domingo, 13 de setembro de 2009

A FEIRA de ALCOUTIM em 1822


José Carlos Vilhena Mesquita

Prometi no artigo anterior, sobre as cheias do Guadiana em 1823, carrear para estas mesmas colunas os documentos históricos que justificaram em 1822 a instituição de uma Feira na vila de Alcoutim. E isto porque o Sr. Ascensão Nunes, na sua Monografia de Alcoutim, refere a pgs. 117 que não encontrou o ano de criação da "Feira da Vila". Ora, como Baptista Lopes não só ignora a data da sua fundação como ainda se engana nos dias em que a mesma decorre[1], decidi-me a prestar mais este pequeno subsídio para a História de Alcoutim.
A feira, em si, constituía, tão simplesmente, uma reunião mercantil, baseada na oferta da produção excedentária e regulada pela necessidade/escassez dos bens de consumo. Porém, desde o "movimento foraleiro", que na Idade Média presidiu à formação dos concelhos, que as mesmas traduziam uma estratégia de desenvolvimento económico do sector primário e de comunicação intra-regional. À sua organização e reconhecimento oficial estavam associados determinados privilégios e isenções fiscais, que lhes outorgavam um carácter muito especial - quer comemorativo (santo padroeiro, data histórica, etc.), quer até auto-determinativo, visto que, por vezes, a pujança económica dos pequenos mercados impunha o seu reconhecimento oficial com o estatuto de feira. Daí surgir a distinção entre feiras regulares e feiras francas. Enquanto as primeiras se reuniam por um dia, com uma periodicidade semanal ou mensal, em locais definidos como o "Rocio da Vila" ou o "Terreiro do Mercado"; as segundas distinguiam-se pelo seu carácter anual, geralmente nas épocas de determinadas colheitas, com datas fixas mas alargadas a vários dias, num espaço físico mais amplo como o "Campo da Feira", tendo a particularidade de estarem isentas de encargos fiscais.
No século XIX criaram-se dezenas de feiras francas, muitas delas "especializadas" em certas produções regionais, como legumes, aves, gado, loiças, etc. Chegaram a ser mais de trezentas, entre profanas e religiosas; no primeiro caso designavam-se por "Feiras Grandes", no segundo por "Festas". O exemplo de Alcoutim pertence ao primeiro caso, embora como veremos mais adiante, não lograsse o estatuto de feira franca.
Vejamos, depois deste breve preâmbulo, como se desenrolou o processo da sua criação.
A origem da Feira de Alcoutim está intimamente ligada à vontade popular. Foram os moradores da vila que determinaram a necessidade da sua criação. Nada mais simples do que isto. Porém, pretendiam-na franca. A exemplo do que acontecia no passado, esta pretensão faz supor que a feira já existia e que ao oficializá-la apenas pretendiam isentá-la de impostos. Não acredito nessa hipótese. Penso que o objectivo consistia numa antecipação à feira de Mértola, que se realizava a 20 e 21 de Setembro, onde os alcoutinenses iam vender a produção cerealífera dos seus campos.
Não deixa, porém, de ser estranho que nesse ano de 1822 fosse instituída a feira de Alcoutim ­ predominantemente cerealífera ­ quando as terras do litoral barlaventino, atravessavam uma forte carestia de cereais. Em Portimão, por exemplo, só tinham trigo para 60 dias em «consequencia da mais desgraçada colheita que se tem visto, pois que huma grande parte dos Lavradores deste Districto nem a semente colherão».
[2]
Em Fevereiro de 1821 (ano da petição dos moradores de Alcoutim), os lavradores alentejanos da raia de Espanha queixavam-se da decadência da agricultura devido ao «exçeçivo preço a que a ambição dos senhorios tem elevado a renda das erdades, asim como a falta de braços»; além disso, baixaram os preços dos cereais, lãs e gados, em face do contrabando espanhol sobretudo de trigo, cujo preço era «tam comodo que a maior parte dos povos da arraia se não sustenta de outro pão».[3]

