domingo, 18 de abril de 2021

O Terror Miguelista no Algarve - perseguição e devassa

O Algarve, pelo evoluir dos acontecimentos políticos, que marcaram a primeira metade do séc. XIX, constituiu-se numa espécie de enclave revolucionário, liberal-constitucionalista, de apoio e em consonância com a Junta Governativa do Porto. Se tivesse havido melhor coordenação de meios, e sobretudo mais apoio no efectivo castrense, a revolta cartista do eixo Porto-Algarve não teria desembocado no triste episódio da “belfastada”. O fracasso da “Revolta de Maio”, em 1828 no Algarve, contribuiu decisivamente para a usurpação miguelista e para a restauração do absolutismo, cujo clima persecutório acabaria por desencadear a guerra civil.
Na verdade, a prepotência miguelista deixou-se resvalar para os limites da insanidade política, num quotidiano excessivamente repressivo, vedando à nação os seus mais elementares direitos de cidadania. O autismo político do regime absolutista dividiu o país em dois projectos distintos – o do passado tradicionalista, apostólico e legitimista; e o do futuro, liberal, constitucional e parlamentar. A grande diferença entre os dois projectos políticos incidia na concepção e cedência da liberdade, para transformar os vassalos em cidadãos.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Homenagem ao poeta Tito Olívio no Dia Mundial da Poesia e no seu 90º aniversário

Comemorou-se no passado dia 21 de Março o Dia Mundial da Poesia, a par da Primavera, que anuncia o ciclo da regeneração da vida, no brilho do sol, no perfume das flores, e de todas as evidências naturais da esperança, do amor e da fertilidade. São esses, os temas positivos, que mais inspiraram a criação poética. E nós, portugueses, somos um povo de poetas, marcados pelo orgulho da independência e pela glória espiritual da nossa identidade. Soubemos erigir uma pátria, e foi pelo destemor da vontade e da coragem que logramos definir o exíguo quadrilátero a que demos o nome de Portugal. Fomos e continuamos a ser a mais antiga nação da Europa, com nove séculos de existência, mantendo sempre a mesma língua, o mesmo território, a mesma religião e o mesmo povo. Numa época trágica, como a que vivemos hoje, não é um vírus que nos vai abater nem calar, mas antes a falta de coragem, de orgulho, de valentia e de consciência nacional, para nos mantermos unidos e não deixar subjugar aos interesses materiais, o supremo valor espiritual da pátria, erguida com o sangue, as lágrimas e a vida dos nossos egrégios avós. É assim que reza o nosso hino, porque foi assim que se moldou no barro da História, a alma e a estirpe do povo lusíada, disseminado pelos diversos quadrantes geográficos da Humanidade.Nesse lindo dia de sol primaveril, Dia Mundial da Poesia, deste esperançoso ano de 2021, não posso deixar de evocar os Poetas Vivos, porque dos nossos amados vates do passado, todos os dias são de poesia e de saudade. Hoje é dia de reverente homenagem, e de suprema gratidão, para com todos os que entre nós continuam a criar pelo brilho diamantino palavra poética, o cenário idílico da vida, a fantasia do amor e a quimera da felicidade social, que os filósofos e os sábios da humanidade sonharam um dia poder realizar.
Os poetas Tito Olivio, Quina Faleiro e Ferradeira Brito
Hoje quero homenagear os poetas do Algarve, humildes e ignorados, que vivem no remanso da província, sem que as luzes da ribalta se lembrem que eles existem. São tantos que corro o risco de deixar algum para trás de forma injusta e involuntária. Por isso, a todos abraço num fraterno amplexo, dirigido a um só desses talentosos e geniais poetas, que todos respeitam e admiram. Refiro-me ao poeta Tito Olívio Henriques, cuja obra é um marco indelével na poesia portuguesa contemporânea.
