sábado, 26 de setembro de 2009

Breve Ensaio Etno-Económico sobre o Algarve - homenagem ao Prof. Viegas Guerreiro

O Algarve na primeira metade deste século mantinha uma estrutura económica muito semelhante à do século passado. Quer isto dizer que os alicerces da sua economia regional permaneciam ainda assentes na agricultura, na pesca e indústria conserveira, no pequeno comércio e na manufactura artesanal. Todavia, a escassez dos recursos hidrográficos e as descontinuidades geomorfológicas, que numa espécie de anfiteatro decrescem de Norte para Sul, geraram assimetrias de desenvolvimento que mantiveram a serra adstrita a uma economia de subsistência, enquanto o litoral progredia no aumento da produção agro-industrial, na diversificação da oferta e na senda duma economia de mercado, ainda que incipiente.
Artigo científico sobre a importância da Etnoeconomia do Algarve nos primórdios do século XX. Conferência proferida em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Viegas Guerreiro.



terça-feira, 15 de setembro de 2009

Um clamor na centelha do génio

José Carlos Vilhena Mesquita

A arte poética é uma capacidade inata, que desperta em nós como resposta a um profundo estado emocional. O sofrimento e a paixão são os estados de alma mais comumente exorcizados através da poesia. O poeta é um sofredor. E quem ama sente a poesia nas mais pequenas coisas da vida. A dor e a alegria parecem constituir-se nos antípodas da nossa esfera emocional. Porém, andam geralmente próximas. Não restam dúvidas que nos preenchem a existência e fazem-nos sentir que a vida não é mais do que um universo de emoções.
É desse universo, desse pélago de intensas comoções, de perturbações e rupturas, que nos fala a poesia de Quina Faleiro. Sente-se nos seus versos uma alquimia de impressões, mescladas num doloroso sofrimento de rejeição, de que ressuma a interjeição da deslealdade. A perfídia é um dos seus campos preferidos. Uma lavra de quem sabe por onde arrotear. E quão sentenciosas palavras sulcam os seus poemas, como se neles traçasse um mapa de desencantos. Os seus versos ferem-nos por dentro, estremecem-nos a alma, impressionam-nos em sentimentos de culpa. Reflecte-se neles o exorcismo do aleive e da insídia. E neles espiam-se os gestos que se escondem por detrás das mãos que nos enganam, modelando rostos que se esfumam na imperceptibilidade das formas. Não vemos ninguém, apenas sentimos. Estamos todos ali, presos naqueles versos que nos acorrentam à realidade amarga da vida. Amamos e sofremos, somente.
Por outro lado, os sonetos de Quina Faleira são um exemplo flagrante dessa espécie de surda dialéctica interior entre a mágoa das quiméras e a imaterialidade do sonho. É o amor que espreita nas esquinas do tempo, fugaz e enganador. É a construção dos arquétipos, moldados na inatingível perfeição dos seres que nos rodeiam. A Quina imaginou-os esculpidos no barro do Olimpo, puros e sem mácula, talhados sob os cânones dos deuses. O ídolo que erguera fez-se em pó, esboroou-se nas fissuras da traição, apodreceu nas entranhas da matéria. Diluiu-se o sonho, desvelou-se a farsa e a aurora rompeu luminosa no orvalho das lágrimas. A vida ressumava novamente, titubeante e confusa, por entre os escombros do passado.
Os seus versos são palavras meigas, percorrendo o corpo sensível em toques de emoção, exalando segredos que se sussurram, na aragem do amor volatizado pelo fogo da paixão. São como rosas brancas em perfumadas pétalas de imaculada candura. Mas entre a pureza da aparência despontam acerados espinhos em pungentes versos de amor inconseguido. Esta é a lição da vida. Aprendeu-a, com lágrimas escondidas pelas mãos que abafam gritos de raiva, a minha querida amiga Joaquina Faleiro.
Secou-se o pranto, derramou-se no fluir do tempo o último cálice do sacrifício. Descravou os punhais da traição, suturou as feridas, desatou as amarras e encarou a existência com um novo olhar. Regressou à vida. Desprendeu-se ao vento e seguiu o seu rumo, aprendendo a voar sózinha, como se tudo começasse agora, somente agora no plano inclinado da vida.

