lhe a Procissão das Tochas, pois que os homens empunham uns paus enramalhetados de flores que, pela sua esplendorosa tonalidade mais parecem tochas flamejantes.
Percorrem assim, com as “tochas” floridas, as ruas da vila, gritando em uníssono: «Aleluia, Cristo ressuscitou como disse, Aleluia, Aleluia, Aleluia». Porém, entrementes e à socapa, trazem consigo uma pequena garrafa da mais pura e cristalina medronheira, que emborcam a espaços, enquanto gritam cada vez com mais força e entusiasmo: «Aleluia, Cristo ressuscitou como disse, Aleluia, Aleluia, Aleluia».
Concluída a procissão, as “tochas” são prostradas ordenadamente sobre a calcada, constituindo, assim, um vasto e esplendoroso tapete florido, sobre o qual o sacerdote caminha solenemente, ao mesmo tempo que empunha o Santíssimo. Após a marcha religiosa, o prior celebra então a missa campal, à qual assistem sempre milhares de fiéis, alguns deles ainda arfantes do vigor da solenidade.
Antigamente, e julgo que também ainda hoje, se costuma realizar um concurso para apuramento das mais belas “tochas” que desfilaram na procissão, as quais se distribuem por três grupos, conforme as técnicas empregues na sua elaboração artística. Refira-se que, neste ano [1982], o concurso das melhores tochas organizado pela paróquia terá a especial comparticipação da Câmara Municipal de São Brás de Alportel, da Junta de Freguesia e da Comissão Regional de Turismo do Algarve.
Após a actuação do Rancho Folclórico de Alte e do lançamento dum vistoso fogo-de-artifício, serão encerradas as festividades, que, no seu género, bem poderão ser consideradas como únicas na Península Ibérica.
Pelo seu real valor etnográfico, que, por estranho que pareça, ainda não foi estudado, aqui fica o nosso apontamento, que mais nenhuma pretensão encerra que não seja a de dar a conhecer uma manifestação popular, que em si congrega o espírito profano, mas inocente, do nosso povo com o misticismo cristão da Igreja.
Lamentamos apenas que o dia 25 de Julho, data da invasão inglesa do Algarve, não seja comemorado com o júbilo e a veneração com que os actos de grande heroísmo patriótico costumam ser celebrados no nosso país.

(artigo publicado, no matutino «Diário de Notícias» de 12-04-1982)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O Monte de S. Miguel no Algarve – panorâmica turística inexplorada

José Carlos Vilhena Mesquita

O Algarve não é apenas sol e mar. Muitas vezes o dissemos e todos sabem que temos razão. Porém, o turismo algarvio continua insistindo na polarização do litoral, esquecendo o interior onde muitas vezes a beleza do campo e do património histórico se transforma num tonificante lenitivo para o «stress», ou para as enfadonhas e rotineiras férias nas praias. Há que pensar na organização de novos roteiros turísticos e na alternância praia/campo que possibilite ao visitante uma imagem mais objectiva da realidade algarvia. O facto de não levar o turista até à serra, só para que não veja a frugalidade económica dos habitantes ou o atraso “civilizacional” (se é que isso existe) dos seus costumes, e quanto a nós uma política errada. Confinar o turista ao espaço geográfico que medeia entre a praia e o hotel é um perfeito disparate, e esconder-lhe a própria beleza do Algarve, e afastá-lo da nossa cultura e do nosso riquíssimo artesanato. Os estrangeiros apreciam as nossas tradições e os nossos valores sociais, muitas vezes aqueles que o desenvolvimento económico-industrial fez desaparecer nos seus próprios países, sem esquecer que a sua canalização para o interior iria certamente desenvolver a economia local, tão marginalizada e esquecida, prestes a sofrer o ermamento humano e, como natural consequência, a desertificação.
Como sugestão ou alternativa aqui deixo a ideia de uma visita ate ao monte de S. Miguel, cuja panorâmica, salvo as devidas proporções, nada fica a dever à Fóia em Monchique. Acrescento ainda que o cerro de S. Miguel é muito mais do que um soberbo miradouro natural da serra, do Barrocal e da linha azul cristalina do nosso litoral, pois que outros atractivos e riquezas se podem ali observar. Vejamos então.

«O monte do Figo» na história

Na antiguidade sabe-se que o cerro de S. Miguel ou monte do Figo, como então era conhecido, servia de importante ponto de referência à navegação costeira, não sendo raras as alusões à sua estratégica localização nos mapas portulanos, textos literários e documentos históricos pertencentes aos Fenícios, Cartagineses, Gregos, Romanos, Vikings, Árabes e outros povos cristãos da Europa do Norte. Inclusivamente, atribuíam-se-lhe poderes místicos, obscuros e fantasiosos, provenientes de uma fértil imaginária, intrínseca aos povos marítimos. Mitólogos como W. Christ Imullenhoff consideravam aquela elevação como uma montanha sagrada, uma espécie de Olimpo onde as divindades marítimas se reuniam em sigilosa conferência. O eminente arqueólogo prof. Schulten chegou mesmo a identificar o cabo Zéfiro, citado por Avieno no seu imortal poema Ora Marítima, como sendo o monte Figo, opinião de que comungam outros investigadores, nomeadamente o prof. Mendes Correia e o espanhol Antonio Arribas, o que parece definitivamente afastar quaisquer dúvidas acerca da identificação do tartéssico cabo Zéfiro com o cerro de S. Miguel.
Não obstante estas opiniões abalizadas de estudiosos célebres, como Schulten, penso que o problema não está ainda totalmente clarificado, e francamente, na minha opinião, não me parece muito lógico, ou pelo menos muito fácil de compreender, que um cerro de 400 metros de altitude e a cerca de duas léguas de distância da costa possa ser a mesma coisa que um cabo. Mais lógico seria, talvez, identificar o cabo Zéfiro com o cabo de Santa Maria e considerar como seu perceptível e mais elevado ponto de referência o Monte do Figo. Mas, enfim, tudo isso são questões que transcendem os meus precários conhecimentos.

Ermida de S. Miguel

Através da reconquista Afonsina cristianizaram-se os locais místicos ligados ao paganismo greco-romano, não escapando a essa onda de renovação religiosa o simples Monte do Figo, em cujo alto, reza a tradição, se teria erguido uma ermida para assinalar o aparecimento do Arcanjo S. Miguel. Contudo, no cume do cerro nada subsiste que prove a sua anterior existência, e de concreto apenas se sabe que o bispo D. Francisco Gomes do Avelar ali mandou colocar um pedestal de pedra com uma enorme cruz de madeira, que o tempo se encarregou de fazer desaparecer.
Todavia, na encosta norte do cerro ergueu-se, em data que desconhecemos, mas que deve rondar os séculos XV ou XVI, uma (nova) ermida, bastante singela, de tipo rural, denotando fortes influências góticas e visíveis reconstruções, que, por certo, alteraram a sua traça original. O último restauro processou-se no ano passado [1983], e tal como, desde 1943, ficou a dever-se à iniciativa do padre Isidoro Domingos da Silva, pároco de Moncarapacho, que nesta freguesia tem desenvolvido, de parceria com o Dr. José Fernandes Mascarenhas, uma acção cultural verdadeiramente brilhante e assinalável.
O seu recheio é bastante pobre, de uma só nave, chão de grés em ladrilho, um único altar dois degraus acima do nível central, ostentando ao centro uma antiga imagem do padroeiro, ladeada por duas estatuetas de Nossa Senhora do Socorro. Possui alguns bancos corridos em castanho de antiga fábrica, à esquerda um secular púlpito (certamente resquício da primitiva construção), com boa acústica e uma improvisada sacristia. O referido pároco ali reza missa todos os últimos domingos de cada mês, a ela assistindo a população do barranco de S. Miguel, que não ultrapassa os 20 habitantes.
Curiosamente, a ermida possui campanário, mas não tem sino, o que, segundo apurámos, é uma aspiração destas gentes que vivem placidamente na lonjura da serra.

Potencialidades e dificuldades

Depois que a radiotelevisão ali instalou um retransmissor, depressa se abriram os convenientes acessos rodoviários, e hoje facilmente qualquer cidadão pode subir até ao cume do monte para dali desfrutar duma panorâmica de indescritível beleza.
A altitude atinge os 411 metros acima do nível do mar, o solo é calcário e no cume abundam vários minerais como a calcite, cor de mel rosado, e a halina, os calhaus rolados de quartzo e quartzites, um filão de basalto alterado com olivina e na encosta sul vêem-se imensas rochas com amonites fossilizadas.
Na face norte, a poucos metros do retransmissor, encontra-se o Barranco de S. Miguel, pequeno aglomerado habitacional, que em 1964 totalizava uma centena de moradores, mas que hoje não ultrapassa duas dezenas de locatários. O abandono da população deveu-se em larga medida à fraca rentabilidade agrícola, à escassez da água e, fundamentalmente, à emigração, não propriamente para o estrangeiro mas antes para a orla litoral do Algarve.
A zona florestal tem vindo a diminuir, as secas sucedem-se, os poços esgotam-se e as privações de toda a ordem têm tornado a vida insustentável àqueles que persistem em ficar. As crianças, que são em reduzido número, para irem à escola primária do Azinheiro, na freguesia de Estoi, deslocam-se quatro quilómetros, desbravando caminho entre os cerros. Os jovens têm de ir para Faro estudar, o que é muito dispendioso e praticamente incomportável. O analfabetismo ronda os oitenta por cento e a fuga à escolaridade obrigatória não é um hábito mas antes uma necessidade.
A luz eléctrica foi instalada há cerca de cinco anos [1979], não possuem água encanada nem fontanário, as instalações sanitárias (quando existem) são rudimentares, não há telefones, não lêem jornais e o único contacto com o quotidiano exterior é feito através da rádio (que ouvem com frequência) e da televisão, cujo aparelho poucos possuem, mas que vêem amiúde, sendo o programa preferido a telenovela, que curiosamente designam por «Gabriela», qualquer que seja o seu título original.
Nos últimos quatro anos tiveram de comprar água nas imediações mais próximas, a qual transportavam em mulas e cântaros para utilização doméstica e amanho de algumas sementeiras, pois o único poço (que é comunitário) só este ano, devido à forte pluviosidade, atingiu um nível razoável. A inquinação das águas e a deflagração de um surto de febres tifóides são perigos constantes e iminentes.
A produção agrícola é fundamentalmente composta por cereais: centeio, trigo, cevada e outros. Colhem alguns frutos num terreno difícil, onde só resistem com abundância as alfarrobeiras, oliveiras, figueiras e amendoeiras, cuja produção poderia ser aproveitada de forma conveniente à sua comercialização.
A exuberância silvestre, fortemente marcada pela presença do rosmaninho, tomilho, giesta, alecrim, rosas albardeiras e outros arbustos floridos, transforma o terreno numa vasta área propícia à produção de mel.
A constante desarborização da serra tem sido a causa próxima da secura e esterilização dos solos, situação que futuramente poderá levar ao desaparecimento deste interessante aglomerado que dá pelo nome de Barranco de S. Miguel.
Esperemos que as autoridades do turismo regional aproveitem ao máximo as belezas naturais deste local, onde se pode desfrutar de uma beleza panorâmica inigualável no Algarve. Sugerimos também aos futuros visitantes do cerro de S. Miguel que não deixem de confraternizar com o povo do sítio de Barrancos, esquecido e marginalizado desde há largas décadas, sofrendo em silêncio as amarguras de uma existência praticamente sem futuro.

