quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

«O Direito à Felicidade»

No dia 24 de Dezembro, vulgarmente designado por dia da Consoada, vi na RTP2, pelo hora do almoço, um filme intitulado «O Direito à Felicidade». Aconselho as pessoas, inteligentes e sensíveis à cultura, a fazerem uma pesquisa na sua Box, ou no site da RTP Play, para poderem ver este filme, que é um elogio à cultura e à amizade, suscitada pela ternura da eloquência. É um filme de apenas 81 minutos, curto e incisivo, mas que nos faz doer até aos interstícios da alma, ao ponto de, por fim, os mais sensíveis, verterem uma lágrima de nostalgia, de tristeza… de vergonha.
Os nossos professores do ensino básico, nas classes onde a idade começa a despertar nas crianças o gosto pela leitura e a motivar a paixão pelos livros, poderiam aproveitar a projeção deste filme para acicatarem nos seus alunos o prazer da leitura e o deleite da descoberta. E não só, é que este filme é um retrato do nosso tempo, é uma lição de vida, com todos os defeitos e virtudes que rodeiam a nossa sociedade.
A personagem principal do filme é um livreiro, figura respeitável pela sua idade e cultura, que vende livros usados numa pacata cidade italiana. À sua volta gravitam quatro figuras secundárias: um homem do lixo, que resgata dos contentores vários livros destinados ao aterro; um empregado de bar, com aspecto primário que se revela um coração apaixonado; uma servente que procura adquirir fotonovelas para entreter a sua ignorante e fútil patroa; e um pequeno emigrante, tímido, pobre, com um ar famélico, que representa o choque de culturas suscitado pelas migrações dos tempos modernos.
O livreiro chama-se Liberto, um nome invulgar, mas muito apropriado à missão libertadora dos livros. O seu desiderato consiste em fazer com que as pessoas descubram o prazer da leitura e, sobretudo, amem os livros. No fundo do seu generoso coração acalenta a esperança de tornar a leitura num alimento quotidiano da alma, e o livro numa arma de libertação da mente humana. Um sonho quixotesco…, porque ele bem sabe que o mundo gira em torno da ambição, da ganancia e do egoísmo.
A vida solitária, tranquila e generosa deste modesto livreiro, entrecruza-se com a de uma criança do Burkina Faso, de nome Éssien, filho de emigrantes acolhidos naquela pacata cidade italiana, cujos verdejantes horizontes, matizados de diferentes tonalidades, fazem-me lembrar a deslumbrante Toscânia. Entre o livreiro e a criança africana, vai discorrer aos olhos do espectador uma pedagógica lição de amizade e de admiração mútua, em contraposição ao quotidiano racista que assola o nosso tempo. Liberto vai emprestar livros a Éssien, porque este não os pode comprar. Quando este lhos devolve assistimos a um ternurento diálogo pedagógica, que resultará num método de fomento progressivo do gosto pela leitura. Ao ver o filme, lembrei-me do meu querido pai, que usou comigo exactamente o mesmo método. E, quando eu queria dar um passo mais largo do que a minha mente permitia, ele refreava-me a avidez, dizendo: “este livro não é para já, mas fica à tua espera”. E tinha nisso toda a razão, porque sendo a leitura o meio mais acessível e eficaz de libertar o espírito, deve ser doseado na proporção da idade e da inteligência. O equilíbrio entre a compreensão da leitura e a reflexão do pensamento, permitem que o livro se transforme num veículo de transmissão do Saber e da Cultura. A escola ajuda muito no processo curricular da formação intelectual da criança, mas é no prazer da leitura e no convívio com os livros que se processa o autodidatismo, uma forma libertária de vivenciar o Saber e de progredir no conhecimento, escapando ao controlo da Escola. Nunca esqueçamos que o ensino não é livre, e que a Escola constitui em si mesma um dos mais poderosos aparelhos ideológicos do Estado.
Vejam, por favor, «O Direito à Felicidade», um filme melancólico e superiormente encantador, pela forma como demonstra que a liberdade só se alcança pela tolerância, pela inteligência, pelo respeito e, sobretudo, pelo amor. Amar é tornar livre o ente amado. E isso só se percebe no fim, quando Liberto oferece a Essien um pequeno livro, pedindo-lhe que o reserve e o consulte até ao fim dos seus dias. O título desse livro só se revela ao espectador na última imagem do filme.
Para terminar, queria chamar a atenção para o facto de não ser o livro, nem a leitura, o tema principal deste filme, mas tão só a emigração, como derradeira esperança na construção de uma vida melhor. E o que é a vida, afinal, senão uma viagem no tempo. Demonstra-o a forma dramática como Liberto se vai despedindo da vida, em silêncio e em segredo. Ao mesmo tempo que revela ao espectador as páginas de um diário manuscrito, datado de 1957, curiosamente resgatado do lixo, no qual uma jovem criada confidencia que vai partir com o noivo para a América, à procura de uma nova oportunidade de vida, através do sonho americano, uma quimera do pós-guerra.
Vejam como os nossos sonhos do passado, são os mesmos sonhos presentes, sobretudo daqueles que vivem dilacerados pela mais tirânica das opressões: a pobreza. Não há liberdade quando se vive agrilhoado no desemprego, no desconforto, na escassez, na fome e na miséria. De que vale a democracia e a liberdade, quando a pobreza domina e escraviza o cidadão eleitor...
Este filme, em suma, é uma lição que todos deveríamos aprender.
Aqui fica o link para quem deseje visionar esta encantadora metáfora cinematográfica, sugestivamente intitulada «O Direito à Felicidade».

https://www.rtp.pt/play/p12419/e737123/il-diritto-alla-felicita?fbclid=IwAR1xuj8ugf135Y6fQ6H9bVFKVA_Fp5gndejngeC7D7WCsnEou-wq5QFD6IE