Foram-se os anéis da vida. Partiram-se os elos que a prenderam em dolosos laços de hipocrisia e falsidade. Mas ficaram os dedos, sobreviventes e triunfantes, numa confusa mesclagem de sofrimento e libertação. Ficaram entrelaçados e serenos... a meditar. Não encontram respostas, nem reclamam justificações. Por vezes, erguem-se para enxugar as lágrimas da nostalgia. É a involuntária derrota do amor, numa incontida sensação de perda. A poesia surgiu na vida de Quina Faleiro como lenitivo da solidão, uma espécie de confidente companheira, que não desilude nem abandona nos momentos em que o desespero parece querer trucidar a alma. As desilusões e amarguras que antes em lágrimas se transformavam, correm agora na asas do prelo em belos sonetos materializadas.
Eis, pois, a obra, humilde amostra duma poetisa singular, de cujos dedos já não escorrem lágrimas, mas antes cintilam lampejos de génio.
Prefácio ao livro de poesia Choram Meus Dedos, da autoria de Quina Faleiro.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Projecto de Encanamento para a Barra de Tavira, em 1825

O objectivo deste projecto consistia na construção de um canal que conduzisse o caudal do rio directamente para a embocadura da sua foz, abrindo assim uma barra artificial na zona conhecida por Bacia das Quatro Águas (onde fora originariamente a Barra de Tavira). Deste modo encurtavam-se percursos e evitavam-se os meandros em que se dispersava o leito natural do rio, condicionantes orográficas essas que, juntamente com as cheias de Inverno, facilitaram o progressivo assoreamento do Séqua ao longo de séculos, impedindo o acesso das embarcações mercantes de largo bojo e alta tonelagem ao porto comercial, situado muito próximo do actual Jardim Público.
Este pequeno artigo foi elaborado com base na descoberta de um antigo mapa elaborado pelos engenheiros reais, para em 1825 tratarem do desassoreamento do rio Séqua, que desde o séc. XVI impedia a acostagem de grandes navios ao porto comercial de Tavira. Essa foi, aliás, a principal causa da decadência desta cidade, até então uma das mais notáveis do Algarve.


domingo, 13 de setembro de 2009

A FEIRA de ALCOUTIM em 1822


José Carlos Vilhena Mesquita

Prometi no artigo anterior, sobre as cheias do Guadiana em 1823, carrear para estas mesmas colunas os documentos históricos que justificaram em 1822 a instituição de uma Feira na vila de Alcoutim. E isto porque o Sr. Ascensão Nunes, na sua Monografia de Alcoutim, refere a pgs. 117 que não encontrou o ano de criação da "Feira da Vila". Ora, como Baptista Lopes não só ignora a data da sua fundação como ainda se engana nos dias em que a mesma decorre[1], decidi-me a prestar mais este pequeno subsídio para a História de Alcoutim.
A feira, em si, constituía, tão simplesmente, uma reunião mercantil, baseada na oferta da produção excedentária e regulada pela necessidade/escassez dos bens de consumo. Porém, desde o "movimento foraleiro", que na Idade Média presidiu à formação dos concelhos, que as mesmas traduziam uma estratégia de desenvolvimento económico do sector primário e de comunicação intra-regional. À sua organização e reconhecimento oficial estavam associados determinados privilégios e isenções fiscais, que lhes outorgavam um carácter muito especial - quer comemorativo (santo padroeiro, data histórica, etc.), quer até auto-determinativo, visto que, por vezes, a pujança económica dos pequenos mercados impunha o seu reconhecimento oficial com o estatuto de feira. Daí surgir a distinção entre feiras regulares e feiras francas. Enquanto as primeiras se reuniam por um dia, com uma periodicidade semanal ou mensal, em locais definidos como o "Rocio da Vila" ou o "Terreiro do Mercado"; as segundas distinguiam-se pelo seu carácter anual, geralmente nas épocas de determinadas colheitas, com datas fixas mas alargadas a vários dias, num espaço físico mais amplo como o "Campo da Feira", tendo a particularidade de estarem isentas de encargos fiscais.
No século XIX criaram-se dezenas de feiras francas, muitas delas "especializadas" em certas produções regionais, como legumes, aves, gado, loiças, etc. Chegaram a ser mais de trezentas, entre profanas e religiosas; no primeiro caso designavam-se por "Feiras Grandes", no segundo por "Festas". O exemplo de Alcoutim pertence ao primeiro caso, embora como veremos mais adiante, não lograsse o estatuto de feira franca.
Vejamos, depois deste breve preâmbulo, como se desenrolou o processo da sua criação.
A origem da Feira de Alcoutim está intimamente ligada à vontade popular. Foram os moradores da vila que determinaram a necessidade da sua criação. Nada mais simples do que isto. Porém, pretendiam-na franca. A exemplo do que acontecia no passado, esta pretensão faz supor que a feira já existia e que ao oficializá-la apenas pretendiam isentá-la de impostos. Não acredito nessa hipótese. Penso que o objectivo consistia numa antecipação à feira de Mértola, que se realizava a 20 e 21 de Setembro, onde os alcoutinenses iam vender a produção cerealífera dos seus campos.
Não deixa, porém, de ser estranho que nesse ano de 1822 fosse instituída a feira de Alcoutim ­ predominantemente cerealífera ­ quando as terras do litoral barlaventino, atravessavam uma forte carestia de cereais. Em Portimão, por exemplo, só tinham trigo para 60 dias em «consequencia da mais desgraçada colheita que se tem visto, pois que huma grande parte dos Lavradores deste Districto nem a semente colherão».
[2]
Em Fevereiro de 1821 (ano da petição dos moradores de Alcoutim), os lavradores alentejanos da raia de Espanha queixavam-se da decadência da agricultura devido ao «exçeçivo preço a que a ambição dos senhorios tem elevado a renda das erdades, asim como a falta de braços»; além disso, baixaram os preços dos cereais, lãs e gados, em face do contrabando espanhol sobretudo de trigo, cujo preço era «tam comodo que a maior parte dos povos da arraia se não sustenta de outro pão».[3]