Os poetas Nídia Horta, Glória Marreiros e Tito Olívio

Ser poeta é dedicar-se aos outros

O seu talento é muito diversificado, não só no campo da engenharia civil, como na engenharia hidráulica, e até na sociologia, tendo realizado obra material e produção científica, nessas áreas em que desenvolveu a sua actividade profissional. Todavia, o que mais importa realçar na sua já longa existência de quase 90 anos de idade - que completa daqui a dois dias, no próximo 23 de Março -, é a sua dedicação, graciosa e prestativa, aos mais desvalidos e carenciados, alvo preferencial do seu auxílio material e afectivo. Só para termos uma ideia da sua dedicação à sociedade farense, no âmbito do auxílio mútuo, da saúde, da cultura, do desporto, da caridade e até da política, começaremos por ordenar os cargos que exerceu como Presidente: do Sporting Club Farense, da Comissão Municipal de Arte e Arqueologia da C.M.F., da Comissão Administrativa do Sport Faro e Benfica, da Associação de Xadrez de Faro, da Comissão Distrital dos Serviços à Comunidade do Distrito Rotário 1961, e do Rotary Club de Faro (por diversas vezes). Além disso foi Mesário da Santa Casa da Misericórdia de Faro, Vereador da Câmara Municipal, Vice-presidente do Cine-Clube, Secretário da Comissão Distrital de Árbitros de Faro, da Comissão Instaladora do Conservatório Regional do Algarve, técnico responsável pelas obras de restauro do Teatro Lethes, técnico-voluntário do Refúgio Aboim Ascensão, etc. Para não enfadar o leitor, omiti mais de uma dezena de funções prestadas ao serviço da comunidade e do bem comum. Mas não posso deixar de salientar a sua dedicação à delegação de Faro da Cruz Vermelha Portuguesa, de que foi secretário-geral durante vários anos, ao Instituto D. Francisco Gomes, vulgo Casa dos Rapazes, aos Bombeiros Voluntários de Faro de que foi Presidente da Direcção, e ao Conservatório Regional do Algarve - Maria Campina, de que foi Secretário-Geral. Em nenhuma destas instituições auferiu qualquer remuneração, o que é raro acontecer nos tempos que correm.
Glória Marreiros e Tito Olívio, dois expoentes da poesia algarvia

Jornalista, escritor e editor

Na parte que mais directamente se relaciona comigo, posso dizer que o engº Tito Olívio Henriques prestou um serviço inestimável à cultura algarvia. Desde logo porque há mais de cinquenta anos que colabora na imprensa regional algarvia, com artigos em prosa de intervenção cívica. E depois, como dirigente associativo, primeiro da AIRA, da ASORGAL, e, por fim, como Presidente da Assembleia-geral da Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve (AJEA), e como subdirector do «Jornal Escrito» e da revista «Stilus», onde se deram a público importantes trabalhos sobre a história, a etnografia, a economia, a arte e a literatura algarvia. Fundou também a «Tertúlia Hélice», através da qual organizou diversos recitais de poesia em todo o Algarve.
Além da sua dedicação ao serviço social, o poeta Tito Olívio soube evidenciar o seu talento nas diversas áreas da cultura, nomeadamente na arte, participando em exposições de pintura e escultura, e na literatura, colaborando em jornais regionais, e publicando livros. Para isso, fundou a colecção «Cadernos de Santa Maria», integrada na «AJEA Edições», destinada a publicar obras de curta dimensão da autoria de diversos poetas e escritores algarvios.
Tito Olívio e Rocha Gomes, dois grandes poetas e amigos
Falar de alguém com a dimensão intelectual do poeta Tito Olívio é sempre difícil de resumir em breves palavras, razão pela qual me alonguei talvez mais do que a natural paciência do meu leitor. Peço desculpa a quem me lê, mas também ao homenageado, pela minha falta de recursos para poder enaltecer as qualidades e o supremo valor do seu talento literário.
Por isso, encerro este breve apontamento lembrando que a sua obra literária e iniciou em 1963, há quase meio século, com a edição do seu livro O Romance do Homem Solitário, uma colectânea de contos, cuja leitura nos deixa surpreendidos pela forma estilística como supera e transcende o neorrealismo, tão em voga e no agrado político da sua geração literária.
