domingo, 31 de dezembro de 2017

FOGAÇA, Marisabel

A escritora Marisabel Fogaça
Pseudónimo literário da escritora e publicista Maria Isabel Fogaça Xavier, nascida na freguesia da Mexilhoeira Grande, em Portimão, a 15-11-1914, e falecida em Lisboa, a 20-1-1985. Era filha de Francisco José Xavier, e de Maria Júlia Leal Fogaça.
Realizou os preparatórios na terra natal, seguindo depois para Faro onde concluiu o Magistério Primário. Exerceu durante alguns anos, mas um casamento muito jovem, com Hugo Limpo de Negrão Buísel, e a necessidade de angariar maiores proventos afastou-a da docência e do Algarve. Foi trabalhar como funcionária de uma grande empresa de Lisboa, subindo na escala da competência e da confiança profissional até quase à intimidade da direcção, que depositava no seu trabalho a maior credibilidade.
Anos mais tarde foi para Angola, tendo colaborado assiduamente na Rádio Clube de Angola.
Marisabel Fogaça ficou conhecida no meio literário nacional como uma escritora de mediana qualidade, tendo como público alvo a mulher jovem e pouco instruída, romântica e sensível, para a qual não interessa escrever de forma rebuscada e muito elaborada. O que importava, sim, era escrever num estilo claro, simples e pouco exigente, mas sempre empolgante, com traições amorosas, ciladas dos colegas de trabalho e denúncias perjurosas, amizades desfeitas por velados interesses económicos, relações paralelas e, equívocos dramáticos, enfim toda uma panóplia representativa das misérias humanas, entrecortada por deslealdades, frustrações, angústias, suicídios, etc. Não há dúvida nenhuma que os seus livros não passaram incólumes, nem aos olhos da crítica nem dos seus leitores. Em certos casos chegaram a atingir grandes vendas, como foi o caso de do romance Manuela, publicado em 1945, que alcançou a 8.ª edição, vendendo milhares de exemplares.
Como escritora, Marisabel Fogaça começou a revelar-se na literatura infantil, escrevendo vários livrinhos muito interessantes e instrutivos, de grande utilidade para a formação moral, religiosa e educativa das crianças. Aventurou-se também na poesia, mas apenas com uma ligeira e infrutífera tentativa, de que resultaria pouco mais do que Nada, Nada, título aliás mal conseguido até por ser em parte coincidente com um livro Júlio Dantas, precisamente aquele com que se estreou nas letras em 1897.
Toupeiras Humanas, romance realista de
grande sucesso literário
Passou depois para o romance, conseguindo alcançar um relativo sucesso sobretudo no género que hoje designamos por literatura ligth ou cor-de-rosa. Em todo o caso, impõe-se destacar dois ou três exemplos de romances mais consistentes, literariamente mais sérios e realistas, estruturados num enquadramento sociológico existencial e objectivado para a denunciação política das desigualdades socioeconómicas do capitalismo moderno. Entre a difusão da realidade e o discernimento da verdade sociopolítica, encontra-se nos seus livros o problema do colonialismo português em África, a razão histórica da ocupação territorial, as relações de domínio e de subserviência, a contradição antropológica entre os dois povos e a injustiça do predomínio etnocentrista europeu, assente numa aculturação do homem africano. No conjunto de toda a sua obra destacamos apenas três exemplos de romances de qualidade literária, imbuídos de forte espírito sociológico e político: Toupeiras Humanas (1948), Destinos (1949) e Pegadas Negras em Mundo Branco.
Como publicista, Marisabel Fogaça dispersou colaboração por vários quadrantes nacionais, desde o antigo jornal «Ecos de Belém», passando ao «Jornal dos Açores», avançando para «A Província de Angola» e terminando na conceituada revista feminina das «Modas e Bordados».
Interessante livro infantil, que passou
praticamente desapercebido à crítica
No âmbito da imprensa algarvia distinguiu-se nas colunas do «Comércio de Portimão», «Jornal de Lagos», «Voz de Loulé», «A Avezinha», e muito especialmente nas colunas do «Correio do Sul» onde constantemente se dava notícia da publicação dos seus livros, não regateando elogios à sua prolífera obra de romancista e à sua fecunda produção de livros infantis.
Maria Isabel Fogaça, teve uma filha, Maria Júlia Fogaça Buísel, nascida em Portimão a 13-3-1939, que viria a ser actriz de cinema, trabalhando com o famoso cineasta Manoel de Oliveira que a convidou para integrar a sua equipa da realização, tornando-se anotadora, assistente de produção e por fim seu braço direito na realização. Dessa amizade nasceu a obra Manoel de Oliveira - Fotobiografia, que Júlia Buísel deu à estampa em 2002, editada pela Livraria Figueirinhas. Em 2012, Júlia Buísel escreveu uma obra notável sobre o cinema português, intitulada Antes que me Esqueça, na qual relata algumas histórias pessoais passadas nos bastidores de realização de alguns dos mais importantes filmes da nossa cinematografia. 
Resta acrescentar que Maria Isabel Fogaça antes de falecer,  ofereceu a sua vasta biblioteca particular à Casa do Povo da Mexilhoeira Grande.