Petição da Feira Franca

Sendo Alcoutim uma vila da raia espanhola‚ é provável que experimentasse o mesma fenómeno. Mas a movimentação dos preços dos cereais oscilava bastante, e em períodos curtos, nos principais mercados do trigo, evidenciando-se mais constantes no sul do que no norte.
[4] Por isso‚ é possível que Alcoutim, inserida nas margens do Guadiana, com férteis campos de regadio, pomares, gados e pescarias estivesse a atravessar um período de abundância em contradição com a alta dos preços nos mercados de Évora e Beja. Seja como for, estou em crer que a justificação desta feira prende-se não só com as épocas das colheitas como ainda com factores concorrenciais de mercado entre Mértola e Castro Marim.
O certo é que os alcoutinenses, em 1821, suplicaram a D. João IV a criação de uma feira franca, através da seguinte petição:
«Senhor ­ Dizem os moradores na vila de Alcoutim e seu termo que não havendo Feira alguma na dita Villa à qual concorrão os Povos Vezinhos para venderem e comprarem os generos e feitos que fazem a abundancia e giro do Comercio, pertendem que Vossa Magestade lhes faça Graça de Conceder-lhes licença para se fazer mercado publico na dita villa no mez de Setembro e nos dias treze, quatorze e quinze francos, pois que os Supplicantes se persuadem ser lhes conveniente e de muita utilidade, athe mesmo para a Real Fazenda, para cujo fim Pedem a Vossa Magestade se digne mandar se lhes passe provisam. E. R. M.
Como Procurador, Jacintho Alves de Pina.»
[5]
Assinaram esta petição 32 pessoas, cujos nomes escuso de citar para não alongar demasiado este artigo. Inserida no mesmo processo judicial encontrei uma carta da Câmara de Alcoutim, a confirmar e corroborar a petição dos seus moradores:
«O Prezidente e Veriadores da Camara de Alcoutim, Clero Nobreza e Povo desta mesma Villa e seu termo, sendo mandados ouvir pelo Meretissimo Corregedor de Beja (a cuja Commarca esta Villa pertence) sobre o requerimento que fizemos, no qual pedimos a Sua Magestade a graça de nos conceder trez dias de feira nesta Villa: respondemos que queremos ter feira nos dias treze, quatorze e quinze do mez de Setembro, e que esta para todos os moradores desta Villa e seu termo seria franca e sem onus algum e só os de fóra pagarão terrado e este que seja aplicado para o Concelho que he pobrissimo. Esta he a nossa vontade geral. Eu Antonio Sebastião de Freitas, Escrivão da Camara que o escrevi.
[6]
Subscrevem esta missiva 44 habitantes, dos quais 8 eram analfabetos. Entre as individualidades destacam-se o Juiz de Fora, Joaquim António da Costa Sobrinho, os Veriadores António Joaquim da Silva, José Guerreiro Mestre e João Viegas Teixeira; o Procurador, Joaquim Costa, o Major Governador da Praça, José Maria Xavier, o Capitão Mor, José de Britto Magro, o Major Comandante de Ordenanças, Sebastião José Teixeira, o Prior da Matriz, Joaquim José Cavaco e o Ajudador, Frei Thomaz de Santa Rita Evangelista.
Para atestar a veracidade dos factos contidos na petição, foi lavrado em Beja, a 23-7-1821, pelo Corregedor da Comarca Dr. António José Cabral de Mello e Pinto, um auto de inquirição no qual testemunharam o Rev.º António José Penedo, José Telles de Góis e Manoel Joaquim Ferreira Pato, todos moradores naquela cidade. Confirmaram que «a Feira estabelecida naquella Villa [podia] fazer mais abondante o giro do commercio e que nos dias pedidos no dito requerimento são mais favoraveis por ser em melhor tempo.» O Juiz de Fora de Beja, Joaquim José Anastácio Monteiro de Carvalho e Oliveira, em 30-7-1821, oficiou ao Secretário de Estado dos Negócios do Reino que a petição de Alcoutim deveria ser inteiramente satisfeita.