Petição da Feira Franca

Sendo Alcoutim uma vila da raia espanhola‚ é provável que experimentasse o mesma fenómeno. Mas a movimentação dos preços dos cereais oscilava bastante, e em períodos curtos, nos principais mercados do trigo, evidenciando-se mais constantes no sul do que no norte.
[4] Por isso‚ é possível que Alcoutim, inserida nas margens do Guadiana, com férteis campos de regadio, pomares, gados e pescarias estivesse a atravessar um período de abundância em contradição com a alta dos preços nos mercados de Évora e Beja. Seja como for, estou em crer que a justificação desta feira prende-se não só com as épocas das colheitas como ainda com factores concorrenciais de mercado entre Mértola e Castro Marim.
O certo é que os alcoutinenses, em 1821, suplicaram a D. João IV a criação de uma feira franca, através da seguinte petição:
«Senhor ­ Dizem os moradores na vila de Alcoutim e seu termo que não havendo Feira alguma na dita Villa à qual concorrão os Povos Vezinhos para venderem e comprarem os generos e feitos que fazem a abundancia e giro do Comercio, pertendem que Vossa Magestade lhes faça Graça de Conceder-lhes licença para se fazer mercado publico na dita villa no mez de Setembro e nos dias treze, quatorze e quinze francos, pois que os Supplicantes se persuadem ser lhes conveniente e de muita utilidade, athe mesmo para a Real Fazenda, para cujo fim Pedem a Vossa Magestade se digne mandar se lhes passe provisam. E. R. M.
Como Procurador, Jacintho Alves de Pina.»
[5]
Assinaram esta petição 32 pessoas, cujos nomes escuso de citar para não alongar demasiado este artigo. Inserida no mesmo processo judicial encontrei uma carta da Câmara de Alcoutim, a confirmar e corroborar a petição dos seus moradores:
«O Prezidente e Veriadores da Camara de Alcoutim, Clero Nobreza e Povo desta mesma Villa e seu termo, sendo mandados ouvir pelo Meretissimo Corregedor de Beja (a cuja Commarca esta Villa pertence) sobre o requerimento que fizemos, no qual pedimos a Sua Magestade a graça de nos conceder trez dias de feira nesta Villa: respondemos que queremos ter feira nos dias treze, quatorze e quinze do mez de Setembro, e que esta para todos os moradores desta Villa e seu termo seria franca e sem onus algum e só os de fóra pagarão terrado e este que seja aplicado para o Concelho que he pobrissimo. Esta he a nossa vontade geral. Eu Antonio Sebastião de Freitas, Escrivão da Camara que o escrevi.
[6]
Subscrevem esta missiva 44 habitantes, dos quais 8 eram analfabetos. Entre as individualidades destacam-se o Juiz de Fora, Joaquim António da Costa Sobrinho, os Veriadores António Joaquim da Silva, José Guerreiro Mestre e João Viegas Teixeira; o Procurador, Joaquim Costa, o Major Governador da Praça, José Maria Xavier, o Capitão Mor, José de Britto Magro, o Major Comandante de Ordenanças, Sebastião José Teixeira, o Prior da Matriz, Joaquim José Cavaco e o Ajudador, Frei Thomaz de Santa Rita Evangelista.
Para atestar a veracidade dos factos contidos na petição, foi lavrado em Beja, a 23-7-1821, pelo Corregedor da Comarca Dr. António José Cabral de Mello e Pinto, um auto de inquirição no qual testemunharam o Rev.º António José Penedo, José Telles de Góis e Manoel Joaquim Ferreira Pato, todos moradores naquela cidade. Confirmaram que «a Feira estabelecida naquella Villa [podia] fazer mais abondante o giro do commercio e que nos dias pedidos no dito requerimento são mais favoraveis por ser em melhor tempo.» O Juiz de Fora de Beja, Joaquim José Anastácio Monteiro de Carvalho e Oliveira, em 30-7-1821, oficiou ao Secretário de Estado dos Negócios do Reino que a petição de Alcoutim deveria ser inteiramente satisfeita.

O Rei autoriza.

