quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Valioso espólio do Museu Antonino de Faro é grande atracção turística no Algarve


José Carlos Vilhena Mesquita

No contexto museológico da cidade de Faro assume particular interesse aquele que, reunindo características intrinsecamente populares, ficou perfeitamente dedicado a um dos mais antigos padroeiros desta cidade: Santo António.
Criado por decisão camarária em 23 de Junho de 1932, pelo então presidente da edilidade farense, Dr. Mário Lyster Franco, só veio a reunir grande parte do seu actual espólio no ano seguinte, para em; 4 de Fevereiro de 1934 ser oficialmente inaugurado pelo Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar. A 27 de Outubro do mesmo ano foi nomeado para seu conservador o Dr. Justino de Bivar Weinholtz, igualmente director do Museu Arqueológico e Lapidar, que nesta cidade deixou bem vincada presença cultural, a ele se devendo inclusivamente vários actos de benemerência que ainda hoje, enriquecem os nossos museus. À sua morte sucedeu-lhe o seu fundador, Dr. Mário Lyster Franco, que em 1966 foi substituído pelo então director dos museus municipais, prof. José António Pinheiro e Rosa, grande estudioso e investigador de reconhecidos méritos com vastíssima obra publicada.

Igreja de Santo António do Alto

A fundação deste museu constituiu uma forma de preencher um espaço que em tempos se dizia que era aproveitado para actos e procedimentos indecorosos. Em face disso, e atendendo a que as dependências anexas ao secular templo de Santo António do Alto reuniam as condições minimamente indispensáveis à instalação de um museu popular, lançou o seu já citado fundador uma campanha de angariação de peças que de algum modo estivessem ligadas ao culto daquele taumaturgo.
Nessa altura, aproveitou-se a oportunidade para mobilar toda a igreja que se encontrava praticamente ao abandono e apenas possuía as cadeirinhas de tabua que os devotos para lá levaram quando iam assistir aos velórios e outras cerimónias religiosas. Também se colocaram no seu lugar próprio três interessantes lápides que o cónego Pereira Botto, na ânsia de formar um museu arqueológico, de lá extraíra, esquecendo-se de que só devem ser retiradas dos seus lugares originais as peças que correm risco de desaparecer, o que não era o caso.
Igualmente se abriu na parte antiga da torre (curioso edifício gótico que marca nitidamente a sua origem) uma janela que permitiu apreciar-se devidamente o magnífico artesanato que apresenta. O pátio de entrada foi logicamente alindado, com um poço mais ou menos artificial, e colocaram-se nas paredes da Igreja alguns quadros de menor valia que se encontravam depositados no Museu Arqueológico, o que permitiu dar àquelas instalações uma disposição e um ambiente mais museológico. A igreja de Santo António do Alto ficou, desta forma, muito valorizada, e se a então inesperada construção do novo edifício do liceu e a infeliz ideia do aproveitamento da torre para depósito de água não tivessem tirado a graça, a posição e a beleza própria que o templo ostentava, estamos certos de que este singular museu se transformaria num dos mais curiosos pólos de atracção turística da cidade de Faro. Refira-se que o aproveitamento da torre para depósito de água obrigou a elevá-la mais uns metros retirando-lhe por isso todas as proporções.
Convém, ainda, acrescentar que o referido templo erigido na mais alta colina da cidade foi em tempos uma primitiva torre de vigia da costa (as conhecidas, mas mal estudadas, atalaias), que para contrariarem as constantes investidas dos corsários árabes davam o sinal de rebate chamando as populações a defenderem os seus haveres. Igualmente ali se verificaram sangrentas lutas, durante a guerra civil de 1832-1834, pela posse do mais estratégico ponto militar da cidade, facto esse que há anos facilmente constatável pelos buracos das balas incrustadas nas paredes do edifício, mas que, infelizmente, são hoje irreconhecíveis devido aos trabalhos de reboco e restauro mandados executar há já alguns anos pelos responsáveis camarários.

Soberba panorâmica

Do alto da torre desfruta-se a mais soberba panorâmica da capital algarvia, sendo daí facilmente reconhecíveis os recortes da linha costeira e da Ria Formosa, assim como a distribuição orográfica da região, que se reparte pela serra – a necessitar urgentemente de ser arborizada – pelas terras algo fragosas do barrocal e pela faixa litoral, plana e fértil mas pejada de construções desenquadradas e agressivas no contexto ecológico em que se inserem.
Pelo esplendor do panorama que dali se desfruta, tem sido este local o mais visitado de toda a cidade, facto que quase obriga o turista a penetrar igualmente nas instalações singelas do interessantíssimo Museu Antonino, afecto ao templo e incorporado nas dependências de um antigo claustro. Muitos têm sido os seus visitantes, oscilando a média anual do último quinquénio entre os 15 e 20 mil, o que dá bem a ideia do seu interesse turístico.
Entre os mais ilustres que por ali passaram permitam-me que destaque, para além do ex-Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, dos bispos e arcebispos de Évora, Beja, Coimbra, Algarve e outros, dos deputados; e figuras políticas dos tempos de ontem e de hoje, os mundialmente conhecidos artistas de cinema Marlon Brando e Catherine Deneuve que, aproveitando um curto período de férias, vieram até ao Algarve e juntos visitaram o Museu Antonino, dedicando-lhe palavras de muito apreço e admiração. A fama da sua passagem depressa se fez constar e hoje raros são os jovens fãs do cinema que não pedem à zelosa guarda do museu, sr.ª D.ª Maria Celeste Iria, que lhes mostre os autógrafos daqueles conhecidos actores cinematográficos.