Em jeito de remate final, apresento ao poeta Tito Olívio, cuja vitalidade e genica, tem sido um dos seus mais invejáveis predicados, os meus sinceros votos de muita saúde e de felicidade para os desafios que se irão suceder às 90 primaveras que acabou de completar no passado dia 23 de Março.
Tertúlia Hélice num encontro de poetas em Ayamonte
Bem hajas, amigo Tito Olívio, por tudo o que nos destes e nos ensinastes. Brindei ao teu aniversário, e à distância de um telefonema, porque não te pude abraçar no dia em que certamente mais desejarias ter os amigos por perto. Esta maldita pandemia, e o consequente confinamento a que nos tem sujeitado, consegue-nos separar fisicamente, mas não nos consegue silenciar, e muito menos impedir de te dizer, urbi et orbi, que te admiro muito e que, em qualquer circunstância, estarei sempre ao teu lado.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Aníbal Guerreiro, empresário industrial, escritor e benemérito farense

Aníbal da Cruz Guerreiro, aos 70 anos
Empresário, escritor e jornalista, Aníbal da Cruz Guerreiro, de seu nome completo, nasceu na freguesia da Sé, concelho de Faro, em 1911, e faleceu na mesma cidade a 20-2-1990, com 78 anos de idade.
Frequentou o Liceu de Faro de 1920 a 1927, onde se fez notar pela sua vivacidade e inteligência, colaborando nos jornais estudantis e organizando torneios desportivos. No velho Liceu, que é hoje o edifício da Escola Tomás Cabreira, fez muitas amizades, algumas das quais permaneceram leais até ao fim da vida. Nesse período de juvenil fulgor acalentava a ideia de vir a ser jornalista desportivo, começando então a escrever para alguns órgãos de Lisboa sobre os desafios de futebol aqui disputados pelo Olhanense, pelo Farense e pelo Luzitano de Vila Real.
Não tendo logrado os meios de sobrevivência necessários ao melhor desempenho nos estudos secundários, decidiu pelo trabalho auferir o seu sustento, de forma livre e independente. Enveredou pela vida profissional ligada à indústria de transportes. Como era muito inteligente e perspicaz, decidiu avançar em 1932, com a ajuda doutros sócios fundadores, para a criação da Empresa de Viação Algarve, Ld.ª (E.V.A.). E como necessidade de expansão do negócio, alguns anos depois fundou a Empresa Rodoviária do Sotavento do Algarve. Ambas alcançaram enorme sucesso no sector dos transportes de passageiros e mercadorias, impondo-se entre as melhores do país. Para além disso, criou outras empresas comerciais de pequena dimensão que foi vendendo com o decorrer do tempo. De todas as que fundou ao longo da sua vida mantém-se ainda em laboração a empresa de camionagem, que é uma das maiores do país, e o famoso Hotel Eva, o mais moderno do seu tempo e o importante da cidade de Faro, sendo hoje um dos mais antigos do Algarve.
Caricatura de Francisco
Zambujal
O apelo do jornalismo amador não o largava, pelo que em 1938 fez-se comentador desportivo no semanário farense «Correio do Sul», com uma secção intitulada “Vida Desportiva” na qual dava pormenorizado destaque aos desafios de futebol que se realizavam na província. Isto é notável se tivermos em linha de conta que aquele semanário pelo seu forte pendor cultural, não dava importância ao futebol.
Uma das suas principais paixões era a música, dedicando muito do seu tempo livre à composição e à prática instrumental. Diga-se, em abono da verdade, que era talentoso, mas tinha uma vida profissional muito ocupada, além de que era muito modesto nas suas aspirações artísticas, razão pela qual, apesar de tocar vários instrumentos, nunca chegou a ser conhecido como músico. Em todo o caso, nos Jogos Florais de Tavira, realizados a 31-12-1943, obteve o 1.º prémio na modalidade de “composição musical” com um corridinho do Algarve, cujo júri era presidido pelo famoso maestro da Orquestra Sinfónica Nacional e professor do Conservatório de Lisboa, Eduardo Pavia de Magalhães, o que atesta bem da qualidade da peça vencedora.