(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias», em 24-9-1984)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Tradições do Natal Português


José Carlos Vilhena Mesquita

Num país como o nosso, de reduzidas dimensões territoriais, é impensável que a festa da Natividade assuma proporções etnográficas dignas de elevado relevo. Além disso, em quase todo o mundo se celebra idêntica data, se bem que nem sempre com o mesmo espírito religioso e festivo que nós, europeus, lhe outorgamos.
Na realidade, desde os primórdios do cristianismo que se celebra esta solene data, muito embora se deva salientar que no início do século V se comemorava o nascimento de Cristo no mês de Janeiro, e no ano de 432 festejava-se simultaneamente no dia 25 de Dezembro a Natividade e a adoração dos Reis Magos. O estabelecimento desta data como aniversário do nascimento de Cristo deve-se a São João Crisóstomo, que no panegírico de S. Figolonio, pronunciado no ano de 386, defendeu a sua autenticidade. Houve, porém, que esperar pelo pontificado de Júlio II para definitivamente se estabelecer como dia de Natal a data de 25 de Dezembro.
A primitiva festa da Natividade consolidou-se durante a vigência do Papa Sisto III (432-440), e apontava já para o estabelecimento de duas celebrações bastante características: a do Presépio e a da Santa Missa, com as respectivas orações litúrgicas. A primeira deu grande impulso ao carácter festivo da celebração e realizava-se principalmente na basílica romana de Santa Maria, que passou desde então a denominar-se ad praesepe. Quanto aos ofícios litúrgicos, celebravam-se no mesmo templo e tinham um acentuado carácter mariano, obedecendo à clara intenção de converter a Natividade numa vigília nocturna, semelhante à que se celebrava na Páscoa.
A devoção e o gosto pela festa da Natividade acentuaram-se ainda mais quando o Papa Teodoro, no século VII, trouxe para Roma as relíquias do berço do Menino Jesus e das manjedouras dos animais que aqueceram a sua nudez. Muito embora nos pareça existir em tudo isto algo de fantasioso, o certo é que ainda hoje se veneram essas relíquias como se fossem autênticas. Por certo, o que importa é a sua simbologia e não a sua verosimilhança.
Associada à festa do Natal celebravam-se durante a Alta Idade Média três missas rezadas pelo Papa na Igreja de Santa Maria Maior, sendo de realçar a primeira, a da meia-noite, popularmente designada por missa do Galo por ser propiaquante gallorum canti. A segunda missa, a da alvorada, rezava-se na Igreja de Santa Anastásia, já inexistente, e a terceira na Basílica de São Pedro, às quais se outorgava um profundo sentido místico, já que a primeira significava o nascimento de Cristo, a segunda a felicidade que Cristo veio trazer aos homens e, a terceira a realização das promessas da lei santa.
Presentemente só a missa do Galo prevalece na tradição cristã e no espírito popular, se bem que a corrosão dos tempos e o materialismo da vida actual haja desbotado o seu significado. De qualquer modo, há que assinalar a permanência de algumas tradições de raiz medieval, que, nas terras do interior, ainda se vão mantendo, mau grado a aculturação motivada pelo surto emigratório. Mesmo assim, a época natalícia tem um carácter telúrico e vigoroso que, em certos casos, especialmente em Trás-os-Montes e nas Beiras, se assume como fonte inesgotável de conhecimentos nos domínios da etnografia e da demopsicologia. Como características gerais apontam-se a queima do madeiro ou cepo, a consoada, a Missa do Galo, o presépio, as Janeiras e Reis, os cortejos evocativos dos Reis Magos e os autos, entremezes e vilancicos.

A queima do madeiro ou do cepo

Em praticamente toldas as províncias do País se verifica a tradição do fogo da lareira familiar, alimentado por um enorme toro de madeira, que no Minho tem o nome de Canhoto, enquanto nas restantes regiões lhe chamam madeiro ou cepo.
Conforme a tradição, é preferível que o cepo seja de oliveira, árvore da paz, por ser dessa madeira a cruz de Cristo. Por outro lado, associam-se-lhe tradições profanas, pois que quanto mais grosso ele fosse mais gordo seria o porco para a matança do ano. Além disso, também se lhe atribuem poderes sobrenaturais, pois que os restos que não arderem serão guardados para com eles se preservar o lar das trovoadas e outras iras divinas. E para provar esta regra muitas lendas dramáticas se narram contra aqueles que violam a tradição e a crença do povo.
No fundo, a incineração do madeiro ou cepo não é mais do que a revitalização do fogo simbólico originário do rito pagão, que nos adros das igrejas e capelas crepita, abrasivo e luminoso, por entre os grupos de jovens que lhe dedicam inúmeras quadras do vasto cancioneiro natalino.

A ceia grande ou consoada

Normalmente designada por festa da família, por se reunir à mesa a maioria dos familiares, era costume realizar-se a consoada depois da Missa do Galo. Contudo, hoje, essa tradição já se vai perdendo devido ao desuso das antigas ceias. E na composição das ementas é que se constatam algumas heterogenias de carácter antropológico resultantes das assimetrias sociogeográficas.
Assim, enquanto no Minho predomina o bacalhau cozido com batatas, ovos e tenros, “tronchos” de “coivão” da horta, em Trás-os-Montes, no Centro Litoral e no Alentejo assa-se o leitão ou come-se um lauto assado de porco, regado com bom vinho novo. Por sua vez, na Estremadura, no Ribatejo e nas ricas casas beirãs, come-se o tradicional peru recheado de acepipes saborosos, enquanto no Algarve nos deliciamos com o lendário pitéu da carne de porco com amêijoas e linguiça assada, prato este já caído em desuso mercê da aculturação turística do peru.
Paralelamente ao “presigo”, as mesas, os armários e escaparates, estão repletos de doçarias de toda a espécie, variando igualmente de região para região. Por exemplo, no Minho os «mexidos» arabescados com canela da Índia, assumem posição de destaque, logo acompanhados pelas deliciosas rabanadas ensopadas no mel doirado, pelo leite-creme crestado com açúcar caramelizado, pelos pratos de aletria, pelo pão-de-ló e bolo-rei, este ultimo já importado desde há longa data. Nas Beiras confeccionam-se filhós estendidas. fatias-douradas, coscorões, bilhós, pães-leves, merendas, bicas e arroz-doce. No Douro, comem-se rabanadas, formigos, mexidos, sopas secas, ovos queimados, sonhos, arroz-doce, aletria, figos, uvas-passas e vinho quente. No Ribatejo tem especial relevo o bolo-podre, as broas, os bolos de gema e as azevias compostas por grão, arroz-doce e filhós. No Alentejo saboreiam-se as filhós, azevias, sonhos, borrachos e os nogados, à base de nozes, amêndoas ou pinhões misturados com mel. Finalmente, no Algarve, apreciam-se doirados fritos escorrendo mel, filhós, bolinhóis, empanadilhas de batata-doce, figos, pinhões e nogado.
Como facilmente se depreende, é ao nível da doçaria que as diferenças se acentuam, se bem que a gastronomia seja igualmente um indício da personalidade do nosso povo. Mas passemos adiante.

A Missa do Galo

Atendendo a que se trata duma celebração religiosa, não se radicalizam quaisquer heterogenias regionais. No entanto, pela circunstância de só se realizar nesta quadra do ano, não podemos deixar de salientar a sua singularidade litúrgica. Mas como especial atractivo registe-se o desvelamento do Presépio, que ate aí permanecia envolto numa cortina para dar ao acto um carácter mais solene. O pároco, após dar a conhecer a ingénua composição de figuras de barro. Celebra a missa enquanto o povo entoa cânticos de Natal. Por fim, o pároco dá o Menino Jesus a beijar aos fiéis, que silenciosamente lhe pedem mercês e protecção.
Como nota curiosa, é saliente nesta altura a boa disposição de todos os presentes alguns deles já bem bebidos e mais bem comidos.

O Presépio

A origem dos presépios remonta a São Francisco de Assis, que teve a genial ideia de fazer reviver, através da arte popular, as cenas bíblicas directamente relacionadas com o nascimento de Cristo. Em si mesmos, os presépios constituem uma lição viva de fraternidade, amor e humildade.
Compõem o presépio, a Sagrada Família, os Reis Magos e a respectiva cascata com a manjedoura e os animais que aqueceram o Menino. No entanto, o gosto popular acentuou este enternecedor quadro litúrgico com o acrescentamento de centenas de outras figuras da sua própria existência socioeconómica, como é o caso dos gaiteiros, moleiros, moinhos, açougueiros, pastores, ferreiros, sapateiros, sem esquecer naturalmente a tradicional cena da matança do porco. Aliás, convêm lembrar que o nosso país é tradicionalmente ceramista, rico em valores artísticos, alguns deles florescendo em grupo, como são exemplo as escolas de Lisboa e de Mafra. Com especial relevo para os discípulos de Machado de Castro. Na Estremadura as igrejas locais pugnavam pela realização de maravilhosos presépios e rivalizavam com os de Coimbra, Aveiro, Viseu e Lamego, igualmente notáveis pela majestosidade e profusão das suas figuras.
Armados nas igrejas, expostos admiração e culto dos povos, os presépios funcionam ainda hoje como principal atractivo religioso para a Missa do Galo. Pena é que nas residências particulares se vá cedendo à importação profana das escandinavas árvores de Natal, que nada tem de católico nem de latino. O mesmo se verifica com essa figura pouco significativa que é O Pai Natal. Igualmente originário das regiões rígidas do Norte da Europa.

