quinta-feira, 10 de junho de 2010

Um presépio napolitano do século XVIII na aldeia de Moncarapacho


José Carlos Vilhena Mesquita

Já em tempos aqui falámos na existência dum magnífico museu na aldeia de Moncarapacho, cujas características são verdadeiramente peculiares e facilmente constatáveis na sua própria organização empírico-popular, a contrastar com o valor e até a raridade de algumas das peças ali expostas.
O singelo edifício do museu, acoplado à seiscentista capela de Santo Cristo, compõe-se apenas de dois pisos, que se resumem unicamente a duas salas. Na primeira, amontoam-se dezenas de peças arqueológicas, pertencentes à valiosa colecção do Dr. José Fernandes Mascarenhas, a maioria das quais a necessitarem de um estudo urgente e profundo. Neste âmbito julgamos que seria bastante profícua a colaboração do Gabinete de Arqueologia da Universidade do Algarve, cuja acção científica se tem vindo a disseminar por toda a região, desde o litoral à serra. No segundo piso, reúne-se a colecção de arte sacra do padre Isidoro Domingos da Silva, com algumas preciosidades dignas de relevo, misturadas com outras peças menos importantes, num eclectismo verdadeiramente encantador, nada chocante, resplandecente de luz e de cor.
Mas, de entre todo o seu recheio, assume particular interesse um valioso presépio napolitano, datado da segunda metade do século XVIII, composto por 40 figuras policromas, duma graciosidade espantosa e a que não faltam os mais subtis pormenores escultóricos, que só o engenho e a arte dos barristas italianos seria capaz de realizar.

A origem dos presépios

Todos sabemos o que são presépios. Contudo importará certamente aos mais curiosos conhecer as origens dessas representações artístico-religiosas da Natividade. E para satisfazer essa curiosidade direi que a sua origem é de insondável memória, se bem que seja tradição fazê-la remontar ao século XIII, mais precisamente a 1224, altura em que S. Francisco de Assis fez representar ao vivo, e depois em barro, no eremitério de Gréccio nos Montes Sabinos, o nascimento de Cristo. Nessa lúgubre gruta o fundador da Ordem Franciscana ergueu junto ao presépio um altar sobre o qual rezou a missa da meia-noite. A tradição sacralizou-se e nesse local se edificaria um templo a S. Francisco em cujo altar figura um dos mais célebres quadros de Giotto no qual se apresenta o «Patriarca de Assis» precisamente a construir um presépio. De então para cá os templos católicos, pelo mundo espalhados, passaram a armar os seus presépios na quadra natalícia, em homenagem ao seu tradicional criador.
Com o decorrer dos séculos novos matizes se introduziram nos presépios, irradiando do seu centro religioso todo um espaço cénico verdadeiramente profano, mas ao mesmo tempo muito mais realista, que lhe emprestaria a animação e a alegria de algo que supostamente se movimenta, tem vida e está vivo. Para esse engrandecimento e persistente diversidade muito contribuíram os espanhóis, italianos, portugueses e austríacos, sendo de realçar na Península as escolas de Múrcia e de Mafra, que pela mão de Salzillo e de Machado de Castro se tomaram mundialmente célebres.

A escola napolitana

Mas foram, sem sombra para dúvidas, os Napolitanos os verdadeiros e mais exímios coroclastas da grande arte escultórica de Setecentos. A eles se deve a transição da arte sacra renascentista para o realismo expressionista da arte popular, perseguidora do grotesco e do satírico como significado natural da vida, contra a opressão da aristocracia e a fanatização da Igreja. Foram eles que nos meados do século XVII impulsionaram uma nova arte (e nunca uma arte menor) ao dotarem as antigas figuras, inertes e inexpressivas, de articulações móveis que permitiam variar as posições e criar uma nova dinâmica ao estatismo da própria composição artística. Inclusivamente as figuras que eram arquitectadas em arame, sobre cujas extremidades se fixavam os braços, as pernas e a cabeça esculpida em madeira, passaram a crescer em proporção, atingindo 35 a 45 centímetros de altura, o que as tornava verdadeiramente gigantescas quando comparadas com as antigas miniaturas das igrejas. Por conseguinte, será o século XVIII a verdadeira «era dos presépios».
Apoiados e, fundamentalmente, patrocinados pelo monarca Carlos de Bourbon, os artistas napolitanos puderam aperfeiçoar e intensificar a produção de presépios. Todavia, um ex-artista e grande admirador desta arte, o padre Rocco (membro da corte e conselheiro do rei), salientar-se-ia como o grande impulsionador do fabrico e construção de presépios para as igrejas e palácios napolitanos. Deste modo, rapidamente se desenvolveu o número de coroclastas a ponto de os historiadores italianos chegarem mesmo a qualificar os presépios de a loucura colectiva de Nápoles do século XVIII.