Em face dos dados carreados para o processo, a Mesa do Desembargo anuiu, em parte, à pretensão dos moradores e Câmara de Alcoutim, «com a clauzula de não ser franca a feira pertendida»
Conformando-se com esse despacho o Rei mandou exarar a seguinte Provisão:
"Dom João por Graça de Deos, e pela Constituição, etc. Faço saber que os Moradores da Villa de Alcoutim, e seu Termo, Me supplicarão a Graça de lhes conceder licença para estabelecerem hum Mercado publico e franco em os dias 13, 14 e 15 do mez de Setembro, afim dos Povos vezinhos ali venderem e comprarem os generos e effeitos que fazião a abundancia e giro do Commercio de que rezultava utilidade Publica e interesse da Fazenda Nacional. E outro seu requerimento a Informação que se houve do Juiz de Fora da Cidade de Beja servindo de Corregedor da Commarca da mesma cidade, com audiência da Câmara, Nobreza e Povo da Villa, que não tiverão duvida no pertendido estabelecimento, bem como o não teve o Procurador da Coroa e Soberania Nacional que também mandei ouvir. Hey por bem conceder aos Supplicantes a necessaria licença para nos dias treze, quatorze e quinze do mez de Setembro de cada hum anno poderem fazer na dicta Villa a Feira de que se tracta com a clauzula de não ser franca. E Mando ás justiças a que pertencer cumprão e guardem esta Provisam como nella se contem, será registada nos livros respectivos da Camara, da sobredicta Villa, e vallerá posto que seu effeito haja de durar por mais de hum anno sem embargo de Ord. do livro 2.º 40 em contrario. Não pagarão direitos por estar assim Determinado, como constou por hum conhecimento regido emforma a fl. 15 do livro 91 do Registo Geral. El Rey o Mandou pelos Ministros abaixo assignados do seu Conselho e Desembargo do Paço. Luiz António de Araujo a fez em Lisboa a 26 de Março de 1822. José Maria Sinel de Cordes a fez escrever. Manoel Vicente Teixeira de Carvalho, Francisco José de Faria Guião. Por Despacho do Desembargo do Paço de 22 de Agosto de 1821.»
[7]
Deste modo, estão esclarecidas as dúvidas. A feira de Alcoutim data oficialmente de 22 de Agosto de 1822, ressaltando dos documentos acima transcritos que a vontade geral dos alcoutinenses se consubstanciava numa feira franca, o que não veio a ser satisfeito pelo monarca. Faltou a este povo a força económica e a pressão política necessária para fazer prevalecer os seus legítimos desígnios. E a conjugação desses dois vectores esteve quase sempre por detrás da marginalização e esquecimento a que tem sido votada, desde há séculos, a raiana vila de Alcoutim.


NOTAS

[1] João Baptista da Silva Lopes, Corografia ou Memoria Economica, Estadistica, e Topografica do Reino do Algarve, Lisboa, Typ. Academia das Sciencias de Lisboa, 1841, p. 396.

[2] Arquivo Nacional da Torre do Tombo Ministério do Reino, Câmaras do Reino, Maço 986, letra P.
Nesta carta da Câmara de Vila Nova de Portimão, datada de 9-11-1822, pede-se ao Rei que lhes conceda 60 moios de trigo «para acorrer aos terriveis males que pode produzir a fome, que já de tão perto ameaça este Povo».

[3] Arquivo Histórico-Parlamentar da Assembleia da República Documentos das Cortes, Maço 37, n.º 40 a.

[4] Cf. Vitorino Magalhães Godinho, Prix et Monnaies au Portugal, Paris, Liv. Armand Colin, 1955, pp. 151-164, veja-se os quadros 19 a 21.

[5] A.N.T.T., Desembargo do Paço, Maço 528, n.º 64.

[6] A.N.T.T., Idem, ibidem.

[7] A.N.T.T. Chancelarias Reais Chancelara de D. João VI livro 37, fls 170-170 vº.

1 comentário:

  1. Obrigado pela sua interessante pesquisa. Gostei de ler e, com os devidos creditos, vou levar.

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