Na década de 60, dedicou-se também ao transporte turístico pela província e já como sócio gerente da E.V.A. criou uma carreira diária entre Lisboa e Sevilha, o que sendo notável, para a época, representava também uma grande aposta na implementação do turismo.
Igualmente a Aníbal Guerreiro se ficou devendo a criação de núcleos de apoio social para os trabalhadores da empresa, nomeadamente um refeitório para o pessoal, uma biblioteca e uma Caixa Particular de Auxilio na Doença. Foi sócio fundador e primeiro presidente do Grémio Distrital dos Industriais Hoteleiros e Similares de Faro, que foi a primeira associação de classe dos hoteleiros no Algarve, que por vicissitudes políticas alterou a sua designação para Associação dos Industriais Hoteleiros e Similares do Algarve (AIHSA). Neste sector, Aníbal Guerreiro, tem o seu nome ligado à construção, em 1950, da Estalagem EVA, na vila de Ferreira do Alentejo, e ao Hotel EVA, inaugurado a 1-4-1966, em Faro, e do qual foi administrador até 1974.
Hotel Eva, junto à doca de Faro, inaugurado a 1-4-66
Em 1962 fundou a “Agência de Viagens EVA” e a “EVA rent a car”. Pertenceu como vogal ao Conselho Superior de Transportes Rodoviários, onde se manteve durante vários anos, e aos grupos de estudo e planeamento da Direcção-Geral de Turismo e da Direcção-Geral de Transportes Terrestres, formulando a regulamentação dos Circuitos Turísticos e Agências de Viagens.
Preocupado com a assistência social, desenvolveu acção de assinalável mérito à frente do Instituto D. Francisco Gomes, vulgarmente designado por «Casa dos Rapazes», a cuja direcção pertenceu durante sete anos, mas à qual ficou ligado como benemérito até ao fim da sua vida. Não podemos esquecer que foi Aníbal Guerreiro quem providenciou a obtenção dos meios financeiros que permitiram construir o seu actual magnifico edifício-sede. Para a obtenção desses fundos organizou as «Festas da Cidade de Faro», a cuja comissão promotora presidiu durante vários anos. Foram célebres essas festividades, realizadas por ocasião dos Santos Populares, no Jardim da Alameda. Aqui vinham milhares de pessoas ouvir os artistas mais famosos do país, não sendo rara a presença de Amália Rodrigues e de outros fadistas famosos, assim como de cançonetistas da nova vaga, como António Calvário, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias e o hilariante Max, cantor e entertainer madeirense, que deveria ser considerado como um dos fundadores do “stand-up” em Portugal.
O sucesso das «Festas da Cidade de Faro» não estava só na qualidade do repertório artístico, mas também na vontade popular de contribuir para uma obra de grande benemerência social, como era a “Casa dos Rapazes”, oficialmente designada por Instituto D. Francisco Gomes. O êxito era tal que praticamente aquela instituição vivia do apuramento financeiro das festividades, das quotizações dos sócios beneméritos e de algumas multas de trânsito que o chefe da P.S.P. na cidade mandava reverter a favor dos pobres rapazes. E note-se que daquelas crianças desvalidas se educaram e formaram muitas dezenas de homens válidos, honrados profissionais e não raros empresários de sucesso, que ainda hoje muito enobrecessem a cidade de Faro.
Acresce dizer que o sucesso das «Festas da Cidade» deveu-se não só ao entusiasmo de Aníbal Guerreiro, mas também à protecção e incentivo do Dr. Gordinho Moreira, então presidente da edilidade, que disponibilizava a logística camarária para garantir o conforto e segurança do público. Mas o que mais celebrizou essas festividades foi a criação das famosas Marchas Populares, que eram inspiradas nas de Lisboa, mas que em si constituíam uma manifestação artística e uma clara afirmação do bairrismo farense. Note-se que o desfile de cada marcha era escrutinado por um júri competente que escolhia a vencedora, pela criatividade artística da dança, da música e da beleza da indumentária.