As Janeiras e os Reis


O cantar das Janeiras e o domínio, quiçá o mais rico, do Cancioneiro Popular Português. A sua origem remonta igualmente ao tempo do paganismo em imitação das Saturnais Romanas que, ao converterem-se à religião crista, assumiram foros da maior originalidade.
No ancestral cantar das Janeiras está contido todo o espírito popular, a criatividade; a beleza, o encómio e o escárnio. Muito embora neste domínio se acentuem as heterogenias regionais, é, no entanto, comum a todo o País a composição de pequenos grupos corais, normalmente acompanhados de instrumentos musicais, que percorrem os mais variados lugares da sua freguesia ou vila, batendo às portas e entoando loas religiosas à mistura com quadras de fino gosto popular. O objectivo era serem bem recebidos pelos moradores que lhes ofereciam doces e vinho. Mas, caso não correspondessem a contento, eram “mimoseados” com canções de chacota, por vezes achincalhantes, e não raras vezes culminadas por cenas bem tristes e desnecessárias. As esmolas recebidas, em géneros, guloseimas ou dinheiro, eram em certas regiões destinadas à ceia ou festa do grupo, enquanto que noutras paragens revertiam a favor das almas do Purgatório. No Algarve são bem conhecidas as tradicionais charolas que na orla marítima do Sotavento ainda se mantêm com o mesmo fulgor de há dezenas de anos atrás. A recolha deste riquíssimo espólio da nossa literatura oral, foi, em parte, compilado por José Leite de Vasconcelos, Ataíde Oliveira e muitos antropólogos, amadores ou profissionais, que percorreram o País de lés-a-lés.

Os cortejos de Reis Magos

Esta tradição dos cortejos dedicados ao tema bíblico da adoração dos Reis Magos tem vindo progressivamente a desaparecer, se bem que em Coimbra e na aldeia de Tentúgal ainda se conserve na plenitude da sua beleza etnográfica.
Assim, em Coimbra, desfilam bandas de música acompanhadas de crianças de batina vermelha e cota de renda branca, transportando consigo turíbulos de incenso e oferendas para o Menino Jesus. Seguem-se os homens que ostentam bandeiras engalanadas e archotes em ignição, como que a abrirem caminho aos Reis Magos, cujas roupagens sumptuosas e brilhantes denunciam a presença real. Nesta conformidade percorrem as ruas da cidade até à Igreja de S. Bartolomeu, em cujo adro se representa um auto popular alusivo ao carácter festivo da própria comemoração. Por fim, procede-se ao leilão das oferendas, após o que o pároco dá o Menino a beijar.
Na pacata localidade de Tentúgal, o cortejo é precedido por numerosos gaiteiros e clarins que duma forma ruidosa e alegre se anunciam a aproximação do desfile. Este é encabeçado por um arauto, logo seguido por uma estrela brilhante e majestosa alusiva àquela que guiou os Reis Magos até Belém, e um pouco mais atrás desfilam as três altezas reais com as respectivas oferendas de ouro, incenso e mirra, que se fazem acompanhar pelos seus pajens e pelo numeroso público presente. Após percorrerem as ruas da povoação dirigem-se à aldeia de Ribeiva de Frades, de onde regressam a Tentúgal para confraternizarem em simultâneo com o povo de ambas as localidades.
No fundo, trata-se de um cortejo de carácter religioso, mas nem por isso menos importante do ponto de vista etnográfico, que merece ser preservado e minuciosamente estudado.

Autos entremezes e vilancicos

A origem dos autos de Natal perde-se no tempo e crê-se que as primeiras representações deste género teatral foram impulsionadas pela própria Igreja para melhor divulgar as suas doutrinas. Em Portugal, o dramaturgo que maiores êxitos alcançou foi Gil Vicente, sendo ainda hoje as suas peças muito apreciadas e procuradas pelo público. Muitos destes autos tem um carácter estritamente popular e por esse país fora ainda se representam anualmente. Recorde-se, por exemplo, em terras de Viana o Auto de Floripes, felizmente já estudado por especialistas, e que constitui um verdadeiro atractivo turístico nesta quadra natalícia.
Infelizmente, os grupos de teatro amador espalhados, por esse país fora, não costumam aproveitar esta fonte de inesgotável riqueza etnográfica, para darem a conhecer a nossa juventude algumas das tradições mais genuínas do nosso povo.
Quanto aos entremezes, que eram curtas representações teatrais de espírito jocoso ou burlesco, são vulgarmente designadas por farsas, género que Gil Vicente igualmente cultivou no decurso da sua obra. Presentemente, os entremezes raramente os representam.
Finalmente, os vilancicos são madrigais que se cantavam nas igrejas por ocasião do Natal e dos Santos Populares, mas que hoje caíram totalmente no esquecimento e poucas são as localidades em que ainda se conservam.
Enfim, de um modo geral, procurando ser breve e sucinto, penso que sobre as tradições do Natal português muito mais haverá que dizer se bem que cairíamos no aprofundamento das questões levantadas o que só contribuiria para a saturação do leitor.

(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias» em 24-12-1982)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Cacela a Velha – Imóvel de interesse público


José Carlos Vilhena Mesquita

O núcleo histórico de Cacela a Velha acaba de ser classificado [1983], pelo Instituto Português do Património Cultural, como imóvel de interesse público, devendo-se essa determinação oficial à aprovação de uma proposta apresentada, nesse sentido, pela Junta de Freguesia de Vila Nova de Cacela. Contudo, a justíssima petição do órgão mais representativo do povo de Cacela, teve como fundamento o brilhante estudo em tempos executado pelo Arq.º Cabeça Padrão que, justamente, apontava como um dos objectivos prioritários a classificação do Núcleo Histórico como imóvel de interesse público, de forma a evitar-se a degradação da arquitectura e do ordenamento paisagístico, não só da zona monumental, fronteira ao mar, como ainda de todo o conjunto urbano que felizmente ainda conserva evidentes traços das suas origens medievais. Saliente-se, igualmente, o incondicional apoio prestado pela ADIPACNA (Associação para a Defesa e Investigação do Património Cultural e Natural) e pelo município vila-realense, cabendo àquela organização a salvaguarda deste valioso núcleo histórico do qual fazem parte uma velha fortaleza, que serve de quartel à Guarda-fiscal, a Igreja Matriz e a secular ermida de Santa Rita.
A freguesia de Cacela, cuja origem remonta ao tempo dos Fenícios e que, segundo alguns historiadores teria sido a lendária Conistorgis, capital dos Cúneos, foi com toda a certeza uma das mais importantes localidades da ocupação árabe e nela residiu, se bem que temporariamente, o célebre conquistador do Algarve, D. Paio Peres Correia, cujos restos mortais julga-se que repousam na Igreja de S. Maria do Castelo, em Tavira. Também nesta povoação se evidenciam alguns resquícios da ocupação pré-histórica e especialmente romana (desde antas e outras necrópoles, até ao achamento de fustes de colunas, capitéis, moedas, cerâmica, mármores, etc.), em parte estudados por Estácio da Veiga, Santos Rocha, José Leite de Vasconcelos, e outros, muito embora devamos acrescentar que a maioria das estações arqueológicas conhecidas permanecem ainda inexploradas em progressiva degradação.
Cerca de 1240 foi esta povoação tomada aos Mouros por D. Sancho II que, juntamente com o seu castelo, a doou à Ordem de Santiago. Porém, decorridos dois anos voltou à posse dos muçulmanos para, em seguida, ser retomada pelo fronteiro-mor do Algarve e Mestre da referida ordem, D. Paio Peres Correia, que não mais a perdeu. Por sua vez, D. Afonso III, que em 1252 conquistou definitivamente o território do Algarve, confirmou em 1255 a doação feita por seu pai à Ordem de Santiago e seu filho, D. Dinis, outorgava-lhe a 17 de Julho de 1283 o primeiro foral.
Apesar do seu passado brilhante a vila de Cacela foi paulatinamente ofuscada pela cidade de Tavira, e pela aldeia piscatória de Monte Gordo, até que o Marquês de Pombal lhe deu o golpe fatal ao retirar-lhe os privilégios de sede de concelho, incorporando-a como freguesia da renascente Vila Real de Santo António. De qualquer modo, a permanência de várias famílias de agricultores (algumas delas até de origem nobre), a florescente pesca do atum e a posterior fundação de uma fábrica de telha francesa pertencente à Companhia de Cerâmica, possibilitou a continuidade do povoado, que apesar da sangria emigratória ainda hoje resiste, em parte devido ao turismo e às excelentes condições naturais da sua costa para a prática de desportos náuticos.
A fortaleza de Cacela, que defendia a entrada da barra de Tavira, é de origem bastante remota, sabendo-se por intermédio do prior Duarte Correia de Freitas, autor de uma memória datada de 1758, que ao pé da Igreja existia um castelo "que padeceu grande ruína com o terramoto de 1755", mas que acabou por ser reparado. É muito possível que esse castelo esteja, pelo menos em parte, integrado na actual fortaleza que, conforme documentação digna de crédito, foi mandada construir em 1770 por D.Rodrigo de Noronha, governador do reino do Algarve. Porem, a sua edificação terminaria apenas em 1794, no reinado de D. Maria I, sendo, nessa altura, governador e capitão general deste reino o Conde de Val de Reis, D. Nuno José Fulgêncio de Mendonça e Mourão. Inspeccionou aquela edificação militar o Dr. José Caetano de Andrade e Castro, guarda-mor da cidade de Tavira, conforme se pode constatar na inscrição que figura sobre a porta principal, e que passamos a transcrever:

EM O REINADO DA AIGVSTISSI
MA S D M I RAINHA DE PORTV-
GAL GOVERNADO ESTE RN.º
DO ALG. O INmo EXmo NUNO
JOSE FVLGENCIO DE MENDONSA
E MOURA CONDE DE VALDREIS
GENTIL HOME D. SAR. DE
PUTADO DA JUNTA DOS 3
ESTADOS GOVERNADOR E CApam
GENERAL DO REINO MANDOU RE
EDIFICAR E ACABO ESTA FOR-
TALEZA SENDO INSPECTOR
DA MESMA OBRA O Dor JOSE
CAETANO DANDRADE E CASTRO
GUARDA MOR DA CIDe DE TA-
VIRA.
ANNO DE 1794

Quanto à Igreja Matriz convirá dizer que a sua fundação remonta provavelmente ao séc. XIII, sendo depois, em 1518, construído sobre as suas ruínas o actual templo. Das suas origens resiste ainda uma velha porta lateral em estilo gótico e da edificação quinhentista assume especial interesse o seu belo pórtico renascentista, sobre o qual se destacam os bustos em baixo relevo de S. Pedro e de S. Paulo. Apresenta duas pilastras laterais ornadas de carrancas, dragões, machados, cabeças de anjo, tridentes, arcos e aljavas, todas dispostas numa sequência vertical. Tem três naves, separadas por arcos ogivais assentes em colunas de 1,70 m. de altura, com bases e capitéis oitavados, cujos elementos decorativos são hemisférios ou cordas, o que denota o seu estilo manuelino. O comprimento da igreja é de 24,5 m. e a altura é de 10,5 m., com cinco altares muito singelos, mas de grande beleza.
De salientar a abóbada artesoada, com bocetes estrelados, da capela da Senhora dos Mártires, e ainda uma grade de ferro seiscentista da capela do Santíssimo, e uma cruz processional de ferro decorada nas extremidades com as figuras de S. José, N. Senhora, S. João Evangelista e St.ª M.ª Madalena.
Esta igreja foi praticamente arrasada pelo sismo de 1755 e reedificada pelo Bispo D. Francisco Gomes do Avelar em 1795, encontrando-se hoje ainda aberta ao culto.
Por fim, a ermida de St.ª Rita, pequena e modesta, tem apenas um altar no qual assenta num nicho a imagem da Santa devendo-se igualmente a D. Francisco Gomes o seu restauro e protecção. Dista da Igreja Matriz cerca de 3 km., e desconhece-se a data da sua fundação.
Em suma, resta-nos aguardar que este exemplo da Associação para a Defesa do Património de Vila Real de St.º António, do respectivo município e da Junta de Freguesia de Cacela, venha a servir de estímulo às entidades oficiais do Algarve que, nomeadamente em Faro, não prestam o mínimo interesse ao valiosíssimo espólio histórico-cultural do seu próprio concelho.

(artigo publicado no semanário «Jornal do Algarve», n.º 1401 de 3-2-1984)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O Natal Algarvio perdeu tradições

José Carlos Vilhena Mesquita

Dificilmente se encontram hoje no Algarve os resquícios da festa natalícia genuinamente regional. Mesmo nos lugares mais recônditos da serra se esbateram as tradições, apesar de em toda a província não ser estranha a alegria que a verdadeira festa do lar traduz no espírito da família. No fundo, o Natal, quer seja minhoto, transmontano, beirão ou algarvio, contem um denominador comum: a celebração de uma festa religiosa com características muito intimas, na qual a família se reúne numa verdadeira apoteose dos seus continuadores – as crianças. O Natal é, por excelência, a festa da criança, o prolongamento da família, a personificação da unidade e da esperança no futuro.
Os presentes, com que no início da nossa Era os Reis Magos homenagearam o Deus-Menino, são hoje simbolicamente os mesmos – embora materialmente muito diferentes – e servem para traduzir a felicidade do lar, a paz e a amizade entre os homens. Por isso, Natal sem consoada, sem presépio nem prendas, não é Natal. E estas são, sem sombra para dúvidas, as características mais gerais da festa, que, cada vez mais, se tornou pertença de um património universal.
Verifica-se, porém, que as influências culturais resultantes de uma heterogeneidade geomorfológica de insondável ancestralidade marchetaram as celebrações religiosas com dispares manifestações populares, que, de algum modo, as diferenciavam, criando-lhes uma individualidade peculiar, e, por vezes, algo estranha e muito curiosa. Com o seu estudo se preocuparam os etnógrafos e antropólogos, mas para o seu progressivo esvaziamento parece estar a contribuir um hodierno progresso tecnológico, emanado duma sociedade consumista e alienante, que tende a estandardizar as próprias raízes culturais dos povos. O conservadorismo etnográfico, e a reserva do tradicional, assume-se hoje, numa perspectiva mais cosmopolita, como sintoma de atraso civilizacional. A mundialização do pinheiro escandinavo, e do Pai Natal normando, superaram, por observância da normalização comercial, os padrões culturais e as manifestações populares do Natal latino, esse sim, genuinamente cristão e profundamente visigótico. De tal forma assim é que o Natal secularizou-se para dar lugar a uma festa social, altamente vulgarizada, profundamente dependente duma indústria de mercado, que a força persuasora da publicidade e dos meios audiovisuais de comunicação tem vindo a banalizar.
Mesmo assim, apesar de todas as atrocidades etnográficas a que impavidamente temos vindo a assistir, o Natal é, e será sempre, a festa do lar, a apoteose da criança, um hino de paz que apela à fraternidade humana.

À procura do Natal algarvio

Tal como acima ficou explicitado, não existe hoje propriamente um Natal algarvio. Contudo, tempos houve em que as manifestações natalícias se transformavam em verdadeiras festas da comunidade, com ligeiras ou salientes afirmações da cultura local, que se transformavam em peculiares variações, de região para região, às vezes mesmo de concelho para concelho. Nas comunas rurais sempre se evidenciou um sentimento de solidariedade e de confraternização entre os seus membros, ao qual o espírito religioso emprestava uma forte consistência. Era uma festa deambulatória, se assim se lhe pode chamar, usando o lar e a igreja coma balizas duma intercomunicabilidade fraternal em que as dissensões e incompatibilidades entre as pessoas se perdoavam e desfaziam num amplexo, que o respectivo pároco se esforçava por estreitar. Na região algarvia, dum luminoso cenário azul, falta-lhe na noite de consoada a neve e o frio enregelante, capaz de reter as pessoas no aconchego da cálida lareira.
Antigamente, logo após a consoada, as famílias costumavam visitar-se na noite de Natal, tradição que até há bem pouco se conservava no interior algarvio. As crianças saíam com os pais a visitar os lares mais queridos, comendo deliciosos pastéis de mel e provando espirituosos vinhos. A bondosa inocência do serrenho algarvio impregnava a noite de Natal com um fraterno calor humano verdadeiramente inigualável.
Na esperança de encontrarmos a chama ardente desse passado cultural, deslocamo-nos até ao concelho de S. Brás de Alportel, perdido na serra algarvia, cujos lugarejos percorremos ao sabor de seculares caminhos. Falamos com alguns anciãos de diferentes sítios, com pessoas instruídas e até com alguns jovens. No avaliação deste ligeiro inquérito, verificámos que as tradições antigas já se perderam, que na sua grande maioria são irrecuperáveis, que a juventude pouco se interessa com o passado, que a televisão faz reter as pessoas em casa, que a carestia de vida exterminou quase por completo as visitas aos lares, e, em suma, que o Natal se tornou na noite em que se recebem os presentes. Concordam todos que se trata da festa da família, marcada pela ceia natalícia e pela convivência com as crianças. Não obstante, os jovens preferem mais a noite de Passagem de Ano do que a noite de Natal, pois que, não se sentindo obrigados a ficar em casa com a família, reúnem-se em grupo para saírem até ao litoral ou às cidades mais cosmopolitas onde dançam e bebem até ao raiar da manhã. Surgiu mesmo uma nova tradição: a de presenciar o nascer do sol do Ano Novo.
Todavia, algo permanece ainda vivo do tradicional Natal algarvio, para alguns tão longínquo, mas para outros ainda saudosamente presente, sobretudo na memória dos mais idosos. Acima de tudo mantêm-se a Ceia de Natal, alguma gastronomia tradicional, a reunião da família e o presépio. Porém, são já raros os cantadores populares das janeiras e reisadas, cujos grupos de cantares se designam por “charoleiros”.
O dia de Natal continua a ser insofismavelmente o dia da Família, cujos membros se reúnem na casa dos pais, na do filho mais velho ou na do irmão mais “remediado". Curiosamente, ainda ouvimos falar dos morgados, termo que servia para designar os indivíduos mais ricos, em cujos lares se faziam lautas ceias de vários pratos, imensa doçaria e animada festa, para a qual se convidava o pároco. Durante a noite jogavam-se às cartas, contavam-se histórias antigas, revivia-se a memória dos antepassados, cantavam-se velhas modinhas, mimoseavam-se os mais idosos, presenteavam-se as crianças, filhos e netos. Às vezes reuniam-se numa só casa dezenas de familiares e amigos para celebrarem em conjunto a fraternidade natalícia.
Para estes lados da serra algarvia, e nesta altura do ano, vêem-se numerosas viaturas de emigrantes que apressadamente regressam aos seus lares de origem, para confraternizarem e reunirem-se com a família. A necessidade de afirmação do seu sucesso económico leva-os, por vezes, a realizarem ruidosas festas a que não faltam os acostumados foguetes.
Nos lares mais tradicionais, e que possuem antigas lareiras, queimam-se grossos madeiros, que se colocam atrás do fogo. Reza a tradição local que os rapazes solteiros, para no ano que se avizinha serem bafejados pela sorte, têm que durante a noite visitar nove madeiros, comendo filhós e bebendo vinho novo. Mas hoje já poucas casas se podem dar a esse luxo de receber tanta gente e de ter uma lareira acesa durante todos esses dias. Aliás, para combater o trio existem modernos caloríferos, para além de que as novas construções (os modernos apartamentos) nem sempre possuem fogão nem sala. De qualquer modo, dizem que quando o madeiro não chega a consumir-se inteiramente ate ao Dia de Reis deve-se parti-lo em pequenos pedaços, que servem para nos dias de tempestade se voltar a acender, evitando-se assim que algum raio fulmine o lar. Além disso, o Natal é também a festa da lareira, ou do ancestral fogo sagrado, e quanto maior for o madeiro e mais tempo durar a sua lenta incineração, maior e mais saudável ficará a seara. Parece que também dá mau agoiro não comer bolotas ou castanhas nas vésperas de Natal.
O presépio é tradição inalterável. Toda a gente monta o presépio, que nas casas mais modernas figura, por vezes debaixo de um incaracterístico e profano “pinheirinho”, enfeitado com luminosos conjuntos eléctricos. Nos lares mais antigos, porém, entroniza-se o Menino, numa espécie de altar, ou peanha, que as moças casadoiras constroem sobre uma mesa, sobrepondo varias gavetas invertidas e de tamanhos sucessivamente menores, cobertas de alvas toalhas de linho, enfeitadas com lamparinas de azeite, frutos variados, bonecos alegóricos à quadra natalícia e as tradicionais searas. Convém esclarecer que estas searas, com um significado simbólico de ancestral origem, obtêm-se colocando em pequenos recipientes uma porção de cereais, geralmente trigo, cevada, lentilhas, grãos ou centeio, mergulhados em água, que passados alguns dias germinam e crescem com colorações de um verde amarelado e suave, semelhante aos das verdadeiras searas. No último degrau desta curiosíssima pirâmide figurava o Menino Jesus, emoldurado pela luz radiante das luminárias, em volta do qual se reuniam os mais jovens, para no Dia de Reis entoarem alguns cânticos bastante peculiares:

O meu menino Jesus
Está lá alto na tribuna;
Está pedindo a sua mãe,
Que nos dê muita fortuna.

Eu vim ver este presépio,
Qual será o meu destino,
Por ser noite de ano bom,
Venho cantar ao menino.

Hei-de dar ao menino
Quatro, cinco, nove, seis,
E uma camisinha fina
Pra vestir, Dia de Reis.

Hei-de dar ao menino
Um galão pra cintura;
Que ele também me há-de dar
Um lugar na sepultura.


A ceia de Natal

Junto ao presépio montava-se a mesa para a ceia, repleta de enchidos, presunto, carnes variadas, deliciosos bolos de mel, filhós, fatias douradas, brinhóis, “empanadilhas” de batata-doce, estrelas de figo, queijos de figo, bolos de amêndoa, dons-rodrigos, figos torrados, amêndoas, pinhões, avelãs e nozes, tudo isto acompanhado de espirituosos vinhos e da saborosa medronheira algarvia. Ao contrário do bacalhau minhoto, come-se no Algarve um anafado galo, escolhido meses antes, o qual o povo desde logo designa por Galo do Natal. Porém, nas casas mais opulentas há quem mate um porco, cuja carne e cuidadosamente repartida, salgada ou defumada, para que dure ate à Quaresma.
Durante a noite ou depois da consoada alguns grupos de rapazes vão cantando de casa em casa até à hora da Missa do Galo. Entretanto, os chefes das famílias mais gradas da freguesia dirigem-se à igreja da paróquia, onde apresentam as boas-festas ao pároco e distribuem esmolas aos pobres. À meia-noite celebra-se a Missa do Galo, cujo templo foi previamente decorado, pelas senhoras mais respeitáveis da freguesia, com flores, velas e um magnífico presépio. No fim da Missa o pároco dá o Menino-Jesus a beijar aos fiéis, regressando depois todos a casa, com os mais novos a cantarolar algumas quadras alusivas à época, quando não se reúnem à volta de um madeiro ardendo ao ar livre, cantando e dançando um qualquer improvisado corridinho.
No dia seguinte, come-se o que sobrou da noite da consoada, voltando-se a reunir a família. Porém a alegria e bastante menor. Nas localidades da faixa litoral, especialmente nos bairros de pescadores, come-se pelo Natal o célebre leitão, litão, ou “peixe-de-cor”, que não é mais do que um pequeno esqualo, conhecido por pata-roxa, também aqui designado por caneja. Este pequeno tubarão, para ser transformado numa iguaria do natal algarvio, precisa de ter no mínimo um metro de comprimento para poder pesar pouco mais de um kilo. Prepara-se “escalado”, ou seja, aberto ao meio, depois é distendido numas canas em forma de papagaio, e após salgado põe-se a secar à soleira da porta de casa durante uma semana. Guarda-se depois em sítio seco para ser consumido no Inverno, sobretudo na consoada por ser mais barato do que o bacalhau. Este costume ainda hoje se mantém em Olhão e Portimão.
Curiosamente, na serra repete-se pelo Carnaval uma ceia algo semelhante à do Natal, com filhós e o tal, indispensável, galo. Por isto se vê quão simples e pobre se mantém a gastronomia por estas bandas, onde a agricultura continua a ser rudimentar, mal dando para a sobrevivência da família.
Na passagem de ano, ou noite de Ano Novo, a festa é semelhante à do Natal, embora muito mais alegre, marchetada por frequentes libações e bailaricos, que os mais jovens organizam nas sociedades recreativas ou nos clubes populares. As charolas e o cantar das janeiras são as manifestações mais castiças do povo serrenho e as mais características desta época. No Dia de Reis era costume fazer-se o bolo-rei, cuja confecção difere muito daquela que já nos habituamos a consumir durante toda a quadra natalícia. As tradicionais janeiras ou reisadas cantavam-se pela última vez, encerrando-se, deste modo, o mais belo período festivo do ano.
Presentemente, nas cidades do litoral algarvio já não existem quaisquer manifestações populares que identifiquem aquilo a que poderíamos chamar um “Natal diferente”. As tradições esbateram-se ou perderam irrecuperavelmente o sentido peculiar do Natal.
Hoje, o Natal é de cada um, nunca para todos, mas cada vez será menos do Algarve.

(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias» em 24-12-1985)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Manuel Gomes Guerreiro, um Homem superior a quem o Algarve deve a fundação da sua Universidade