O Rei autoriza.

Em face dos dados carreados para o processo, a Mesa do Desembargo anuiu, em parte, à pretensão dos moradores e Câmara de Alcoutim, «com a clauzula de não ser franca a feira pertendida»
Conformando-se com esse despacho o Rei mandou exarar a seguinte Provisão:
"Dom João por Graça de Deos, e pela Constituição, etc. Faço saber que os Moradores da Villa de Alcoutim, e seu Termo, Me supplicarão a Graça de lhes conceder licença para estabelecerem hum Mercado publico e franco em os dias 13, 14 e 15 do mez de Setembro, afim dos Povos vezinhos ali venderem e comprarem os generos e effeitos que fazião a abundancia e giro do Commercio de que rezultava utilidade Publica e interesse da Fazenda Nacional. E outro seu requerimento a Informação que se houve do Juiz de Fora da Cidade de Beja servindo de Corregedor da Commarca da mesma cidade, com audiência da Câmara, Nobreza e Povo da Villa, que não tiverão duvida no pertendido estabelecimento, bem como o não teve o Procurador da Coroa e Soberania Nacional que também mandei ouvir. Hey por bem conceder aos Supplicantes a necessaria licença para nos dias treze, quatorze e quinze do mez de Setembro de cada hum anno poderem fazer na dicta Villa a Feira de que se tracta com a clauzula de não ser franca. E Mando ás justiças a que pertencer cumprão e guardem esta Provisam como nella se contem, será registada nos livros respectivos da Camara, da sobredicta Villa, e vallerá posto que seu effeito haja de durar por mais de hum anno sem embargo de Ord. do livro 2.º 40 em contrario. Não pagarão direitos por estar assim Determinado, como constou por hum conhecimento regido emforma a fl. 15 do livro 91 do Registo Geral. El Rey o Mandou pelos Ministros abaixo assignados do seu Conselho e Desembargo do Paço. Luiz António de Araujo a fez em Lisboa a 26 de Março de 1822. José Maria Sinel de Cordes a fez escrever. Manoel Vicente Teixeira de Carvalho, Francisco José de Faria Guião. Por Despacho do Desembargo do Paço de 22 de Agosto de 1821.»
[7]
Deste modo, estão esclarecidas as dúvidas. A feira de Alcoutim data oficialmente de 22 de Agosto de 1822, ressaltando dos documentos acima transcritos que a vontade geral dos alcoutinenses se consubstanciava numa feira franca, o que não veio a ser satisfeito pelo monarca. Faltou a este povo a força económica e a pressão política necessária para fazer prevalecer os seus legítimos desígnios. E a conjugação desses dois vectores esteve quase sempre por detrás da marginalização e esquecimento a que tem sido votada, desde há séculos, a raiana vila de Alcoutim.


NOTAS

[1] João Baptista da Silva Lopes, Corografia ou Memoria Economica, Estadistica, e Topografica do Reino do Algarve, Lisboa, Typ. Academia das Sciencias de Lisboa, 1841, p. 396.

[2] Arquivo Nacional da Torre do Tombo Ministério do Reino, Câmaras do Reino, Maço 986, letra P.
Nesta carta da Câmara de Vila Nova de Portimão, datada de 9-11-1822, pede-se ao Rei que lhes conceda 60 moios de trigo «para acorrer aos terriveis males que pode produzir a fome, que já de tão perto ameaça este Povo».

[3] Arquivo Histórico-Parlamentar da Assembleia da República Documentos das Cortes, Maço 37, n.º 40 a.

[4] Cf. Vitorino Magalhães Godinho, Prix et Monnaies au Portugal, Paris, Liv. Armand Colin, 1955, pp. 151-164, veja-se os quadros 19 a 21.

[5] A.N.T.T., Desembargo do Paço, Maço 528, n.º 64.

[6] A.N.T.T., Idem, ibidem.

