quarta-feira, 31 de março de 2010

A Páscoa no Algarve

José Carlos Vilhena Mesquita

Desenraizado das tradições histórico-etnográficas, o Algarve bem se pode queixar do seu turismo estereotipado, que paulatinamente lhe foi esbatendo a riqueza do seu folclore e a fé das suas seculares manifestações religiosas. Deste modo se foram perdendo muitas procissões e romarias, algumas até de carácter profano, que hoje não só lhe dariam uma certa homogeneidade cultural, como ainda por certo constituiriam um forte atractivo turístico na região. E não se pense que o fraco espírito religioso dos Algarvios é hoje o mesmo dos seus antepassados, pois que o contrario se atesta pelas largas dezenas de templos que cobrem a orla litoral. Aliás, outra coisa não seria de esperar numa região totalmente virada para o mar, histórica e economicamente dependente das fainas marítimas, que desde sempre foram temerariamente exercidas por frágeis embarcações a remos ou à vela, de entre as quais se destaca o tradicional e famoso caíque de Olhão, que após a revolta contra os Franceses atravessou em 1808 o Atlântico e para dar tão heróica boa-nova à Família Real, então refugiada no Brasil.
As próprias armações do atum, que nesta província tornaram universalmente conhecidas e apreciadas as nossas conservas (já hoje inexistentes devido ao afastamento dos tunídeos da costa algarvia), foram em tempos alvo de manifestações religiosas interessantíssimas, às quais quase sempre não era estranha a presença do Bispo da diocese. Certas cidades como Tavira, Faro, Portimão e Lagos tiveram em tempos várias procissões anuais que atraíam às sedes dos concelhos muitos milhares de fiéis, algumas das quais espontaneamente organizavam feiras, tudo contribuindo em larga escala para o engrandecimento do comércio local. Mas o progresso foi delapidando as tradições e a religiosidade do povo (materializado por outros ideais talvez menos consentâneos à nossa gente), encerrando-se as igrejas, votando-as ao abandono e à ruína, ao mesmo tempo que as manifestações de âmbito nacional perdiam igualmente o seu carácter conglomerante de outrora.

Do jejum ao baile no terreno das igrejas

Nesta ordem de ideias se encontra a festa principal da Igreja, a Páscoa, que, apesar de nalgumas regiões do País assumir características muito especiais, como é exemplo o Minho, nem por isso se pode afirmar que no Algarve elas eram desprovidas daquele brilho, compenetradamente triste e desolador, da Semana Santa, com todas as suas procissões e rituais religiosos que há séculos lhe andam ligados.
No Algarve a festa pascal apresenta algumas diferenças etnográficas entre a serra e o litoral. No interior, onde as populações rurais viviam com maior dificuldade, e muitas vezes sem o apoio religioso minimamente indispensável, apenas prevalecia a prática do jejum nos dias santificados e a realização de pequenos bailes no terreiro da igreja no próprio Domingo de Páscoa. Nesse dia comia-se um pouco melhor, geralmente uma peça de carne de porco, carneiro ou, no pior dos casos, um frango; os doces só se faziam nas casas abastadas e resumiam-se à tradicional doçaria de amêndoa e figo. No litoral, a tradição era bastante mais rica. Faziam-se procissões na Semana Santa, pagavam-se as promessas, guardava-se jejum nos dias próprios, faziam-se oferendas, etc... No Domingo de Páscoa davam-se grandes festas nas casas ricas dos comerciantes e industriais, comia-se borrego ou carneiro assado, reunia-se a família e realizavam-se alguns jogos tradicionais. Em matéria de doçaria faziam-se os folares de mel, bolos finos de amêndoa delicadamente decorados, bebiam-se vinhos generosos das regiões de Lagos e Tavira, para além dos acostumados bailes nas sociedades recreativas e clubes populares.