J. C. Vilhena Mesquita

Os amigos, verdadeiros e sinceros, nunca deveriam desaparecer do nosso convívio. Fazem-nos falta, como se deles dependêssemos para equilibrar o espírito e sossegar a alma. Mais nos dói ainda o coração quando temos de falar deles no passado, isto é, quando apenas deles resta uma saudosa recordação. É o caso do Professor Engenheiro Manuel Gomes Guerreiro, de quem guardo a memória da mais profunda gratidão. Pessoalmente devo-lhe uma amizade sincera, enriquecida por uma franca e recíproca admiração. A paixão pelo Algarve, e o estudo dos seus mais diversificados aspectos histórico-culturais, era o cimento conglomerador da nossa amizade. E foi por causa dessa minha afeição algarviista que dele recebi o convite para ingressar no corpo docente da Universidade do Algarve.
Acima de tudo o Prof. Manuel Gomes Guerreiro foi um Homem de muitos saberes, a quem tudo suscitava a curiosidade do conhecer e do entender. Cientista esforçado, preocupado e proficiente, para quem a biodiversidade constitui uma harmoniosa estrutura erguida ao longo de milénios, como se fosse uma teia de interdependências na qual o homem parece ser um agente regulador e vigilante. Porém, era sua convicção que a incompetência e a ignorância dos políticos, acrescidas dos interesses económicos, tendiam a ameaçar o frágil equilíbrio ecológico do nosso planeta.
Afligia-o a responsabilidade de saber que sucessivas gerações anteriores, com sofridos sacrifícios, nos tivessem legado um património ambiental e um equilíbrio ecológico que a todo o momento tem sido descurado, alterado e irremediavelmente delapidado. Só um cientista com a sua capacidade para sentir o que o rodeia, e com uma enorme carga emotiva para entender os poetas, é que era capaz de escrever ciência com o calor das palavras simples, usadas por gente simples para atravessar a essência das coisas. No seu cientificismo académico nunca subiu à torre de marfim para se isolar da realidade nem do pragmatismo funcional. Preferiu a verdade primeira, concreta e sensível das coisas, para só depois a perscrutar com o olhar profundo e rigoroso da ciência. O saber é um encadeamento de sucessivas experiências e de acumuláveis conhecimentos, no qual a ciência representa alguns elos, mas não completa toda a cadeia cognitiva. Tinha disso consciência, e, por isso, respeitava todos os caminhos, todas as percepções e contributos, que o pudessem ajudar a compreender a realidade e o porquê das coisas, na plena certeza de que a verdade absoluta não passa de uma quimera filosófica.
Quantas vezes o ouvi dizer que existia uma ciência popular que o mundo científico levianamente desprezava. Quantas vezes me disse que com o povo humilde da serra algarvia se aprende mais do que se ensina. Percebi-o e dei-lhe razão no primeiro confronto directo com a realidade. Existe um saber próprio nas entranhas das terras fragosas e altaneiras que subsistiu ao longo dos séculos, preservando métodos e técnicas de trabalho, costumes e condutas sociais, medicinas alternativas, músicas e cantares, provérbios e ladainhas, enfim um mundo de conhecimentos que não é do foro exclusivo do etnólogo, mas sim de todo o cientista que faça da avidez do conhecimento e da humildade da aprendizagem o que Gomes Guerreiro fez: um lema de vida.
Para além da feição de homem de ciência, o Prof. Manuel Gomes Guerreiro foi, sobretudo, um homem íntegro, que nunca permitiu que os seus legítimos interesses lhe pervertessem o carácter ou lhe desviassem o prumo da honra. Foi, como diria o poeta, um homem perpendicular. Que aprendeu, mercê de grandes e sofridas desilusões, a perceber a falsidade, a traição e a mesquinhez dos “homens pequenos”. A vara com que se mede o estro dum homem não comporta os centímetros da sua estatura nem a altivez das suas palavras, mas antes a sua grandeza de carácter e a dimensão das suas atitudes e comportamentos. Disse-me muitas vezes que a crise de consciência democrática e de valores ético-sociais do mundo actual está intimamente ligada ao egoísmo e à velada satisfação de apátridas interesses económicos. E à imitação da primeira metade deste século, o actual regime democrático poderá correr riscos de sobrevivência e de satisfação das massas se nada se fizer para combater o clientelismo e a partidocracia. Por outro lado, insistia que o melhor investimento no futuro e a principal obrigação do Estado moderno é a Educação e a formação intelectual. A institucionalização da Escola aberta à formação livre e independente de curriculuns académicos estatizados, que evitasse a simples “caça ao canudo” para a obtenção de um emprego, era também um dos seus desideratos. Mas como tantos outros sonhos que o Prof. Gomes Guerreiro sustentou ao longo da vida, muitos deles não se concretizaram. Contudo o mais importante realizou-se: a Universidade do Algarve, da qual foi com toda a justiça o seu primeiro Reitor. Tive nessa altura a minha quota parte, não só na angariação de assinaturas para o Dr. José Vitorino poder exigir na Assembleia da República a discussão da fundação da nossa Universidade, como também alguns anos depois ao ter sido convidado pelo Prof. Gomes Guerreiro para docente fundador desta casa a que muito me orgulho de pertencer.
Devo pois confessar, que pessoalmente sempre recebi do Prof. Gomes Guerreiro as maiores deferências, sendo uma delas a sua adesão à AJEA – Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve, logo nos primeiros dias em que avancei com a sua criação.
Da sua biografia, que escrevi para o meu ainda inédito «Dicionário da Imprensa Algarvia», extracto para aqui os seguintes elementos:
Manuel Gomes Guerreiro, era filho de Manuel Guerreiro e de Maria Vitória Gomes, ambos naturais da freguesia de Querença. Nasceu a 20-1-1919 no sítio das Vargens, freguesia de Querença, dali se apartando dois anos depois em direcção a Faro, onde fez a instrução primária e se distinguiu no velho Liceu João de Deus. Em 1939 fez o exame de admissão ao Instituto Superior de Agronomia, onde concluiria, em 1943, o curso de engenheiro silvicultor. Em Alcobaça, sob a orientação do Prof. Vieira Natividade, elaborou a sua tese de licenciatura intitulada «O Problema do melhoramento Florestal do Género Populus», dado à estampa na Revista da Direcção Geral dos Serviços Florestais. A partir daí não parou com a investigação e os trabalhos publicados rondam hoje uma centena de títulos, os quais nos escusaremos de citar ao longo desta notícia por na sua grande maioria dizerem exclusivo respeito à sua especialidade científica.
Depois de ter passado pelo Instituto Botânico da Universidade de Coimbra, ingressou, em 1944, no Quadro de Investigação da Estação de Experimentação Florestal do Sobreiro, organismo sediado em Alcobaça e de grande prestígio internacional, chefiado pelo Prof. Abílio Fernandes. Aí se dedicou, durante 12 anos, ao estudo dos problemas do Melhoramento Genético, particularmente de espécies lenhosas incluídas nos géneros Populus, Castanea, Quercus e Pinus. A esse período remontam vários trabalhos de investigação publicados em revistas nacionais e estrangeiras.
Convidado a ingressar no quadro docente do Instituto Superior de Agronomia, apresentou-se em 1957 a defender provas para Professor Agregado ascendendo mais tarde, por concurso, a Professor Extraordinário da Universidade Técnica de Lisboa, na qual se integrava aquele Instituto. Em ambos os casos apresentou dissertações específicas e obteve aprovação por unanimidade. Em 1959 aceitou o convite do director do Instituto de Investigação Científica de Moçambique, sediado em Lourenço Marques (actual Maputo), para integrar o Quadro efectivo na qualidade de Investigador. Em 1963 foi-lhe conferida a posse do lugar de Presidente daquele Instituto. Naquela antiga colónia desempenhou também os cargos de Director da Sociedade de Estudos de Moçambique e do Museu de Álvaro de Castro, ambas instituições do maior prestígio científico.
No ano seguinte transferiu-se, em comissão de serviço, para o Instituto de Investigação Científica de Angola e daí para a Universidade de Luanda, onde, em 1968, viria a ser aprovado, por concurso público e unanimidade, para Professor Catedrático, através de provas que teve de vir realizar a Lisboa no Instituto Superior de Agronomia, perante um júri que incluía todo o corpo de professores catedráticos daquele Instituto. Regressando a Angola exerceu as funções de Director (por delegação do Reitor da Universidade de Luanda) dos cursos de Agronomia e de Silvicultura instalados em Nova Lisboa, actual Huambo, tendo aí leccionado várias disciplinas dos cursos de Engenharia Agrónoma e de Silvicultura. Em 1972, foi nomeada Vice-Reitor da Universidade de Luanda, onde se manteve até Janeiro de 1974, altura em que tomou posse, por convite do Ministro Veiga Simão, do lugar de vogal da Comissão Instaladora da Universidade de Évora. Em 1978 transferiu-se para a Universidade Nova de Lisboa, onde foi responsável pelo Departamento de Ciências do Ambiente, em virtude até das provas dadas como Secretário de Estado do Ambiente, no I Governo Constitucional, entre 1976 e 1977. Refira-se, por curiosidade, que só não ingressou no governo seguinte porque ao ser-lhe exigida a filiação no Partido Socialista recusou-se a fazê-lo, para garantir a liberdade e independência do poder executivo. Nos dois anos que se seguiram leccionou a disciplina de Ecologia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Quando em 1979 foi criada a Comissão Instaladora da Universidade do Algarve o Professor Manuel Gomes Guerreiro teve a honra de ter sido logo escolhido para a presidência daquele órgão, em que se manteve até 1982, ano em que lhe foi conferida a distinta posse de Reitor. Por razões diversas, que não importa agora esmiuçar, demitiu-se em 1986 daquele cargo, vindo a jubilar-se como Professor em Janeiro de 1989. Entre 1992 e 1994 aceitou o convite para exercer as funções de Vice-Reitor da Universidade Internacional, cargo que abandonou por decisão própria.
A sua vastíssima bibliografia reparte-se por domínios tão diversos como os Sistemas Agroflorestais, a Ecologia, e o Ensino Universitário. Para além de ter sido um consagrado cientista, não podemos deixar de salientar que ultimamente se tinha também revelado como um analista do binómio Desenvolvimento/Ambiente, usando perspectivas de observação e de enfoque teórico que poderão considerar-se muito próximas dos filósofos pós-modernistas que, de Toffler a Alghore, se debateram com os problemas de crescimento da industrialização, da poluição e da destruição do meio-ambiente.
Acompanhei-o até quase aos últimos dias de vida. E posso afirmar que não obstante os seus oitenta e um anos de idade, aparentava bom estado de saúde pelo que nada fazia prever que sentindo-se ligeiramente indisposto desse entrada num hospital de Lisboa no dia 9 de Abril, em cuja madrugada acabaria por falecer vítima de acidente cardio-vascular. O seu funeral realizou-se no dia seguinte, partindo da Igreja de São João de Deus, em Lisboa, para o cemitério da freguesia de Querença, onde foi celebrada missa de corpo presente pelo Padre Dr. Júlio Tropa Mendes, perante numerosa assistência constituída pela maioria do corpo docente da Universidade do Algarve, deputados, autarcas, entidades oficiais e governativas da região. Nessa tarde de Abril os céus fecharam-se para sempre, deixando para detrás, no altaneiro cemitério de Querença, o corpo de um amigo, cuja memória de gratidão sempre me acompanhará até ao resto dos meus dias.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Simone de Beauvoir no Algarve - um episódio nas relações luso-francesas


José Carlos Vilhena Mesquita

Há cerca de vinte e sete anos atrás publiquei no vespertino lisboeta «Diário de Notícias» um artigo em que recordava uma controversa visita de Simone de Beauvoir ao nosso país, a qual teve como particular ponto de referência a província do Algarve, e em especial a cidade de Faro. Nessa altura, o artigo pareceu-me oportuno e, talvez por isso, se justifique o bom acolhimento que recebeu da parte da comunidade literária. Estava, porém, longe de supor que a escritora francesa lhe sobrevivesse tão pouco tempo. Talvez por essa infeliz circunstância se possa explicar o facto da Biblioteca Nacional – numa exposição bibliográfica realizada logo após o desaparecimento da escritora – ter apresentado numa das suas vitrinas o artigo que pouco tempo antes lhe dedicara.
Tomando em consideração os anos decorridos e o interesse de que se reveste o próprio tema para a história cultural do Algarve, achei que deveria exumar o artigo das páginas do jornal para assim perpetuar a memória de uma das mais célebres escritoras da cultura europeia contemporânea. As relações culturais luso-francesas, que tantas tradições tiveram no Algarve na década de quarenta, constituem, por outro lado, um dos objectivos fundamentais deste despretensioso artigo.
Longe vai da memória dos presentes a meteórica passagem pelo Algarve da escritora francesa Simone de Beauvoir, nascida em Paris a 9-1-1908 e falecida na mesma cidade a 14-4-1986.
Ocorreu este feliz episódio em Março de 1945, por força de um convite que lhe fora oficialmente enviado pelo Instituto Francês em Portugal e pela sua delegação em Faro. Raras referências se tem feito a este acontecimento e a única excepção que conheço pertence ao Prof. Doutor João Medina, que no seu inteligente livro Salazar e França (Lisboa, Ed. Ática, 1977), lhe dedicou um capítulo intitulado «Simone de Beauvoir no Algarve» (Idem, pp. 144-l46), o qual aparece precedido duma extensa antologia retirada das obras A Força das Coisas e de Os Mandarins. Num estilo biográfico-memoralista, Simone de Beauvoir recorda a amarga impressão que lhe causou o clima Salazarista e a consequente situação económico-social, francamente desfavorável ao proletariado rural e fabril, materializada na fossilização dos conceitos de liberdade de expressão e de associação política. Um país pobre com sete milhões de habitantes, onde setenta mil comiam demasiado, enquanto os restantes passavam fome - afirmava e repetia Simone de Beauvoir nos seus livros. Sujo ocaso (“Sale hasard”) desabara sobre Portugal – parece ser a sua conclusão relativamente ao Estado Novo. Tamanhas “heresias” e “vitupérios” valeram-lhe a distinção de ver os seus livros proibidos no mercado livreiro português.