O realismo das figuras

Em breve o significado evangélico do presépio seria ultrapassado pelo carácter profano da maioria das figuras, que passaram a identificar-se muito mais com a vida quotidiana de Nápoles. Por outro lado, a cena da natividade desenrola-se à luz do dia e não à noite, enquanto a singela gruta de Belém passava a ser representada por um templo romano em ruínas, rodeado por rochedos e tojos, marcadamente influenciada pelo estilo neoclássico que então despontava na Europa. À sua volta fervilhava o quotidiano napolitano, ostentando os reluzentes trajes da época, a cuja beleza se prendem facilmente os olhos do observador atento e sensível ao dinamismo estático dos vendedores de frutas e legumes, dos músicos, dos saltimbancos, dos pastores, das crianças que correm atrás dos animais, dos camponeses em trajes domingueiros, do açougueiro, da padeira e sobretudo dos locais mais típicos da cidade, nomeadamente a praça central, a taberna, a mercearia, o albergue, o fontanário, as casas dos camponeses, a Câmara Municipal, a cadeia, etc... Toda esta beleza, materializada até ao mais ínfimo pormenor na captação do real, define a verdadeira arte popular do século XVIII, não só na Itália como praticamente em toda a Europa do Sul. No caso napolitano, expoente máximo da arte do presépio a obtenção de toda esta inacreditável perfeição só foi possível graças ao trabalho conjunto de pintores e escultores, alfaiates, artesãos e até de arquitectos.

Autores célebres

A maioria destes presépios estão assinados pelos seus autores que à sua volta chegaram mesmo a formar pequenas escolas de oleiros. Deste modo ficaram eternamente lembrados os nomes de Domenico António Vaccaro, Matteo e Felice Bottiglieri, Nicola Domma, Giuseppe Cappiellon, Francesco Celebrano, Lorenzo Mosca, Salvatori di Franco, Giacomo Viva, Giuseppe Gori, os irmãos, Trilocco, Francesco Gallo, Tommaso Schettino, os irmãos Gennaro, Giovan Battista Polidoro e principalmente Giuseppe Sammartino, que se notabilizou como o mais famoso e apreciado escultor do século XVIII.
Existe, presentemente, em Nápoles a mais completa e valiosa colecção particular de presépios do mundo reunida no palácio da família Catello. Mas, os mais belos e no seu conjunto os mais numerosos presépios napolitanos encontram-se depositados no Museu Nazional di S. Martino em Nápoles. Não obstante, em Roma, encontra-se a Associazione Italiana Amici del Presepio, onde se reúne um centro mundial de documentação presepística, um riquíssimo arquivo internacional de fotografia e ainda se publica a revista Il Presépio. Por conseguinte, são estas as instituições que ao presente se encontram vocacionadas para a estudo e conservação dos presépios napolitanos. Suponho, contudo, que a existência do interessante exemplar de Moncarapacho lhes deverá ser desconhecida, apesar de o mesmo haver sido inventariado sob a classificação de interesse público.