Da sua lista de obras fazem parte os seguintes títulos: Poesia –  Nada, Nada, 1960. Romance A plebeia com alma de rainha, 1942; Manuela, 1945; Toupeiras humanas, 1946; Amor diferente, 1947; Negrita de olhos verdes, 1948; Comediante, 1948; Destinos, 1949; Herdei uma mulher!, 1950; Katia, cigana ou princesa? 1951; Um marido a prestações, 1951; O oitavo mandamento, 1952; Dénye, 1953; Mulheres sem sexo, 1955; Não sei quem sou, 1955; Cristiana... e eu, 1956; Eu não sabia, 1956; Pequenina, 1957; Almas sem Deus, 1958; 333, 1960; Menti! Que Deus me perdoe..., 1960; A outra face de Deus, 1972. Literatura infantil - Amendoeiras em flor, 1941; A lei de Deus, 1945; História maravilhosa do pastor mineiro, 1947; História maravilhosa do príncipe pastor, 1947; Psxiu... Jesus vai contar..., 1947; Escutem... que vou contar, 1949; A vingança de Mérty, 1949; A princezinha bago de milho, 1954; A bota do tio André, 1954; A Força dos Fracos; Assim Nasceu o Algarve.

(extraído do meu «Dicionário da Imprensa Algarvia», ainda inédito)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Para a História da Saúde no Algarve - As epidemias de cólera-mórbus no século XIX

Consideram-se surtos endémicos as doenças transmitidas por bactérias ou por vírus que deflagram geralmente em determinadas regiões, provocadas por agentes ou condicionalismos locais. Na maioria dos casos as endemias são sazonais e estão relacionadas com factores geográficos, climatéricos, e, por vezes, até genéticos. Consideram-se doenças regionais e não costumam ter efeitos mais devastadores do que aqueles a que as populações já estão habituadas. No Algarve, por exemplo, eram muito comuns as doenças palustres ou tifóides no tempo da curtimenta do esparto e do vime. Confinavam-se aos locais de águas paradas, estagnadas ou pútridas, aos terenos pantanosos, sapais e lameiros da borda-d’água, onde eclodiam mosquitos transmissores de febres e sezões. Quando as endemias se agravam ou propagam, adquirem então o carácter de surtos epidémicos, mas só no caso de a doença ter sido provocada por um vírus ou bactéria que surgiu inesperadamente num local e contagiou rapidamente a generalidade da população. Não são raros os casos em que os surtos epidémicos evoluem de forma incontrolada para situações alarmantes, extravasando fronteiras numa onda de contaminação generalizada. Nesse caso adquirem o foro aterrorizante da epidemia. O conceito de Epidemia nasce da fusão de dois étimos gregos: epi (sobre), e demos (povo), significando algo que se derrama pela população, causando alarme e medo. Traduz, do ponto de vista médico, um inesperado e arrebatante índice de enfermos atacados pela mesma doença num breve lapso de tempo, e sem distinção de sexos, idades, raça ou classe social. Uma epidemia é um contágio rápido e generalizado, que não tem limites de tempo nem de espaço, provocando um número elevado de vítimas.



segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

CENOTÁFIOS – na sé de Faro e de Silves

O vocábulo cenotáfio vem do étimo grego Kenotaphion, que presumo ter dado origem em Latim à palavra Coenotaphium, que significa túmulo ou monumento sepulcral, erigido em memória de alguém, cujos restos mortais não se encontram nele depositados. Existe na Sé de Faro um cenotáfio, isto é, um túmulo vazio, mandado construir pelo Bispo do Algarve D. António Pereira da Silva, que governou a diocese entre 1704 e 1715. Era seu desejo repousar para sempre na antiga Capela do Santo Lenho da Sé de Faro, mas circunstâncias alheias à sua vontade goraram o seu desejo, ficando sepultado na cripta episcopal. O seu artístico mausoléu transformou-se assim num cenotáfio, o único existente no Algarve.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Descrição da cidade de Faro, em contraposição à vila de Loulé, para sede do Tribunal da Relação do Algarve.