Os poetas locais escreviam as letras das marchas, cabendo talvez o maior número de vitórias ao inspirado major Victor Castela, que foi um dos mais célebres poetas do seu tempo. Além disso tinha um coração de oiro, nunca dizia que não a um pedido das gentes do povo, e era um grande apaixonado pelos Santos Populares. Nessa altura, as Marchas Populares representavam não só os bairros populares da cidade como também das freguesias do concelho. Lembramos por exemplo a participação das Marchas do Alto Rodes, das Pontes de Marchil, do Montenegro e da Bordeira, que ganhou o concurso em Junho de 1962. A Taça do 1.º Prémio das Marchas era um trofeu de primeiríssima honra para os vencedores, havendo ainda hoje alguns desses trofeus nas sedes das juntas de freguesia do concelho.
Sports do Algarve, fundado por A.G.
No campo do jornalismo deveu-se a Aníbal Guerreiro a fundação, em 14-10-1935, do semanário desportivo farense, «Sports do Algarve», que ele próprio dirigiu e financiou até à extinção, em 9-5-1938. Este órgão de imprensa é hoje uma fonte privilegiada para o estudo do desporto e do futebol algarvio nos anos que precederam a II Guerra Mundial. Por outro lado, contém informação sobre desporto escolar e sobre diversas actividades da recém-criada Mocidade Portuguesa. Para além dessa fase inicial de jornalista desportivo, Aníbal Guerreiro dispersou a sua prestimosa colaboração por diversos órgãos da imprensa algarvia, nomeadamente «O Algarve», «Correio do Sul», «Algarve Desportivo» (1987), etc. Escrevia com elegância e erudição, em bom estilo literário, muito correcto e delicado, mesmo quando era preciso ser acintoso na crítica. Na maioria dos seus artigos notava-se a sua paixão algarvia, e no brilho da sua pena ressaltava a preocupação do futuro, muito particularmente no sector emergente do turismo, a que estava ligado e conhecia bem, sobretudo na necessidade de construir novas e modernas infraestruturas, nomeadamente um aeroporto em Faro – como aliás viria a ser realizado em 1965 – de se melhorar a revê viária para Lisboa e Sevilha (estradas e, caminhos de ferro), de se erigirem novos hóteis em todo o litoral algarvio, de se construir o novo porto de Faro-Olhão (o que foi feito), de se criarem escolas para a instrução das modernas técnicas de turismo, à imagem do que acontecia em França e na Suíça. A forma como abordava esses problemas e como elaborava uma estratégia para a sua solução era tão clara que parecia evidente e exequível. Porém, tudo isso esbarrava na realidade (tanto de ontem como de hoje), isto é, na condição socioeconómica do Algarve, enquanto região periférica, para a qual nenhuma razão se tornava óbvia para fazer convergir o investimento público.
Desde sempre ligado ao sector da cultura, Aníbal Guerreiro pertenceu aos corpos directivos do Conservatório Regional de Música do Algarve, e, no que toca ao fomento desportivo, foi presidente do Sporting Clube Farense, e durante vários anos presidiu à Assembleia Geral do clube. Também foi presidente da Associação de Futebol de Faro, cuja designação localista conseguiu alterar para Associação de Futebol do Algarve.
Primeira excursão turística da EVA, em 1934
Diga-se de passagem, que Aníbal Guerreiro tinha a paixão da música e tocava inclusivamente alguns instrumentos por intuição natural, pois julgo que nunca chegou verdadeiramente a receber lições de solfejo. Em todo o caso, esse amor pela música terá sido o principal motivo que o levou a encarar com tanto fervor a fundação do Conservatório Regional de Música do Algarve, cabendo-lhe a honra de ter conseguido convencer as autoridades a consentirem na sua fundação. Segundo creio foi também dele a ideia de convidar a artista Maria Campina e outros músicos, como o Diamantino Piloto, para ensinarem naquele estabelecimento.