A procissão das Tochas

No âmbito destas tradições, profundamente religiosas, assume particular destaque a Procissão das Tochas realizada, no dia de Páscoa, em S, Brás de Alportel, a qual tem na sua essência a comemoração de um dos mais heróicos acontecimentos históricos do Algarve: a expulsão pela confraria dos moços solteiros das tropas inglesas comandadas pelo duque de Essex, que em Julho de 1596 saquearam a cidade de Faro e o seu termo. A procissão percorre as ruas da vila enquanto o povo acompanhante grita em uníssono: «Aleluia. Cristo ressuscitou como disse, aleluia, aleluia, aleluia». No final, as “tochas”, que consistem em simples hastes coloridamente decoradas com flores, são prostradas na calçada formando um vasto tapete florido sobre o qual o sacerdote caminha ao mesmo tempo que empunha o Santíssimo. Em seguida, o prior celebra uma missa campal à qual assistem milhares de fiéis, na mais completa devoção. Ultimamente tem-se realizado um concurso para apuramento das mais belas tochas da procissão, o que se acentua apenas por constituir uma estratégia para a conservação do património etnográfico daquela bela e acolhedora vila serrana.
Em suma, as tradições da Páscoa Algarvia sempre foram ténues e hoje são quase inexistentes, à parte uma ou outra procissão da Semana Santa, que ainda se realiza em Faro, e a tão celebrada Procissão das Tochas, em S. Brás de Alportel, à qual nos referimos já nestas colunas.

(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 22-04-1984)