[7] A.N.T.T. Chancelarias Reais Chancelara de D. João VI livro 37, fls 170-170 vº.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

AS ORIGENS DO ENSINO PRIMÁRIO NA VILA de ALCOUTIM

José Carlos Vilhena Mesquita

A razão do presente artigo prende-se com a leitura de um interessante estudo publicado no «Jornal do Algarve» n.ºs 1775 e 1776 de 4 a 11 de Abril de 1991, pelo Sr. José Varzeano (pseudónimo de António Miguel Ascensão Nunes) intitulado Um século de ensino escolar no concelho de Alcoutim (1840-1940). Nele o autor dá a público várias informações de particular importância para a vila de Alcoutim, mas que também podem e devem servir de exemplo a futuros subsídios de investigação histórica, através dos quais se torne possível a elaboração duma História do Ensino Primário no Algarve.
Não vamos criticar, rebater ou contrariar a preciosa contribuição que o Sr. José Varzeano nos acaba de oferecer. Bem pelo contrário. A minha intenção é tão simplesmente a de contribuir para o aprofundamento do referido artigo, na parte talvez menos esclarecida que o mesmo comporta: as origens cronológicas do ensino primário em Alcoutim.
Assim, no citado artigo, José Varzeano refere a data de 1840 como início da instrução primária em Alcoutim, mas não acrescenta outra prova documental senão a lacónica referência contida na Acta da Sessão Camarária de 1 de Maio desse ano, onde se constata o fornecimento de cadeiras para a escola. Mas para que tal ficasse demonstrado faltava conhecer a carta de Mercê que instituía o professor proprietário da cadeira de ensino primário em Alcoutim. Esta era a primeira e mais importante questão a desvendar, tendo em conta os limites cronológicos do artigo de José Varzeano. Já lá iremos.
Contudo, o mesmo articulista ­ e brilhante autor da Monografia de Alcoutim, editada em 1985, ­ afirma que a escola primária masculina deveria ser anterior a 1840, visto que num oficio do Administrador do concelho, datado de 1877, e dirigido ao Governador Civil, consta que «a escola da vila é antiquíssima». Como o Sr. José Varzeano não encontrou melhores provas para corroborar ou contradizer as palavras do antigo Administrador de Concelho, deixou que essa afirmação por si só encerrasse a questão. E este é o segundo problema a que gostaria de oferecer uma solução, apesar de ainda não ter encontrado provas definitivamente seguras.
Mas vamos ao primeiro contributo de que o Sr. José Varzeano poderá dispor para uma futura reedição/actualização da sua Monografia de Alcoutim.
Efectivamente o ensino primário instituiu-se em Alcoutim no ano de 1840. A prova está na Carta de Professor proprietário e vitalício da cadeira de ensino Primário em Alcoutim, dada como Mercê de D. Maria II a Francisco José de Barros, em 17 de Janeiro de 1840. Para uma hipotética utilização posterior aqui fica a transcrição da Carta de Mercê:
«D. Maria por Graça de Deos e pela Constituição da Monarchia, Rainha de Portugal, Algarves e seus Dominios; Faço saber aos que esta Minha Carta virem Que hei por bem, Conformando-Me com a proposta do Conselho Geral Director de Ensino Primario e Secundario, Fazer Mercê de Nomear para Professor Proprietário e vitalicio da Cadeira de Ensino Primario de Alcoutim, Districto Administrativo de Faro, a Francisco José de Barros, pelo que Ordeno ao Administrador Geral daquelle Districto, que sendo-lhe prezente esta Carta Sellada com o Sello da Cauza Publica, defira o competente juramento ao dito Francisco José de Barros ou a quem para esse acto estiver munido de legitima procuração, e lhe faça dar posse do seu Cargo pelo Administrador do respectivo concelho, deixando-lhe servir e exercitar, na Conformidade das Leis mediante os vencimentos e prerrogativas que direitamente lhe pertencerem. Não pagou Direitos de Mercê por dispensa da Lei de 19 d'Agosto de 1837.
E por firmeza do que dito é lhe Mandei passar a prezente, referendada pelo Secretario de Estado dos Negocios do Reino e Sellada com o Sello das Armas Reaes.
Dada no Paço das Necessidades em 17 de janeiro de 1840. A Rainha com Guarda - Rodrigo da Fonseca Magalhães [Ministro do Reino].»[1]
Dado que a História do Ensino Primário não é temática do meu interesse académico, não procurei desvendar os traços biográficos de Francisco José de Barros. De qualquer modo, possuo nos meus ficheiros sobre a História do Algarve a nomeação deste mesmo Francisco José de Barros para o cargo de sub-director da Alfândega de Alcoutim.[2]
Quanto à segunda questão, das origens do ensino primário em Alcoutim no século XVIII, apuramos que no tempo do Marquês de Pombal não foi este concelho contemplado com a nomeação de um «Mestre de ler e escrever e contar». Mas disso se pode orgulhar a então designada Vila de Santo António de Arenilha [e não Vila Real de St.º António], que em 22 de Fevereiro de 1774 recebia de D. José I a carta de nomeação de José Pereira para ministrar o ensino das primeiras letras. Dado que o Rev.º Dr. F.X. de Athaíde Oliveira, na sua Monografia do concelho de Vila Real de Santo António não se refere às origens do ensino primário naquela localidade, aqui fica a transcrição do documento, não só pela utilidade de que possa ser alvo, como ainda pelo facto de poder admitir-se uma possível transferência deste «Mestre» para a vila de Alcoutim no reinado seguinte:
«Dom José, etc. Faço saber aos que esta Minha carta virem que tendo consideração aos merecimentos que concorrem na pessoa de José Pereira, Hei por bem fazer-lhe mercê do lugar de Mestre de Ler e escrever e contar para a Villa de Santo Antonio de Arenilha, vencendo de ordenado em cada hum anno quarenta mil reys que cobrará na folha dos Professores da Comarca a que pertencer, e servirá o sobre dito lugar por tempo de tres annos. E quando Eu haja por bem que continue no mesmo exercicio o farey por Appostilla Gratuita nesta Carta E jurará perante o Bispo de Beja do Meu Conselho, Prezidente da Real Meza Censoria, de guardar em tudo o servisso de Deos e o Meu na observancia das Instruçoins determinadas para Escollas Menores e no mais concernente ao dito Emprego, pello que Mando a todos os Menistros officiaes e pessoas a que esta Minha Carta for aprezentada conhecimento della pertencer que deyxem uzar o mesmo José Pereira, plena e Livremente do dito Exercicio de Mestre de Ler e escrever e contar e gozar de todas as Onrras Previllegios Leberdades e Inzençoens que lhe são Concedidas. E por firmeza de tudo lhe mandey dar a prezente Carta asinada pello mesmo Bispo de Beja, e passada pella Minha Chancellaria Mor da Corte e Reyno e Sellada com o Sello pendente de Minhas Armas a qual se cumprirá tam inteiramente como nella se contem e se registará nos Livros da Provedoria e Camera a que pertencer. E não pagou novos direitos na conformidade do meu Decreto de vinte e sete de setembro de 1759.
Dada em Lisboa aos 22 dias do mez de Fevereiro. Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de 1774».[3]
Acontece, porém, que no reinado de D. Maria I a Real Mesa Censória na sua reunião de 12-1-1778 submeteu à aprovação da Rainha uma «lista das terras, conventos e pessoas destinadas para professores», a qual mereceu o régio assentimento em 16-8-1779. Nela surge, creio que pela primeira vez, a instituição do ensino primário em Alcoutim, demonstrada através da indicação de José Pereira da Silva‚ para o cargo de Mestre de ler e escrever.[4]
A principal e única dúvida está na precisão do nome. Seria este José Pereira da Silva o mesmo que exercera idêntico cargo, cinco anos antes, na Vila de Santo António de Arenilha ? Não posso afirmá-lo com segurança. Tudo indica que serão pessoas distintas até porque em 13-3-1783 a Câmara de Vila Real de St.º António recebe da Chancelaria Mor de D. Maria I uma provisão para aforar a José Pereira um determinado terreno;[5] o mesmo acontece em 5-8-1795 e sobre assunto idêntico: aforamento de terras.[6] Ora isto leva a crer que o «Mestre» José Pereira continuava em Vila Real. Contudo, não exercia ali o múnus para que fora nomeado no tempo de Pombal, visto que na lista dos professores promulgada por D. Maria I quem surge no desempenho daquelas funções é um tal Francisco José Torrones.[7]
Por mais esforços que fizesse nunca encontrei a carta de nomeação de José Pereira da Silva para o cargo de «Mestre de Ler e escrever da vila de Alcoutim», como aliás era meu propósito demonstrar no intuito de dar como absolutamente segura a instituição do ensino primário em Alcoutim no ano de 1779. O único José Pereira da Silva que encontrei no Registo Geral das Mercês a exercer funções docentes diz respeito a um «Profeçor de Orthographia Diplomatica para esta cidade de Lisboa, vencendo de ordenado em cada hum anno quatro centos mil reis».[8]
Sabendo-se que no tempo de D. Maria I se procedeu à reforma compulsiva de certos professores, com metade do ordenado «que percebiam», assim como à transferência de outros para localidades muito afastadas daquelas onde anteriormente se encontravam fixados - é possível, embora muito duvidoso, que talvez sejam ambos uma e a mesma pessoa. Contudo, custa a crer que este José Pereira da Silva passasse de um cargo remunerado com 400$000 réis/ano em Lisboa, para uma longínqua vila raiana, com um ordenado dez vezes inferior àquele que auferia antes.
Infelizmente nada mais pude apurar, talvez pela desmotivação que o próprio assunto me oferece. A época de D. José e de D. Maria I está fora dos meus horizontes de investigação histórica. Por isso, deixo ao interesse de outros estudiosos, porventura interessados nestes assuntos, a tarefa de deslindar esta imbróglia confusão e semelhança de identidades.
Para terminar, deixo desde já ao Sr. José Varzeano a promessa de voltar a falar de Alcoutim, mais propriamente acerca de uma «innaudita e nunca lembrada cheia deste Rio Godiana... tão inorme que de outra igual não há mimoria», ocorrida entre 31-1 e 10-2-1823, da qual resultou o derrube do edifício da Câmara e do vetusto Pelourinho.