Nos últimos anos de vida colaborava com bastante intensidade na imprensa regional, especialmente no semanário farense «O Algarve», onde manteve a secção «Crónicas Algarvias», que tiveram numerosa audiência não só pela sua elevação sociopolítica como principalmente pela sua qualidade literária. Pouco antes de falecer, publicou em Novembro de 1989 livro as suas apreciadas «Crónicas Algarvias», que saiu a público com o título Esboços de um Algarve Menor. Assisti ao lançamento do livro no Hotel Eva, recebendo da sua mão um exemplar com uma bonita dedicatória e pelo Natal, como era costume, recebia sempre em minha casa uma tarte de amêndoa, que era o seu “foro natalício”, como ele gostava de dizer, em retribuição da minha colaboração na revisão do seu primeiro livro sobre a História da Camionagem. Depois disso encontrávamo-nos pontualmente num ou dois momentos de carácter cultural, até que a notícia da sua morte me colheu de surpresa.
A Câmara Municipal de Faro, em reconhecimento dos bons serviços prestados à cidade, e como forma de gratidão pelas suas acções de benemerência pública, atribuiu-lhe as medalhas de Mérito Municipal (grau prata), em 1982, depois reconfirmada, mas no grau ouro, em 1986. Por sua vez, a Secretaria de Estado do Turismo atribui-lhe a medalha, no grau prata, de Mérito Turístico, pela sua visão precoce e inovadora em prol do desenvolvimento no sector dos transportes, do investimento hoteleiro e do turismo em geral.
Dedicatória de Aníbal Guerreiro
Como escritor e profundo conhecedor do sector do turismo e dos transportes no Algarve, publicou as seguintes obras:
História da Camionagem Algarvia (de passageiros) 1925-1975 (da origem à nacionalização), edição do autor, Faro, 1983; Turismo, Estradas e os problemas, presentes, no Algarve, ed. do autor, Faro, 1984; Esboços de um Algarve menor, edição do Instituto D. Francisco Gomes, Faro, 1989. Publicou também um opúsculo muito interessante, destinado como oferta natalícia aos amigos, intitulado Natal dos Benditos Desditosos, ed. do autor, 1985.
Para terminar, resta-me acrescentar que como elemento da Comissão de Toponímia de Faro, tive a honra de atribuir o nome de Aníbal da Cruz Guerreiro à avenida que vai desde a rotunda da Biblioteca Municipal até desembocar na estrada do Moinho da Palmeira.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

João Rico, um poeta algarvio injustamente ignorado

Venho hoje a terreiro lembrar a figura de um poeta olhanense, hoje absolutamente esquecido, diria antes, injustamente ignorado. E acreditem que foi no seu tempo um homem de talento invulgar, um espírito livre e um inconformista rebelde...
As características açoteias de Olhão, por Artur Pastor
Creio que a determinada altura da sua vida se sentiu desenraizado, desfasado, do tempo, da sociedade e da mentalidade que não o soube acolher nem compreender. Chama-se João Rico, mas foi sempre desprovido de quaisquer riquezas materiais, que aliás não procurou obter, porque a isso não lhe davam tréguas as musas, nem a ambição da posse material dos prazeres fúteis. Foi sempre prisioneiro do seu génio de poeta sonhador. 
Viveu num tempo em que o sonho não comandava a vida, e quem sonhava com outros mundos, mais perfeitos e justos do que este - em que apenas lutamos para não morrer de fome - era tido por lunático, fantasista e louco. Não admira, pois, que a ignorância do vulgo tivesse dele escarnecido e desprezasse as suas palavras, os seus pensamentos e atitudes. Tudo isso porque o João Rico, era apenas um pobre diabo, que incompreensivelmente optara por seguir caminho na margem esquerda do rio, no sentido contrário ao da vulgaridade conformista. Morreu pobre e abandonado. 