segunda-feira, 15 de março de 2010

As origens e desenvolvimento do Ensino em Faro

José Carlos Vilhena Mesquita

O ensino em Portugal possuiu, desde as suas mais remotas origens, uma inspiração religiosa a que não era estranho o acesso que, desse modo, se veiculava para a vida eclesiástica. São por demais conhecidas as escolas monásticas ou conventuais da Idade Média, que em Alcobaça, Coimbra e Lisboa, tiveram os seus expoentes de prolixidade e sucesso, formando um corpo de magistrados, legisladores e juristas, responsáveis pela construção do Estado de direito que, paulatinamente, se ergueu no tempo e disseminou os seus valores culturais e linguísticos pelos quatros cantos do globo. A fundação dos Estudos Gerais, em que se enraizou o ensino universitário, surgiu como reflexo da necessidade de aumentar os conhecimentos e a preparação cívica daqueles que, não pertencendo à classe religiosa, se ofereciam para servir na administração pública e, principalmente, na defesa dos direitos que aos cidadãos consignavam as Ordenações do Reino.
Não restam hoje quaisquer dúvidas, nem oferece contestação afirmar-se que são intrinsecamente religiosas as origens do ensino em Portugal. E se nos primeiros tempos cabia aos Dominicanos, Beneditinos, Agostinianos e a outras ordens religiosas a missão de educar e de preparar tanto os novos quadros da Igreja como os do próprio aparelho de Estado, o certo é que a partir de meados do século XVI esse papel passou, quase exclusivamente, para as mãos dos Jesuítas. O ensino tornara-se praticamente monopólio dos inacianos, que para seu benefício e serviço fundaram a Universidade de Évora no local e edifício que ainda hoje, reabilitado e despojado dos vícios de outrora, serve os actuais objectivos de formar as gerações vindouras no espírito científico e na liberdade crítica.
O ponto de viragem estabeleceu-se no consulado do Marquês de Pombal, cuja reforma do ensino constitui a pedra basilar do nosso actual sistema. A expulsão dos Jesuítas obrigou aquele estadista a repensar toda a organização do processo educativo operando, a partir de 1759, uma reforma que tinha algumas parecenças com a administração pública, já que atribuía a todas as cidades e principais vilas do reino uma escola de «aprender a ler, escrever e contar». E neste âmbito não fez discriminações, porque não só estendeu o ensino às colónias, como até instituiu escolas públicas femininas, o que constituía uma atitude de renovação e progresso mental.
O ensino secundário, se assim se lhe pode chamar, não tinha grandes semelhanças com a actualidade, já que era uma espécie de preparatórios para a Universidade. Consistia na leccionação das cadeiras de Gramática Latina, Língua Grega, Retórica e Filosofia, para cuja efectivação se fundaram as competentes escolas nas cidades mais populosas ou nas que fossem cabeça de Comarca. A reforma só teve verdadeira concretização já no declinar do consulado pombalino, precisamente na altura em que a Universidade de Coimbra recebia os seus modernos Estatutos, verdadeiro monumento do ensino cientifico, que colocava o nosso país ao lado das nações mais progressistas da Europa. A filosofia educativa que inspirara o pombalismo fundamentava-se na criação de um ensino estatal e laico, em cuja imagem e semelhança se perfilariam, até hoje, as principais revisões do aparelho e do sistema educacional.
A partir de 1759 assistiu-se a uma lenta implementação do processo que deu origem a sucessivas colocações de professores, atribuição de novas escolas e, diga-se em abono da verdade, muita incongruência, insatisfação e algum desalento. Por isso é que só em 1773 a cidade de Faro teria, completo e preenchido, o seu quadro de professores, cujo elenco, só por curiosidade, aqui se enuncia: Ler, Escrever e Contar: António José Rodrigues; Gramática Latina: João dos Santos de Proença Capinhão; Língua Grega: Dimas Tadeu; Retórica: José Feliciano Coelho; Filosofia Racional: José Ferreira Cidade.
O ordenamento educativo do Algarve ficaria completo em 1779, mas já sob o domínio da «viradeira» que inspirou o reaccionarismo do governo mariano. Para inflectir a situação e esbarrondar o projecto pombalino, entregou-se o ensino aos conventos de religiosos existentes nas respectivas comarcas. Daí os conventos de Faro se encarregarem da Filosofia Racional e da Gramática Latina, enquanto que os franciscanos de Lagos, Portimão, Monchique, Silves e Loulé, assim como os paulistas de Tavira, asseguraram não só a Gramática Latina, como ainda a administração das primeiras letras.
Com implantação do regime liberal, constitucional e parlamentar, os objectivos pombalinos voltaram a inspirar o espírito reformista que presidiu aos novos destinos do ensino em Portugal. Em 1836, com o advento do «Setembrismo» e sob a batuta ministerial de Manuel da Silva Passos, procedeu-se ao reordenamento educativo da nação, do qual ressaltam os Liceus Nacionais, as Escolas Médico-Cirúgicas, as Escolas Politécnica de Lisboa e do Porto, o Conservatório de Arte Dramática, as Academias de Belas Artes de Lisboa e do Porto, a Escola do Exército, etc. Nunca se tinha ido tão longe numa reforma educativa. E o princípio inspirador continuava a ser o mesmo: estatal e laico, como o propusera Pombal.
Ainda assim, o Liceu de Faro só abriria as suas portas em 1849, para dois anos depois receber da Rainha D. Maria II a carta legitimadora da sua fundação. Daí por diante, assiste-se em Faro à fundação das escolas de Desenho Industrial Pedro Nunes, a Escola Primária Superior, a Escola Normal Superior, a Escola Comercial e Industrial Tomás Cabreira, o Magistério Primário, a Escola de Hotelaria e Turismo, o Instituto Politécnico e a Universidade do Algarve. Por elas passaram sucessivas gerações e nelas adquiriram a sua formação de base muitos dos principais quadros técnicos e intelectuais de que o Algarve se pode hoje orgulhar.
A par dessas escolas de grande projecção, outras existiram certamente mais humildes, mas nem por isso menos importantes. É por essa razão que não devemos esquecer, as filantrópicas iniciativas particulares (de maçons e republicanos) em torno da chamada «educação popular», de que foram exemplo os Centros Republicanos, onde pontificaram alguns vultos locais das lutas pela emancipação feminina, como Maria Veleda ou Inácia Anes Baganha; a Universidade Popular do Algarve, fundada por iniciativa do Dr. José Dentinho e propalada pelo Dr. Francisco Fernandes Lopes, na qual se pronunciaram brilhantes conferências e até se ministraram cursos livres; o Círculo Cultural de Camões, que serviu de refúgio e camuflagem a alguns elementos da «Resistance Française», como Lionel de Roulet, Heléne de Beauvoir e até mesmo sua irmã, a escritora Simone de Beauvoir, que veio a Faro proferir uma palestra a convite do Círculo; o seu sucedâneo Instituto da Alliance Française, que julgo ainda subsistir, embora com muitas dificuldades; o Círculo Cultural de Faro, que é de todos o que maiores tradições guarda de uma subtil luta pela emancipação intelectual das classes trabalhadoras contra o «Estado Novo» e o regime Salazarista, cuja fabulosa biblioteca e a própria instituição correm o risco de desaparecer na voragem do desinteresse geral; os Colégios particulares Farense e Algarve, este ainda em actividade; e, por fim, a mais recente de todas as iniciativas particulares, em benefício da educação e no espírito do ensino livre, que é a Universidade do Algarve para a Terceira Idade, que sem apoios significativos nem instalações próprias vai sobrevivendo com muitas dificuldades, razão pela qual se tornou digna do maior apreço social, não só pela sã convivência e alegre confraternização que se manifesta entre todos os alunos, como ainda pela divulgação dos conhecimentos, que de vários quadrantes científicos são ali transmitidos aos seus alunos.
Em desenvolvida análise, obviamente muito mais haveria para explanar e enaltecer neste breve rol de instituições que serviram e desenvolveram, nas suas natura limitações, a formação educativa e cultural do Algarve. Mas, em síntese, basta tocar-lhes, ainda que ao de leve, para que ressaltem da poeira dos tempos, sem que percam a patine da História.