NOTAS


[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral das Mercês, Livro 11, fls. 232-232 v.º

[2] A.N.T.T., Idem, livro 36, fl. 91 v.º.

[3] A.N.T.T., Chancelaria de D. José I, Livro 34, fl. 12.

[4] Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Collecção de Leis, decretos e alvarás de D. José I e D. Maria I, «Listas das Terras, Conventos e Pessoas destinadas para Professores de Filosofia Racional, Retórica, Lingua Grega, Gramática Latina, Desenho, Mestres de Ler Escrever e Contar, como também dos aposentados nas suas respectivas cadeiras, tudo por resolução real de S. Majestade de 16 de Agosto do presente anno de 1779, tomada em consulta da Real Mesa Censória de 12 de Janeiro de 1778», cota 4-30-9-4.

[5] A.N.T.T., Chancelaria de D. Maria I, Livro 20, fl. 253.

[6] A.N.T.T., Idem, Livro 48, fl. 246.


[7] B.G.U.N., Idem‚ ibidem.

[8] A.N.T.T., Registo Geral das Mercês‚ D. José I, Livro. 29, fl. 52.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Fortaleza de Santa Catarina na Praia da Rocha


José Carlos Vilhena Mesquita

Remonta aos anos trinta da centúria de seiscentos a fundação do conhecido forte e actual monumento histórico, turisticamente conhecido por “Miradouro de St.ª Catarina, situado no extremo sudeste da Praia da Rocha, dominando a embocadura do rio Arade. Com indubitável certeza, sabe-se que em 1633, durante o reinado de Filipe III, o então governador do Algarve, D. Luís de Sousa, dedicou-se pessoalmente à conclusão das obras, nelas empregando as rendas da fazenda pública e do donatário de Vila Nova de Portimão, que era ao tempo o Conde D. Gregório Castelo-Branco.
No célebre relatório do engenheiro Alexandre Massaii, datado de 1621 e designado por Descripção do Reino do Algarve, publicado por Lívio da Costa Guedes no «Boletim do Arquivo Histórico Militar» (n.os 57-58), consta que para obstar aos ataques dos corsários ou de outros agressores que colocassem em risco a defesa das cidades de Portimão e de Silves, se decidiu, em consonância com os especialistas da sua comitiva, optar pela construção de um forte na ponta de Santa Catarina, onde já existia uma antiga ermida, que talvez já antes funcionasse como torre de vigia da costa, pois que St.ª Catarina é da invocação religiosa dos artilheiros militares.
Dado que a falésia estava virada para o sul, apresentando uma altura e posição natural já por si quase inexpugnável, optou-se pela construção duma sólida muralha abaluartada para defesa de terra, com revelins para a fixação de peças de artilharia que disparariam para as praias adjacentes e para a entrada na foz do Arade. Para efectuar uma barreira de artilharia que impedisse a penetração na barra do rio, sugeriu também aquele engenheiro italiano a construção, na margem oposta, do forte de São João de Ferragudo, o que só se concretizaria após a Restauração de 1640, possivelmente em 1643, ou seja dez anos depois do Forte de St.ª Catarina.
Conforme se pode ver no “segundo parecer”, que foi o aprovado dos três que Massaii desenhou para a Ponta de St.ª Catarina, mantém-se inalterável a cortina de muralha com dois meios baluartes nos extremos para a fixação de quatro peças de artilharia, cuja estrutura original compõem a fachada principal, situada a norte de todo o complexo militar. Mas pouco ou nada restando das muralhas laterais, que seriam baixas e pouco extensas, por serem desnecessárias face à envergadura alcantilada da encosta natural. Os restos, ainda visíveis, desses muros situados a nascente e a poente, serviam para sustentar algumas peças de artilharia. Desapareceram com o tempo não só essas paredes laterais como também as peças de fogo, das quais ainda há bem pouco tempo restavam seis canhoneiras de feitura recente. A antiga ermida, cuja invocação deu origem à designação do forte, sofreu sensíveis alterações por ter sido transferida para a face esquerda do interior da muralha, onde, conforme se vê no desenho de Massaii, também se construíram diminutas aposentadorias para fins militares. Não creio que tenha sido construído o fosso, sugerido por Massaii, à volta da fachada original, pois que em face das novas circunstâncias políticas e das novas estratégias militares, os antigos fossos de forte cariz medieval, tornaram-se desnecessários e obsoletos. O engenheiro italiano para qualquer dos três desenhos propostos (um Baluarte e dois pedaços de cortina; dois meios baluartes e uma cortina [opção aprovada]; ou um baluarte ao meio com duas meias cortinas), estimou uma despesa geral a rondar um conto de reis e 200 mil réis.