Para os que nunca souberam quem foi o poeta João Rico, aqui vos deixo, em traço largo e mal vincado, um breve esboço biográfico. 

João Rico foi um inspirado poeta e publicista algarvio, nasceu na madrugada do dia 3 de Março de 1892, no sítio de Brancanes, freguesia de Quelfes, no concelho de Olhão. Era filho de João Martins Rico, pedreiro de profissão, e de sua mulher Ana de Jesus, doméstica, ambos naturais da referida freguesia e sítio de Brancanes. Era neto paterno de Domingos Martins Rico e Maria do Rosário, e materno de João de Sousa Neto e Maria dos Santos. Foi seu padrinho de baptismo o avô paterno, também pedreiro de profissão, e madrinha Maria do Carmo, casada com António de Sousa Gago. 
Estudou no Liceu de Faro, onde se revelaria um jovem de talento e de grandes recursos intelectuais, partindo depois para a capital a fim de seguir a vida militar, chegando a atingir o posto de oficial do exército. Quando se implantou a República aderiu com entusiasmo ao novo regime, empenhando a pena e o talento na divulgação dos valores morais e dos objectivos de progresso social, cultural e económico, que o governo se propunha empreender para elevar a fasquia do desenvolvimento e do fomento industrial na pátria lusa. Tudo idílicas quimeras que sustentou com a mais sólida convicção, como se a simples mudança de regime constituísse a panaceia de todos os males, de que há séculos enfermava a nossa pobre nação. Quando tinha apenas 22 anos de idade, carreava na alma e no coração muitas desilusões e desgostos que lhe serviram de inspiração para escrever o seu primeiro livro de poesia, com o sugestivo título de Lembrança e Dores, dado à estampa em Lisboa, na tipografia «Sousa e Gonçalves», no ano de 1914. A sua estreia literária, ainda que precoce, evidenciava já o seu raro talento de inspirado e criativo poeta, que não passou desapercebido nas colunas dos jornais da época, nomeadamente no «Século» e na «Ilustração Portuguesa», que lhe publicou o retrato e teceu rasgados elogios ao livro de versos que acabava de publicar.
Após persistentes conversações políticas, levadas a cabo pelo nosso prestigiado embaixador em Londres, Manuel Teixeira Gomes, consegui-se pela persuasão diplomática convencer o velho aliado militar britânico a consentir a participação de Portugal, naquela que augurava ser a guerra de todas as guerras. O governo rejubilava de euforia, porque com a participação no conflito europeu caía de vez o perigo da contra-revolução monárquica vir um dia a contar com o apoio britânico, para a restauração do trono bragantino. 
Tal como aconteceu com milhares de outros jovens, João Rico foi incorporado no CEP - Corpo Expedicionário Português, que depois da instrução e treino de combate, realizada na planície alentejana, seguiu para França a bordo dos navios estrangeiros da chamada Tríplice Entente - a aliança militar formada pelas super-potências europeias, o Reino Unido, a França e Rússia . Pouco antes de partir, vemo-lo em 1916 ao lado do major Mateus Moreno no elenco da revista «Alma Nova», fundada em Faro em 20-9-1914, mas que dois anos depois assentava arraiais na capital, onde chegou a ter um naipe colaboradores do melhor que então campeava na imprensa portuguesa. Era na secção do «Teatro e Cinema» que João Rico assentara a sua banca de redactor, assinando os artigos de crítica teatral simplesmente com as iniciais do seu nome. Simples e modesto, era assim, na imprensa como na vida.
Descarga da pesca no porto de Olhão (Artur Pastor)
A carreira das armas, que parecia auspiciosa, tornou-se numa breve miragem, pois que dela foi afastado e destituído de todas as patentes, por razões políticas, já que se manifestara abertamente contrário à revolução do “28 de Maio”. Os promotores da ditadura militar demitiram-no logo do exército. 
