segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Cacela a Velha – Imóvel de interesse público


José Carlos Vilhena Mesquita

O núcleo histórico de Cacela a Velha acaba de ser classificado [1983], pelo Instituto Português do Património Cultural, como imóvel de interesse público, devendo-se essa determinação oficial à aprovação de uma proposta apresentada, nesse sentido, pela Junta de Freguesia de Vila Nova de Cacela. Contudo, a justíssima petição do órgão mais representativo do povo de Cacela, teve como fundamento o brilhante estudo em tempos executado pelo Arq.º Cabeça Padrão que, justamente, apontava como um dos objectivos prioritários a classificação do Núcleo Histórico como imóvel de interesse público, de forma a evitar-se a degradação da arquitectura e do ordenamento paisagístico, não só da zona monumental, fronteira ao mar, como ainda de todo o conjunto urbano que felizmente ainda conserva evidentes traços das suas origens medievais. Saliente-se, igualmente, o incondicional apoio prestado pela ADIPACNA (Associação para a Defesa e Investigação do Património Cultural e Natural) e pelo município vila-realense, cabendo àquela organização a salvaguarda deste valioso núcleo histórico do qual fazem parte uma velha fortaleza, que serve de quartel à Guarda-fiscal, a Igreja Matriz e a secular ermida de Santa Rita.
A freguesia de Cacela, cuja origem remonta ao tempo dos Fenícios e que, segundo alguns historiadores teria sido a lendária Conistorgis, capital dos Cúneos, foi com toda a certeza uma das mais importantes localidades da ocupação árabe e nela residiu, se bem que temporariamente, o célebre conquistador do Algarve, D. Paio Peres Correia, cujos restos mortais julga-se que repousam na Igreja de S. Maria do Castelo, em Tavira. Também nesta povoação se evidenciam alguns resquícios da ocupação pré-histórica e especialmente romana (desde antas e outras necrópoles, até ao achamento de fustes de colunas, capitéis, moedas, cerâmica, mármores, etc.), em parte estudados por Estácio da Veiga, Santos Rocha, José Leite de Vasconcelos, e outros, muito embora devamos acrescentar que a maioria das estações arqueológicas conhecidas permanecem ainda inexploradas em progressiva degradação.
Cerca de 1240 foi esta povoação tomada aos Mouros por D. Sancho II que, juntamente com o seu castelo, a doou à Ordem de Santiago. Porém, decorridos dois anos voltou à posse dos muçulmanos para, em seguida, ser retomada pelo fronteiro-mor do Algarve e Mestre da referida ordem, D. Paio Peres Correia, que não mais a perdeu. Por sua vez, D. Afonso III, que em 1252 conquistou definitivamente o território do Algarve, confirmou em 1255 a doação feita por seu pai à Ordem de Santiago e seu filho, D. Dinis, outorgava-lhe a 17 de Julho de 1283 o primeiro foral.
Apesar do seu passado brilhante a vila de Cacela foi paulatinamente ofuscada pela cidade de Tavira, e pela aldeia piscatória de Monte Gordo, até que o Marquês de Pombal lhe deu o golpe fatal ao retirar-lhe os privilégios de sede de concelho, incorporando-a como freguesia da renascente Vila Real de Santo António. De qualquer modo, a permanência de várias famílias de agricultores (algumas delas até de origem nobre), a florescente pesca do atum e a posterior fundação de uma fábrica de telha francesa pertencente à Companhia de Cerâmica, possibilitou a continuidade do povoado, que apesar da sangria emigratória ainda hoje resiste, em parte devido ao turismo e às excelentes condições naturais da sua costa para a prática de desportos náuticos.
A fortaleza de Cacela, que defendia a entrada da barra de Tavira, é de origem bastante remota, sabendo-se por intermédio do prior Duarte Correia de Freitas, autor de uma memória datada de 1758, que ao pé da Igreja existia um castelo "que padeceu grande ruína com o terramoto de 1755", mas que acabou por ser reparado. É muito possível que esse castelo esteja, pelo menos em parte, integrado na actual fortaleza que, conforme documentação digna de crédito, foi mandada construir em 1770 por D.Rodrigo de Noronha, governador do reino do Algarve. Porem, a sua edificação terminaria apenas em 1794, no reinado de D. Maria I, sendo, nessa altura, governador e capitão general deste reino o Conde de Val de Reis, D. Nuno José Fulgêncio de Mendonça e Mourão. Inspeccionou aquela edificação militar o Dr. José Caetano de Andrade e Castro, guarda-mor da cidade de Tavira, conforme se pode constatar na inscrição que figura sobre a porta principal, e que passamos a transcrever:

EM O REINADO DA AIGVSTISSI
MA S D M I RAINHA DE PORTV-
GAL GOVERNADO ESTE RN.º
DO ALG. O INmo EXmo NUNO
JOSE FVLGENCIO DE MENDONSA
E MOURA CONDE DE VALDREIS
GENTIL HOME D. SAR. DE
PUTADO DA JUNTA DOS 3
ESTADOS GOVERNADOR E CApam
GENERAL DO REINO MANDOU RE
EDIFICAR E ACABO ESTA FOR-
TALEZA SENDO INSPECTOR
DA MESMA OBRA O Dor JOSE
CAETANO DANDRADE E CASTRO
GUARDA MOR DA CIDe DE TA-
VIRA.
ANNO DE 1794

Quanto à Igreja Matriz convirá dizer que a sua fundação remonta provavelmente ao séc. XIII, sendo depois, em 1518, construído sobre as suas ruínas o actual templo. Das suas origens resiste ainda uma velha porta lateral em estilo gótico e da edificação quinhentista assume especial interesse o seu belo pórtico renascentista, sobre o qual se destacam os bustos em baixo relevo de S. Pedro e de S. Paulo. Apresenta duas pilastras laterais ornadas de carrancas, dragões, machados, cabeças de anjo, tridentes, arcos e aljavas, todas dispostas numa sequência vertical. Tem três naves, separadas por arcos ogivais assentes em colunas de 1,70 m. de altura, com bases e capitéis oitavados, cujos elementos decorativos são hemisférios ou cordas, o que denota o seu estilo manuelino. O comprimento da igreja é de 24,5 m. e a altura é de 10,5 m., com cinco altares muito singelos, mas de grande beleza.
De salientar a abóbada artesoada, com bocetes estrelados, da capela da Senhora dos Mártires, e ainda uma grade de ferro seiscentista da capela do Santíssimo, e uma cruz processional de ferro decorada nas extremidades com as figuras de S. José, N. Senhora, S. João Evangelista e St.ª M.ª Madalena.
Esta igreja foi praticamente arrasada pelo sismo de 1755 e reedificada pelo Bispo D. Francisco Gomes do Avelar em 1795, encontrando-se hoje ainda aberta ao culto.
Por fim, a ermida de St.ª Rita, pequena e modesta, tem apenas um altar no qual assenta num nicho a imagem da Santa devendo-se igualmente a D. Francisco Gomes o seu restauro e protecção. Dista da Igreja Matriz cerca de 3 km., e desconhece-se a data da sua fundação.
Em suma, resta-nos aguardar que este exemplo da Associação para a Defesa do Património de Vila Real de St.º António, do respectivo município e da Junta de Freguesia de Cacela, venha a servir de estímulo às entidades oficiais do Algarve que, nomeadamente em Faro, não prestam o mínimo interesse ao valiosíssimo espólio histórico-cultural do seu próprio concelho.

(artigo publicado no semanário «Jornal do Algarve», n.º 1401 de 3-2-1984)

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