A estrutura militar original manteve-se praticamente inalterada até aos novos dias, conservando-se quase intacta a fachada, assim como a ermida e a cisterna. Acresce dizer, porém, que nos finais do século XVIII (entre 1792 e 1794) foi palco de sensíveis obras de reparação, derivadas dos estragos provocados pelo terramoto de 1-11-1755. Com efeito, o abalo telúrico e o desastroso maremoto que se lhe seguiu, causaram certos estragos, abrindo brechas nas muralhas, derrubando os muros laterais, a antiga “casa do capitão” e a vetusta ermida. O conde Val de Reys, então governador e capitão-general do Algarve, encarregou o coronel José de Sande Lemos, reputado engenheiro militar, de procedeu às obras de reparação do forte de St.ª Catarina, datando dessa época a actual configuração daquele complexo histórico-militar. Os muros da fachada foram reforçados com mais de um metro de espessura, a ermida foi consolidada, assim como a cisterna, o paiol e outras arrecadações militares.
A utilização prática e efectiva do forte, digamos assim, nunca foi de grande monta, a não ser nos finais do séc. XVII e princípios da centúria seguinte, períodos em que a costa barlaventina era esporadicamente assolada por corsários magrebinos e até ingleses, de cuja memória não se apagam os estragos provocados por Sir Francis Drake.
Nos anos de Oitocentos praticamente não se ouviu falar do forte de St.ª Catarina. As suas peças de artilharia eram escassas e pouco eficientes, perante a versatilidade de manobra das novas embarcações e até perante o aumento do poder de fogo dos novos vasos de guerra. E o certo é que pelas imediações das suas muralhas passou, sem qualquer oposição de fogo de artilharia, a armada liberal do almirante Charles Napier, quando em Junho de 1833 desembarcou nas praias da Altura as tropas do Duque da Terceira. O mesmo aconteceu no seu regresso em direcção ao Cabo de S. Vicente, onde se deu a feroz batalha naval do mesmo nome, cujo vitorioso desfecho ditou a definitiva implantação do liberalismo e do regime parlamentar-constitucional no nosso país.
Na verdade, o forte de St.ª Catarina desde os meados do séc. XVIII que se resumia a um posto de vigia da costa marítima, tornando-se a sua utilização militar de todo obsoleta a partir do momento em que a marinha passou a dispor de embarcações movidas a vapor e equipadas com obuses de largo alcance. Ainda que não tenha sido abandonado, o certo é que o forte de St.ª Catarina passou todo o século XIX e primeira metade da centúria seguinte, praticamente desactivado, resumindo-se a sua utilidade prática à instalação de um posto da Guarda-Fiscal e mais recentemente à instalação da Capitania do Porto de Portimão.
Durante os preparativos das Comemorações Centenárias de 1940, o comissariado regional e as autoridades centrais, pensaram no seu aproveitamento como equipamento turístico, sector que a partir dessa altura começava a estar nas cogitações da Sociedade de Propaganda Nacional, cujos serviços eram dirigidos por António Ferro, fiel servidor do “Estado Novo”, mas acima de tudo um homem ilustre, esclarecido e modernista.
Com o advento das Comemorações Henriquinas, realizadas em 1960, procedeu-se à transformação do velho forte num moderno e turístico miradouro, que engrandeceria toda a marginal da Praia da Rocha, já então uma estância turística de grande renome internacional, mercê do seu renovado casino e dos modernos equipamentos hoteleiros, de entre os quais assumia particular destaque o Hotel Algarve. As obras operadas no antigo Forte de St.ª Catarina foram de molde a torná-lo atraente e funcional para os novos fins a que se destinava, dotando aquele espaço com um quiosque de “souvenires”, um bar-esplanada, um restaurante e um magnífico miradouro voltado para a foz do rio Arade, dominando toda a zona envolve da Praia da Rocha. Até aos anos setenta foram ali efectuadas obras de reconsolidação do esporão rochoso, melhorando-se também os equipamentos turísticos, com nova esplanada num piso inferior, instalações sanitárias e remodelação dos aposentos da capitania, com vista à sua transformação em estalagem ou pousada.
Actualmente mantém a sua função turística, perdendo-se um pouco a sua percepção como monumento histórico devido ao estacionamento automóvel e, mais grave do que isso, ao parqueamento de vendedores ambulantes que desvirtuam quase por completo o mais belo testemunho do património histórico de Portimão.