Familiares no Algarve

A principal razão da sua vinda ao nosso país prendia-se a motivações de ordem familiar, interligada com factores de ordem cultural. Efectivamente, estamos em crer que o convite formulado pelo Instituto Francês fora sugerido pelo seu cunhado Lionel de Roulet, casado com Hélène de Beauvoir, ambos refugiados no nosso país pouco antes do colapso militar da França, em 1939. Colocado em Lisboa, como membro directivo do referido Instituto, em breve Lionel de Roulet se transferiria para o Algarve, procurando na amenidade do clima o eficaz tratamento para uma, presumível, tuberculose óssea. Certamente não seria essa a sua doença, mas o certo é que igualmente para aqui o atraíam a mãe, Hélène Laure de Coninck, e o padrasto, o pintor Carlos Porfírio, intelectual da mais fina têmpera, antigo companheiro e amigo de Almada Negreiros, Fernando Pessoa, Amadeu de Sousa Cardoso, Santa Rita Pintor e tantos outros, que em 1917 aparecerá distinguido com as honras de Director e Fundador da revista Portugal Futurista – um dos marcos miliários do movimento modernista português.
Com efeito, Carlos Porfírio[1] numa das suas estadias em Paris consorciara-se, em segundas núpcias com Hélène Laure de Coninck, mãe de dois filhos: Lionel e Chantal. Esta senhora, de esmerada cultura e delicada educação, que era irmã da mãe de Simone de Beauvoir[2], viria a falecer ao Faro, em Dezembro de 1964.
Lionel de Roulet era um homem culto – suponho que fora aluno de Jean-Paul Sartre no Liceu do Havre e do mestre do Existencialismo traduzira o conto Estátuas Volantes, dado à estampa pela Editorial Inquérito. À frente da delegação do Instituto Francês, em Faro, viria a relacionar-se com os mais proeminentes intelectuais algarvios desse tempo, na sua maioria republicanos, de índole pacifista e contemporizadora, que formalmente se declaravam oposicionistas ao regime de Salazar.

O Círculo Cultural de Camões em Faro.

Decorria, então, a época áurea da Comemoração dos Centenários e com ela nasceu a ideia de fundarem um organismo cultural onde se pudessem reunir e implementar na comunidade farense o apreço pelas Humanidades e pela Ciência em geral.[3]
Deram-lhe o nome de Círculo Cultural de Camões e sediaram-se na Praça Alexandre Herculano, nos baixos do “Palácio das Lágrimas”, curiosa designação cuja origem não vale a pena aqui explicar.[4]
Rapidamente se elaboraram os Estatutos, que foram aprovados pelas entidades oficiais em 1940. As actividades culturais iniciaram-se nos finais desse ano na sede do Instituto Francês. A situação financeira do Círculo dependia dum subsídio da Junta de Província, que inclusivamente lhes prometera cinco salas no edifício que então se construía no chamado Largo da Pontinha, hoje designado por Largo da Liberdade. Esta situação de dependência, aliada a outros factores de carácter particular, ditou mais tarde a sua extinção, de cujas cinzas nasceria em 1943 o actual Círculo Cultural do Algarve. Vem, contudo, a talho de foice revelar que António Ferro fizera sigilosas reuniões numa conhecida estalagem próxima de Faro com intelectuais afectos ao regime, propondo a conversão daquele organismo aos ideais vigentes. Felizmente, nem todos viram no Círculo Camões o perigo “reviralhista” que se lhe pretendeu atribuir, recusando-se, portanto, a tomar parte em quaisquer manobras de boicote ou de apropriação ilegal.

Patrocínio Cultural da França.

Apesar de todas as dificuldades o Círculo Camões promoveu ou participou em várias iniciativas culturais que marcaram a época e não deixaram no olvido a sua, ainda que efémera, existência. Assim, registe-se a vinda ao Algarve do célebre coro infantil «La Manécanterie des Petits Chanteurs à la Croix de Bois», dirigidos pelo Abade Maillet e patrocinados pelo Instituto Francês. O grupo coral chegou a Faro a 29-12-1940 e no dia imediato realizou um concerto cujo produto revertia a favor dos pobres. A recepção fez-se com grande aparato na Câmara Municipal, onde discursaram os Drs. Justino de Bivar Weinholtz, Joaquim Magalhães, Lionel de Roulet, Abade Maillet e Francisco Guerreiro Barros. Para anunciar o espectáculo, que decorre no Cine-Teatro Farense, foram afixados interessantes cartazes da autoria de Hélène de Beauvoir e do artista algarvio Tóssan.[5] O êxito foi retumbante e as instalações do Teatro foram insuficientes para conter as largas centenas de espectadores.[6]
Outras iniciativas se seguiram, todas elas organizadas ou patrocinadas pelo Instituto Francês, visto que o Círculo Camões era uma espécie de sua filial.
Assim, decorreu entre 1941 e 1943 nas instalações do Círculo Camões vários cursos de línguas vivas, francês, inglês e alemão, embora suponha que este último nunca chegou a funcionar. Em Março de 1941, o crítico e professor de arte, Myron Malkiel Jirmounsky, pronunciou uma interessante conferência, no salão nobre da Câmara Municipal, subordinada ao tema «O Problema dos Primitivos Portugueses». No mesmo ano, Lionel de Roulet orientou no Círculo um curso de Literatura Francesa. A 14-11-1941 visitou o Algarve o ministro francês François Gentil, demorando-se nesta província três dias, tendo o Círculo Camões, de parceria com o Instituto, promovido algumas conferências daquele político, assim como um banquete de despedida nas instalações do Clube Farense. Por intermédio do mesmo ministro deslocou-se depois a Faro, em 9-12-1941, a pianista Reine Gianoli, aproveitando o Círculo para realizar alguns concertos pelo Algarve. Em Janeiro de 1942, Armand Guibert – conhecido tradutor de Fernando Pessoa – pronunciou uma palestra sob o patrocínio do Instituto Francês. Em Março, Lionel de Roulet inicia uma série de conferências sobre literatura francesa no séc. XIX. Em Maio, Bernard Michelin dava um concerto no Clube Farense, etc, etc. Não vale a pena continuar a enunciar as iniciativas conjuntas do Instituto Francês e do Círculo Cultural Camões, pois tornar-se-ia num vasto e enfastiante rol de concertos, conferências, exposições, cursos intensivos e outras manifestações culturais, que em Faro obtiveram assinalável êxito e muito contribuíram para o desenvolvimento cultural da região.


A revista «AFINIDADES»


Para além de tudo quanto ficou dito, merece especial destaque a publicação da revista «Afinidades», de cultura luso-francesa, que saiu em Setembro de 1942 sob a direcção do médico e musicólogo Dr. Francisco Fernandes Lopes e tendo como chefe da redacção Lionel de Roulet.[7]
A imprensa local acolheu com satisfação a nova revista[8] (de que se publicaram vinte números até Novembro de 1946), na qual colaboraram, entre outros, Joaquim Magalhães, Fernandes Lopes, Lionel de Roulet, Cândido Guerreiro, Abel Salazar, Ardré Gide, Moisés Amzalak, Paul Teyssier, Adolfo Casais Monteiro, Mário Dionísio, Saint-Exupéry, Albert Camus, Joel Serrão, Manuel da Fonseca, André Malraux, Jaime Brasil, Tomás Kim e Simone de Bauvoir, que assina um trabalho intitulado «D'un Novel Humanisme Français», que suponho ser o texto da sua conferência pronunciada em Faro. A capa foi desenhada por Hélène de Beauvoir e apresentava no centro uma vinheta com dois vultos medievais abraçados, como símbolo das afinidades existentes entre as culturas lusa e francesa. Aliás, desta talentosa pintora encontram-se em Faro, na sede da Alliance Française, dois painéis alegóricos, representando um a geografia literária da França e o outro a sinopse da história algarvia no contexto da História de Portugal. Em Fevereiro de 1943, Hélène de Beauvoir realizou no Secretariado de Propaganda Nacional uma exposição de pintura com 50 quadros, que mereceu da crítica grandes elogios.

Simone de Beauvoir no Algarve.