Nos finais de 1827, o governo da Regência da Infanta D.ª Isabel Maria de Bragança, decidiu fazer uma nova divisão do território nacional, ou seja, uma reforma da estrutura administrativa e um novo reordenamento da justiça em Portugal. É claro que estas reformas surgiam na esteira dos novos ventos do liberalismo, que assolavam praticamente toda a Europa. O problema é que essas reformas surgiam pela mão de burocratas e políticos ignorantes, incapazes de avaliarem a realidade social e económica das populações que compunham o território nacional.
Panorâmica da cidade de Faro, nos finais do séc. XIX.
Nesse projecto de lei surgia a escolha da vila de Loulé para sede do Tribunal da Relação do Algarve, em detrimento da cidade de Faro, que seria a escolha mais óbvia. Naturalmente havia nisto alguma influência política, o que levou o deputado Rodrigo de Sousa Castello Branco, representante do Algarve no parlamento, a insurgir-se contra essa escolha/decisão, sustentando a preferência de Faro em detrimento daquela vila algarvia. Para o efeito teceu em pleno parlamento uma descrição comparativa das potencialidades que as distinguiam e diferenciavam, sustentando que a escolha deveria recair em Faro: por ser mais rica, mais comercial, mais culta e mais provida de serviços públicos, além de ser a sede do bispado e, por isso, tida como a capital religiosa de todo o reino do Algarve. Em face do interesse histórico, passamos a transcrever a sua apreciação argumentativa, conservando-lhe a grafia original:
«Faro, cidade rica e commerciante, Capital Ecclesiastica do Algarve, centro de concorrencia de todos os povos da Provincia, he precisamente o local que convem para o assento da nova Relação. O provinciano vai a Faro de terras muito distantes fazer alli provimentos para as suas lojas e para generos e fazendas precisas ao seu proprio consumo; vai outro a Faro tratar negocios no Juizo Ecclesiastico que alli se acha estabelecido; outro vai tratar sobe as pingues rendas da Mitra e Cabido que abrangem todas as terras do Algarve. Por esta forma, Faro he ponto de concorrencia de muita gente de todo aquelle reino: acha-se alli com facilidade quem forneça os dinheiros precisos sobre ordens ou letras que para isso se apresentam e que melhor pode escolher-se no Algarve para assento da Relação?»
Foto da rua principal de Loulé, frente ao mercado municipal,
que presumo datar dos inícios do século XX.
Por outro lado, acrescentava que a vila de Loulé «absolutamente não convém, porque não ha para lá correspondencias algumas, he uma terra de sertão, sem commercio, sem offerecer motivo de concorrencia e portanto quem alli for tratar de huma demanda irá a isso, mas só a isso, e então quanta deficuldade de encontrar alli dinheiros! He huma terra de proprietarios, entre estes alguns ha ricos de bens, porém pobres de dinheiro; não ha capitalistas nem negociantes. Por conseguinte optando entre Faro e Loulé a preferencia he inquestionavelmente devida a Faro».
Os argumentos do deputado Rodrigo de Sousa Castello Branco, foram ouvidos e votados favoravelmente na sessão parlamentar de 19-1-1828, decidindo-se que passariam a existir sete províncias e seis Relações de Justiça, sendo aprovado que o Tribunal da Relação do Algarve ficaria sediado em Faro e não em Loulé. A «Gazeta de Lisboa», nº 18 de 21-2-1828, publicou o projecto de criação da nova reforma administrativa, que julgo não chegou propriamente a entrar em vigor, pois que a Regência da Infanta Dª Isabel Maria de Bragança cessaria logo depois em 26 de Fevereiro de 1828, não tardando a chegar D. Miguel que pelas cortes de 11 de Julho de 1828 seria entronizado rei de Portugal. Iniciava-se o período da usurpação e das perseguições políticas contra os defensores do liberalismo de que resultaria um forte surto emigratório para a Europa e por fim para os Açores, onde os liberais concentrariam força para organizar a resistência e formar o “exército libertador”, que desembarcado na cidade do Porto deu sustento à guerra civil de 1832-34. Para o desfecho das lutas civis e consequente vitória da causa liberal muito contribuiu o Algarve, cuja posição geo-estratégica justificaria a sua invasão pelas tropas do Duque da Terceira, que não encontrando oposição reorganizaria as suas forças e daqui tomaria a estrada para Lisboa onde entraria vitorioso no dia 24 de Julho de 1834.
Não obstante o decurso do tempo nem o desenrolar da história, creio que se fosse hoje a escolha de Faro em detrimento de Loulé, embora não ofereça dúvidas, também não seria pacífica nem livre de polémica.