terça-feira, 15 de setembro de 2009

Um clamor na centelha do génio

José Carlos Vilhena Mesquita

A arte poética é uma capacidade inata, que desperta em nós como resposta a um profundo estado emocional. O sofrimento e a paixão são os estados de alma mais comumente exorcizados através da poesia. O poeta é um sofredor. E quem ama sente a poesia nas mais pequenas coisas da vida. A dor e a alegria parecem constituir-se nos antípodas da nossa esfera emocional. Porém, andam geralmente próximas. Não restam dúvidas que nos preenchem a existência e fazem-nos sentir que a vida não é mais do que um universo de emoções.
É desse universo, desse pélago de intensas comoções, de perturbações e rupturas, que nos fala a poesia de Quina Faleiro. Sente-se nos seus versos uma alquimia de impressões, mescladas num doloroso sofrimento de rejeição, de que ressuma a interjeição da deslealdade. A perfídia é um dos seus campos preferidos. Uma lavra de quem sabe por onde arrotear. E quão sentenciosas palavras sulcam os seus poemas, como se neles traçasse um mapa de desencantos. Os seus versos ferem-nos por dentro, estremecem-nos a alma, impressionam-nos em sentimentos de culpa. Reflecte-se neles o exorcismo do aleive e da insídia. E neles espiam-se os gestos que se escondem por detrás das mãos que nos enganam, modelando rostos que se esfumam na imperceptibilidade das formas. Não vemos ninguém, apenas sentimos. Estamos todos ali, presos naqueles versos que nos acorrentam à realidade amarga da vida. Amamos e sofremos, somente.
Por outro lado, os sonetos de Quina Faleira são um exemplo flagrante dessa espécie de surda dialéctica interior entre a mágoa das quiméras e a imaterialidade do sonho. É o amor que espreita nas esquinas do tempo, fugaz e enganador. É a construção dos arquétipos, moldados na inatingível perfeição dos seres que nos rodeiam. A Quina imaginou-os esculpidos no barro do Olimpo, puros e sem mácula, talhados sob os cânones dos deuses. O ídolo que erguera fez-se em pó, esboroou-se nas fissuras da traição, apodreceu nas entranhas da matéria. Diluiu-se o sonho, desvelou-se a farsa e a aurora rompeu luminosa no orvalho das lágrimas. A vida ressumava novamente, titubeante e confusa, por entre os escombros do passado.
Os seus versos são palavras meigas, percorrendo o corpo sensível em toques de emoção, exalando segredos que se sussurram, na aragem do amor volatizado pelo fogo da paixão. São como rosas brancas em perfumadas pétalas de imaculada candura. Mas entre a pureza da aparência despontam acerados espinhos em pungentes versos de amor inconseguido. Esta é a lição da vida. Aprendeu-a, com lágrimas escondidas pelas mãos que abafam gritos de raiva, a minha querida amiga Joaquina Faleiro.
Secou-se o pranto, derramou-se no fluir do tempo o último cálice do sacrifício. Descravou os punhais da traição, suturou as feridas, desatou as amarras e encarou a existência com um novo olhar. Regressou à vida. Desprendeu-se ao vento e seguiu o seu rumo, aprendendo a voar sózinha, como se tudo começasse agora, somente agora no plano inclinado da vida.

Foram-se os anéis da vida. Partiram-se os elos que a prenderam em dolosos laços de hipocrisia e falsidade. Mas ficaram os dedos, sobreviventes e triunfantes, numa confusa mesclagem de sofrimento e libertação. Ficaram entrelaçados e serenos... a meditar. Não encontram respostas, nem reclamam justificações. Por vezes, erguem-se para enxugar as lágrimas da nostalgia. É a involuntária derrota do amor, numa incontida sensação de perda. A poesia surgiu na vida de Quina Faleiro como lenitivo da solidão, uma espécie de confidente companheira, que não desilude nem abandona nos momentos em que o desespero parece querer trucidar a alma. As desilusões e amarguras que antes em lágrimas se transformavam, correm agora na asas do prelo em belos sonetos materializadas.
Eis, pois, a obra, humilde amostra duma poetisa singular, de cujos dedos já não escorrem lágrimas, mas antes cintilam lampejos de génio.
Prefácio ao livro de poesia Choram Meus Dedos, da autoria de Quina Faleiro.