Como já disse, a escritora Simone de Bauvoir esteve na capital algarvia em Março de 1945, demorando-se no nosso país cerca de vinte dias. Dessa visita resultaram algumas das impressões que inspiraram não só os seus livros A Força das Coisas e Os Mandarins, como ainda uma série de artigos, publicados sob pseudónimo, no jornal «Le Combat»[9], os quais provocaram grande celeuma nos meios políticos e nos órgãos de informação nacional.
A sua conferência, pronunciada a 9 de Março pelas 21,30 na sede do Instituto Francês em Faro[10], obteve da imprensa local elogiosas referências. Vejamos um exemplo:
«Na Delegação do Instituto Francês em Faro, sob a presidência do Sr. Governador Civil (Dr. Antero Cabral) ladeado pelas autoridades locais, realizou a sua anunciada conferência sobre “A Vida Literária em França, da Ocupação à Libertação”, a distinta professora e publicista Simone de Beauvoir que foi apresentada pelo Prof. Lionel de Roulet.
A conferente que durante duas horas teve o condão de prender a atenção do auditório, sem o fatigar, fez uma brilhante prelecção e conseguiu comover e emocionar o seu numeroso auditório. O Sr. Governador Civil, agradecendo, extraiu o significado da lição de patriotismo dada pela França e posta em relevo pela conferente.
No final houve uma recepção íntima nas dependências da Pensão Sota, sendo exibidos bailados regionais algarvios e trocados afectuosos brindes».[11]
O clima hostil aos ideais democráticos que se vivia no país deve ter, pelo menos parcialmente, comedido a agressividade política da sua palestra. Simone de Beauvoir vinha distinguida como primeira enviada intelectual duma França renovada e livre, e apesar de se confrontar com uma audiência aburguesada, acomodada e protectora do Estado Novo, nem por isso deixou de atacar a ferocidade nazi e o demoníaco holocausto perpetrado nos campos de concentração:
«... não me amedrontava falar; mas havia uma distância, que por vezes me desencorajava, entre a experiência que evocava e o público. Este vinha escutar-me por ociosidade, snobismo e frequentemente, com malevolência: muitos auditores conservavam total afeição pelo fascismo; a sala manteve-se gelada; ninguém queria acreditar nos campos, nas execuções e nas torturas; quando me levantei, o agente consular disse-me: Pois bem, agradeço-lhe por ter contado estas coisas, que ignorávamos completamente».[12]
A ideia que Simone de Beauvoir levou do nosso país não foi a mais favorável e embora se referisse ao Algarve com algum pictorismo, o certo é que também não lhe escaparam os pormenores de desolação e pobreza que então grassavam nas classes rurais, por serem as mais desprotegidas:
«...Vi uma terra de cores africanas, florida de mimosas e eriçada de agaves, falésias abruptas chocando com um oceano tranquilizado pela doçura do céu, aldeias caiadas de branco, igrejas de um barroco mais circunspecto que o de Espanha; (...) De longe a longe avistava grupos de homens e mulheres curvados para o solo, que sachavam num movimento ritmado: vermelhas, azuis, amarelas, laranja, as roupas brilhavam ao sol. Mas já não me deixava iludir; havia uma palavra que começava a medir o peso: a fome. Sob os tecidos coloridos, aquelas pessoas tinham fome; andavam descalças, cara fechada; e nas aldeias falsamente graciosas, reparei nos seus olhares hebetados; debaixo do sol esmagador, queimava-os um desespero selvagem».[13]
Durante a sua estadia percorreu o país de norte a sul. Gostou do Minho, apreciou os nossos vinhos, o artesanato, os costumes etnográficos, as feiras, o mar e a gastronomia. Mas por todo o lado o seu olhar forasteiro tecia impiedosas críticas à frugalidade em que viviam as camadas populares. Impressionaram-na os inúmeros pedintes, na sua maioria crianças que apresentavam sinais de evidente desnutrição. «O povo era deliberadamente mantido na porcaria e na ignorância»[14], conclui Simone de Beauvoir.
De qualquer modo, a visita foi compensadora para a escritora francesa, mercê da compensação financeira de que foi dotada a sua deslocação, podendo assim dar-se ao luxo de adquirir imenso vestuário, algum calçado e saborear pitéus, que em França o clima de guerra tornara de todo impensáveis.
Ao longo das suas memórias denota não só um acerado espírito crítico – por vezes injusto e até exagerado – como também um intrínseco burguesismo (chegou inclusivamente a comprar um casaco de peles, sapatos de fina pelica e meias de vidro), atitude que contrariava as suas ideias políticas, mas que se devem desculpar a uma mulher que, apesar de tudo, não gostava que lhe chamassem vaidosa.
Os tempos passaram e com eles despontou o reconhecimento público do seu inigualável talento literário, demonstrado pela sua numerosa lista de obras, que lhe granjearam desafogados meios de sobrevivência, um carisma e uma invejável celebridade. Após o desaparecimento de Jean-Paul Sartre (seu marido à hora da morte), viveu despreocupadamente os anos que ainda lhe restavam, de certo modo já afastada daquela atribulada e sensacional vida cultural, que pela sua obra deixou vincadas marcas na intelectualidade francesa e nas gerações europeias contemporâneas.
Mas no remanso da sua acolhedora residência, preenchida de fabulosas recordações dum passado a todos os títulos brilhante, certamente já não se lembrava daquela auspiciosa primavera de 1945, nem daquele deslumbrante Algarve de «falésias abruptas chocando com um oceano tranquilizado pela doçura do céu». E o Algarve esta hoje tão diferente... A vida passa... mas ficam as recordações.


NOTAS

[1] Pintor e cineasta, Carlos Filipe Porfírio nasceu em Faro a 29-3-1895 e faleceu nesta cidade a 25-11-1970. Herdou os seus dotes de artista do pai, José Filipe Porfírio (pintor, decorador e conservador do Teatro Lethes), estudou nas Belas Artes e conviveu de perto com os homens do «Orpheu». Em 1917 surge na direcção da revista «Portugal Futurista», cuja edição de 10.000 exemplares foi em grande parte apreendida pela polícia. Viajou pela Europa e fixou-se em Paris, onde estudou com artistas famosos. Em 1918 realizou em Faro um exposição de parceria com Jorge Barradas, Lyster Franco e Raul Carneiro. Foi o mentor da página futurista do jornal farense «O Heraldo», dirigido pelo pintor Lyster Franco. No salão da «Ilustração Portuguesa» realizou ao 3-2-1923 uma exposição de assinalável êxito. Com o enteado Lionel de Roulet fundou o Círculo Cultural Camões, em Faro, e já em Lisboa notabilizar-se-ia como cineasta ao realizar os filmes Um Grito na Noite, que obteve grande sucesso, e Sonho de Amor. Entretanto em 1940, por ocasião das Comemorações dos Centenários, promoveu a memorável Exposição Regional Algarvia. Mas a sua obra imortal foi, sem sombra de dúvida, o excelente Museu Etnográfico por ele instituído em Faro e para o qual pintou excelentes quadros retratando as lendas algarvias, os costumes populares e as festas religiosas. Acometido por grave enfermidade na garganta, passou os últimos anos de vida completamente afónico e impossibilitado de comunicar com os seus inúmeros amigos e admiradores. Faleceu vítima de um enfarte do miocárdio.

[2] Não tenho a certeza desta filiação, muito embora o Prof. João Medina, baseado em informações cedidas pelo Dr. Joaquim Magalhães, a dê como certa e verosímil.

[3] Neste centro de cooperação intelectual e de formação cultural pretendiam-se atingir objectivos à escala regional, nacional e universal:
«Sur le plan régional il s'appliquera à mieux faire connaître tout ce qui concerne l'Algarve, tous les traits qui font sa personnalité géographique et historique. Il créera une ambiance favorable capable de stimuler les créateurs ou les chercheurs qui se trouvent dans cette province. Il pourra même avoir un certain rôle social (...)
Sur le plan national, il s'agira surtout de faire connaître à la province les personnalités qui font la gloire de la science des lettres ou des arts portugais, au moyen des conférences, d'expositions, de concerts, etc...
Le plan de l'information en général concerne toutes les questions d'ordre culturel. Mais sont spécialement prévus: des cours de vulgarisation scientifique sur le thème: "Histoire des découvertes qui firent le monde modern; lumière électrique, photographie, T.S.F., aviation, etc" et des conférences destinées à procurer une représentation de l'Univers conforme aux derniers données de la science: astronomie, physique, etc...»
Institut Français au Portugal, Le Cercle Culturel Camoens Faro, s/l, Ed. du Bulletin d'Etudes Portugaises, 1941, p. 2.

[4] Aproveito para explicar agora essa origem. Segundo reza a tradição, naquela casa viveu o compositor Militão Coelho que sendo um musicólogo verdadeiramente genial, era também uma pessoa muito livre e atreita a compromissos ou a qualquer tipo de sujeição. Por vezes ficava dias sem sair á rua, outras vezes saía de Faro e só aparecia passados vários meses. Ora aconteceu que em determinada altura ficou noivo de uma senhora de Faro, de boas famílias, com a qual casou talvez um pouco precipitadamente. Pelo seu feitio, livre e distraído, parece que não fazia a senhora muito feliz. Até que um dia, sem que nada o fizesse prever, foi para Lisboa e nunca mais voltou para a sua casa de Faro. Numa cidade provinciana este exemplo de abandono do lar conjugal causou o maior escândalo. Não sei se com verdade ou se por pena da esposa preterida, o certo é que o povo deu em chamar àquela belíssima residência no antigo Largo da Alagoa, como o “Palácio das Lágrimas”, pois que supostamente a senhora passava os seus dias a carpir a chamada “viuvez de vivo”.

[5] O cartaz de Hélène de Beauvoir apresentava ao centro uma criança a cantar, ladeada por três anjos e três jovens tambores, enquanto o de Tóssan mostrava uma criança ajoelhada com a seguinte legenda: «Meu Deus faz com que o papá me compre um bilhete para ir ouvir os pequenos cantores».

[6] Vieram a Faro camionetas de Loulé (duas), Olhão e São Braz de Alportel. O espectáculo que contou com a presença do bispo D. Marcelino Franco, foi apresentado pelo Dr. Mário Lyster Franco, que pronunciou um brilhante discurso, e a organização esteve a cargo do Dr. Joaquim Magalhães, Aleixo da Cunha, Carlos Porfírio e Lionel de Roulet.

[7] Vide José Carlos Vilhena Mesquita, História da Imprensa do Algarve, 2 vols. , Faro, Ed. da Comissão de Coordenação da Região do Algarve, 1988-1989, vol. I, pp. 102-104.

[8] «Em Faro, capital do sul, acaba de nascer uma revista que se propõe exprimir as afinidades profundas de Portugal e da França. E, por isso, escolheu o título “Afinidades”. Entre outras actividades propõe-se esta revista manter o público ao corrente dos mais recentes movimentos literários, artísticos e científicos franceses e relacionar oportunamente o passado cultural comum aos dois países. Nas grandes crises espirituais que periodicamente nos arrancam à nossa quietude, habituamo-nos a voltar-nos para a França (...) Qual será a contribuição francesa para o novo humanismo em formação ? É este o inquérito que “Afinidades” tem como próximo e primacial objectivo.
E é neste espírito que trabalha um grupo de colaboradores portugueses e franceses. O Dr. Fernandes Lopes, que dirige a revista, é um notável exemplo destes homens, cuja cultura é tão vasta que abrange as riquezas espirituais de duas nações. Este primeiro número é um êxito completo.
Sob a capa cor de creme, ornada de uma vinheta de estilo medieval, símbolo da amizade luso-francesa, encontramos uma apresentação agradável e variada com belas gravuras, sugestivas reproduções e 96 páginas de texto...»
In «Correio do Sul», semanário de Faro, n.º 1333 de 1-11-1942.

[9] Cf. A Força das Coisas, Amadora, Livraria Bertrand, 1978, p. 41.

[10] Vide «Correio do Sul», n.º 1451 de 8-3-1945.

[11] In «O Algarve», de 25-3-1945.

[12] In A Força das Coisas, op. cit., pp. 39-40.

[13] In Idem, p. 38.

[14] In Idem, p. 40.