Presépio napolitano em Moncarapacho

A presença de um presépio napolitano no Museu Paroquial de Moncarapacho deve-se unica e exclusivamente à persistente e total dedicação que o seu fundador padre Isidoro Domingos da Silva tem votado à conservação do património artístico da sua região. Compõe-se de 45 peças, 11 das quais são representações animalistas embora destas apenas seis sejam verdadeiramente napolitanas. Pertenceu à família Júdice Fialho, grande impulsionadora da indústria conserveira algarvia, que em consequência das partilhas do seu património acabou por ser doado ao Asilo de Santa Isabel em Faro. Aí, durante largos anos na quadra natalícia foi exposto ao público, mas o desconhecimento do valor das próprias peças permitiu que o desleixo originasse progressiva e irremediavelmente a sua desagregação e infelizmente a destruição de algumas figuras.
Nestas circunstâncias o viria a encontrar o padre Isidoro Domingos da Silva, alertado pela notícia de que aquela instituição se preparava para vender o seu majestoso presépio. Ajustada a transacção, que orçou em pouco mais de uma dezena de contos, depressa aquele sacerdote enviava as corroídas figuras, que ainda restavam, para o Museu de Arte Antiga, a fim de serem restauradas nas oficinas José de Figueiredo. Os trabalhos de restauro duraram dois anos e obrigaram a um pormenorizado estudo das suas figuras, que foram comparadas com outras da mesma época e estilo artístico, nomeadamente com as do deslumbrante presépio da Cartucha de San Martino, em Nápoles. O Dr. Bairrão Oleiro, que se encarregou de mandar inventariar o presépio, datou-o da segunda metade do século XVIII e atribuiu a sua autoria aos escultores italianos Nicola, Saverio Vassallo ou Giuseppe Sammartino. Pessoalmente julgo que se deverá atribuir a autoria a este último por ser o mais famoso e o que melhor atelier possuía na época.
Todas as figuras têm cabeça de terracota e os membros superiores e inferiores de madeira policromada. Das quarenta figuras de que se dá noticia no «Diário de Governo», III Série, n.º 55 de 6/3/1975, constam catorze camponeses e seis camponesas, quatro homens (não identificados), cinco negros, um mendigo, quatro pastores, quatro ovelhas e dois cavalos. Esta discriminação parece-nos bastante incompleta, pois que alguns dos camponeses pela riqueza das suas vestes parecem identificar-se com ricos agrários, muito distantes dos simples pastorelli e dos sumptuosos Reis Magos, que aqui são identificados apenas como «homens». As figuras de negros, à excepção de um rico mercador árabe, representam os escravos (por isso são mais pequenas, cerca de 26 cm de altura) e, por incrível que pareça, da Sagrada Família nem ao menos se dignaram chamá-la pelo seu nome bíblico. Em suma, para ficarmos apenas por aqui, no inventário do presépio não se procurou identificar os seus componentes, o que me parece inadmissível visto não ser tarefa muito difícil de executar. Os trabalhos de restauro, que incidiram fundamentalmente sobre as roupagens, as mãos e os pés dos bonecos, foram graciosamente prestados pela citada instituição, gesto esse que salientamos contagiados pela alegria com que sempre a ele se refere o benemérito padre Isidoro Domingos da Silva. Foi um acto da maior justiça prestado a um humilde clérigo que toda a vida lutou para erigir um museu na sua paróquia. Logrou realizar esse sonho ao cabo de trinta anos de insondáveis canseiras e privações, muitas vezes pedindo dinheiro emprestado quando as suas economias já se haviam esgotado.
Os Moncarapachenses, que ao seu intrépido e incansável prior muitas obras de beneficência ficam devendo, não tiveram ainda o bom senso de demonstrar a sua gratidão promovendo-lhe uma homenagem que, entre outras iniciativas, culminasse com a atribuição do seu nome ao Museu Paroquial. Seria um acto do mais elementar reconhecimento e gratidão, que só não se concretizou pelo facto de no Algarve o “progresso” turístico e o materialismo quotidiano haverem empedernido o coração dos seus naturais e ofuscado os seus olhos com o fulvo matiz da ganância, da inveja e da ignorância.
Os homens de valor no Algarve nada valem. E, ainda que daqui saiam e à sua custa se façam gente de algo, raros são os que se entristecem de nascer algarvios.
Estranha sina... desditosa gente.

Publicado no «Diário de Notícias», supl. de Natal, 21-12-1984