4 comentários:

  1. Hélio Manuel Coelho Matias24 de setembro de 2009 às 22:53

    Amiúde tenho visitado este seu "blog"...e tento perceber através dele o que tem sido a "sua vida de algarvio"!?
    Registo imediato é a aculturação que certamente sofreu..."de mottu proprio"...claro!
    O Algarve e os algarvios devem referenciá-lo ao confrontarem-se com tanta informação...e tanta disponibilidade da sua parte para a fazer.
    Um trabalho desta dimensão só...por gosto e...dedicação!
    Um abraço.

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  2. Prezado Amigo
    Dr. Hélio Matias:
    Obrigado pelo seu generoso comentário.
    Com efeito radiquei-me no Algarve, mais propriamente em Faro, em 1978, quando casei com a minha moura encantada. Mas foi em 1982 que comecei a publicar os meus primeiros livros sobre o Algarve, sendo curiosamente o de estreia relativo à Universidade do Algarve, onde ingressei no ano seguinte como docente.
    Sou um minhoto que se tornou algarvio por opção.
    Quanto ao apreço que os algarvios possam ter por mim... é que tenho dúvidas. Mas o que importa é a minha paixão pelo Algarve.
    Receba um grande abraço do Vilhena Mesquita

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  3. Meu caro Prof. JCVM

    O senhor já disse quase tudo acerca da arte poética e dos sonetos de Quina Faleiro.

    Dir-lhe-ia que A.L. Antunes em relação aos poetas diz "Tenho inveja dos poetas",

    Miguel Veiga, diz, "Trago sempre um poema no bolso"

    Isto para dizer que L.A. não a conseguiu fazer e que M.V. não a dispensa.

    E diz ainda M.V. lá no seu "A MINHA ÚNICA DÚVIDA É O INFINITO", um advogado deve ler míriades de poemas.

    A arte poética, não está, felizmente, numa atitude estática. Como arte que é, é susceptível de evolução e a modernidade da poesia é uma realidade.

    Isto para dizer, que a poesia dos nosso dias se situa na modernidade, onde o que prevalece é a palavra, inclusivamente, a palavra tem prioridade em relação à mensagem.

    O soneto clássico é uma forma rígida de fazer poesia com mérito.

    Deixo aí um aspecto generalizado do desempenho da poesia. De hoje e de ontem.

    Sem mais,

    João Brito Sousa

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  4. Prezado Amigo Brito Sousa
    Obrigado pelas suas palavras.
    Ainda bem que lembrou o Lobo Antunes e o Miguel Veiga.
    O primeiro é um dos maiores escritores do nosso tempo, e certamente por isso um grande admirador dos poetas e das nossas tradições poéticas. Sei que nas horas vagas faz versos e ultimamente chegou mesmo a escrever as letras para algumas canções do Vitorino.
    Quanto ao Miguel Veiga, conceituado causídico da nossa Invicta, lembro-me dele como uma espécie de Casanova do Magestic, um galante uomo no espírito do marialvismo citadino da nossa burguesa e mui leal cidade do Porto. Um homem de incontestáveis talentos, não só no foro como inclusivamente nos areópagos de Orfeu.
    Quanto à poetisa Quina Faleiro, devo esclarecer que foi mulher de grande inspiração e criatividade poética. Porém, viveu na província e, por isso, cedo se viu condenada ao obscurantismo cultural em que vivemos, e continuaremos a viver enquanto não se fizer a regionalização do país, para que só as autoridades regionais possam defender e promover as qualidades e talentos dos seus naturais, sem quaisquer dependências nem subserviências a Lisboa. Em vida a Joaquina Faleiro apenas publicou um pequeno livro de sonetos, passando o resto dos seus dias quase incólume ao braseiro da fama. Só depois de partir, e como homenagem póstuma, é que os amigos da AJEA (nos quais me incluo) editaram os seus últimos sonetos, que são de facto magistrais.
    A Quina infelizmente já não está entre nós, mas vive ainda no nosso coração e na nossa memória.
    Obrigado pelo seu comentário. Volte sempre.
    Vilhena Mesquita

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