terça-feira, 9 de março de 2010

Uma Quarteirense que Camões Amou

Em 1980 assinalou-se o 4º Centenário da morte do maior vate da Língua portuguesa. Porém, perdeu-se então a oportunidade de, através de uma singela placa evocativa, se perpetuar a existência no Algarve da casa que foi berço a D.a Francisca de Aragão, considerada como a musa inspiradora dos Lusíadas. O edifício, na praia de Quarteira, denominada «Estalagem da Cegonha», foi, no século XVI, residência de Nuno Rodrigues Barreto, alcaide-mor de Faro e vedor da Fazenda do Algarve, pai da «loira, viva, esperta e azougada» Francisca de Aragão. Foi nessa vetusta casa apalaçada do morgadio dos Barretos, que nasceu a formosa Francisca de Aragão, que viria a ser figura de proa nas cortes de Portugal e de Espanha. Trata-se de um assunto pouco conhecido sobre uma jovem algarvia, originária da distinta família dos Barretos, que pontificou na corte portuguesa nos finais do século XVI, no período de transição da perda da nacionalidade para a dominação filipina, cuja descendência foi também eminente na vizinha Espanha.

terça-feira, 2 de março de 2010

Vila Real de Santo António no I centenário do seu Fundador

Estudo relativo às comemorações do I Centenário do Marquês de Pombal, realizadas em 1882, as quais tiveram no Algarve forte repercussão em Vila Real de Santo António, cuja fundação no séc. XVIII se deve inteiramente à política de fomento das Pescas implementada por aquele grande estadista. Este estudo foi publicado na revista «Património e Cultura», n.º 9, Vila Real de St.º António, 1983, pp. 9-17.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Quem foi Silvio Pellico? Um Herói? Um Traidor?

Este estudo sobre a vida e obra do célebre escritor italiano Silvio Pellico, foi publicado em 13/04/1982, no suplemento de «Cultura e Arte» do vespertino portuense «Comércio do Porto», por solicitação do meu saudoso amigo Prof. Doutor José Augusto Seabra, que no ano seguinte seria nomeado Ministro da Educação do IX Governo Constitucional, formado pelo então designado "Bloco Central", o qual vigorou entre 1983-1985.
A figura de Silvio Pellico é, ainda hoje, pouco conhecida em Portugal, sendo que na Itália é uma das figuras cimeiras do Romantismo oitocentista. O estudo que agora se coloca ao dispor dum público mais vasto é apenas uma visão de síntese de toda a problemática histórica que envolveu a vida daquele notável escritor italiano. Reedito-o em homenagem ao Prof. Seabra, falecido em 27-05-2004.