Sem desesperar, aceitou depois uma via-sacra por diversas repartições públicas, às quais não se conseguia adaptar. O seu talento e espírito rebelde era contrário ao ronceirismo em que viviam os “mangas-de-alpaca”, onde lhe faltava o ar da liberdade de pensamento, onde se sentia naufragar entre os papéis oficiais e as fastidiosas burocracias. 
Para sublimar as frustrações da sua vida enfastiante dedicava-se nas horas vagas a escrever, colaborando nos jornais e mesmo publicando livros que lhe deram efémera glória e admiração social. «Melancholia», assim se designava a primeira obra que deu à estampa em 1917, apadrinhada pelo consagrado poeta Gomes Leal, para a qual escreveu um belíssimo prefácio em verso. Apropriado título para um livro de poesia que ressumava as acostumadas mágoas, a natural tristeza e abatimento muito peculiar dos nossos vates. E, na verdade, a poesia resulta, por vezes, na expiação das nossas frustrações e da nossa deprimente infelicidade. Por isso se escreve tanta poesia em Portugal. Não somos um país de poetas, mas antes um país pobre, infeliz e deprimente. 
Seguiram-se outras obras de João Rico, como «Fogo nas Cinzas», uma novela singular, com alguns capítulos em que as personagens dialogam em verso, editado em 1931. Seguiram-se outros livros de versos, como «Sonetos e Sonetilhos», editado em 1939 pelo seu próprio bolso, a exemplo dos que se seguiram, como foi o caso de «Rimanceiro», publicado em 1941, «O Enviado», designado como uma espécie de poema didáctico, saído em 1944, cujo exagerado preço de venda ao público, 50$00, era absolutamente proibitivo. É claro que o público não podia aderir a tão desproporcionado valor. Mas a intenção de João Rico era precisamente a de chamar a atenção do público para o valor da poesia, que em seu entender era a mais sublime expressão do génio humano. Por isso o seu livro deveria pagar-se caro, como forma de justificação do seu valor intrínseco. É claro que tudo não passava de uma manobra publicitária, ou como hoje se diz, de um golpe de marketing, para conferir ao poeta a projecção literária que verdadeiramente não possuía. Acrescentava ainda, na página de abertura, que o autor reservava os seus direitos autorais de tradução ou adaptação ao teatro nos seguintes termos: “Esta obra só poderá ser representada em teatro lírico ou declamativo, em qualquer adaptação, com a colaboração e autorização do Autor, em sua vida, e, bem assim, direitos de tradução”. Nunca se tinha visto nada semelhante num livro de poesia, e passo o exagero, que era muito intencional, causou um certo escândalo na opinião pública, a ousadia e presunção do autor, que não passava de um ilustre desconhecido. 
Pescador de Olhão, foto de Artur Pastor
A crítica é que não achou piada nem ao preço nem à presunção do poeta, passando ao lado do intrínseco valor do grosso volume, que ficou ignorado e adormecido no longo sono em que ainda permanece. O desgosto do poeta foi inexorável. Desiludido pela incompreensão do público e da crítica, sentindo-se ridicularizado pelos seus altos padrões de exigência, desistiu de escrever e refugiou-se numa letargia degradante e humilhante para um talento que parecia bafejado para mais altos e largos voos. Mergulhou, pois, numa deprimente agonia, marcada por uma desgastante e aviltante miséria, dedicando-se à boémia e ao álcool que lhe minaram as frágeis carnes de antigo soldado enamorado pelas musas, que cobardemente o abandonaram num dos mais difíceis transes da sua malograda existência. 
O seu último livro, intitulado «Astrologia», publicado em 1947, foi uma espécie de canto do cisne, de um dos muitos poetas que o nosso país rejeitou pelo simples facto de não beneficiado da protecção dos críticos literários, submissos e estipendiados por ideologia e partidos, quando não por veladas maçonarias que incensam e glorificam os soezes eleitos do patrocinato político. 
João Rico viria a falecer na freguesia do Campo Grande, concelho de Lisboa, a 26 de Dezembro de 1951, com 59 anos de idade.