Valioso espólio

De entre as cerca de quatrocentas peças que compõem aquele espólio museológico, merecem especial realce um quadro de Santo António, que se encontrava no antigo Convento de Santo António dos Capuchos desta cidade, onde em tempos esteve instalado o Museu Arqueológico, verificavelmente inspirado (para não dizer cópia fiel) do fresco de Giotto, que se admira na Basílica de Pádua; um Missale Romanum - Ex Decreto Sacrosancti… editado em Antuérpia pela tipografia Plantiniana, no ano de 1725, que curiosamente apresenta as armas dos Bulhões de Coimbra, a cuja família pertencia Santo António, o qual esteve durante largos anos ao serviço litúrgico da Sé de Faro; um azulejo com moldura gótica, imitando um vitral, assinado por Maria Portugal, pseudónimo da principal assistente do conhecido escultor Leopoldo Batistini, autor das magníficas placas azulejadas que assinalam a toponímia histórico-urbana da baixa citadina de Faro; uma madona pintada sobre cobre e um quadro do santo, oferecido pelo conhecido escritor e diplomata Dr. Amadeu Ferreira d’Almeida, que à sua terra natal legou uma das mais ricas e interessantes colecções de arte do seu tempo, a qual preenche hoje uma das mais importantes salas do Museu Arqueológico e Lapidar Infante D. Henrique em Faro; uma escultura do santo em madeira do século XVII, outra em cerâmica com 1,11 m de altura, proveniente da escola coroclasta de Bordalo Pinheiro; várias estatuetas em madeira, cerâmica e metal de fábrica nitidamente popular; dezenas de azulejos e pratos, tendo gravadas ingénuas quadras galhofeiras alusivas ao santo; um aquário de cerâmica representando o taumaturgo a pregar aos peixes, o qual foi adquirido por uma das antigas comissões municipais de turismo nas Caldas da Rainha; centenas de pequenas estampas (que o vulgo designa por“santinhos”), folhetos, opúsculos e livros, alguns deles bastante raros; uma colecção de fotografias emolduradas que se estendem pelas paredes do museu, focando aspectos totais ou parciais de outros templos algarvios ligados ao culto de Santo António, algumas das quais constituem verdadeiros documentos por representarem aspectos de um património histórico já desaparecido; dezenas de medalhas de todos os tamanhos e matérias; uma colecção incompleta do Almanaque de Santo António; revistas, folhas volantes, uma peça de teatro manuscrita em espanhol, bilhetes de lotaria, loiças, vidros e um sem número de peças dispersas de valor muito desigual, mas todas dizendo respeito ao culto do milagroso Santo António.

Recomendações e melhoramentos

Como não podia deixar de ser, verificam-se algumas falhas estruturais que urge colmatar e para as quais gostaria de chamar a atenção das entidades camarárias responsáveis.
1.º - Não existe um catálogo, ou inventário do recheio artístico do Museu, que possibilite aos visitantes encarar e compreender pelo menos as peças consideradas do ponto de vista artístico-museológico mais importantes. Recomenda-se que para a elaboração do mesmo se convidem especialistas e se faça uma edição trilingue do respectivo texto, dado que a maioria dos visitantes são estrangeiros.
2.º - Que se coloquem nos locais apropriados alguns projectores de luz por forma a iluminarem-se as peças mais interessantes.
3.º - Que se reboquem as paredes da sala e se eliminem os repassos de humidade que em certos casos tem desprendido alguns quadros e constituem um sério risco para a oclusão de um curto-circuito, causa próxima de tantos incêndios em instituições do género:
4.º - Que se envernizem as travessas do tecto que atestam a secularidade do edifício, mas que por se encontrarem mal tratadas acabam por dar um reflexo de desleixo e de ruína.
5.º- Que se caiem as paredes internas e externas do edifício, sem esquecer de pintar periodicamente os ladrilhos que revestem o pavimento do Museu.
6.º - Que se repare a porta que dá acesso ao pátio fronteiro ao Museu que, pelo facto de não ficar devidamente encerrada, poderá dar azo a possíveis tentativas de assalto.
7.º - Que se volte a repor, no lugar próprio, a quase lendária fechadura do claustro lateral, em cujo buraco procuravam as jovens casadoiras de olhos vendados introduzir o dedo indicador, transformando este acto numa tradição pouco vulgar e de incontestável interesse etnográfico.
8.º - Que se instalem resguardos de rede nas janelas do Museu de forma a permitir a entrada de ar, luz e calor natural no seu interior.
9.º - Que se proceda, urgentemente, à reparação da escada metálica em caracol, que dá acesso ao mirante, e que, pelo seu estado carcomido, poderá ser motivo de graves desastres pessoais.
10.º - Que se equipe o edifício com extintores e outros meios de combate a um possível incêndio.
11.º - Que se inclua e aconselhe a sua visita nos roteiros turísticos da cidade e do Algarve.

(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias», de 1-02-1984)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A tortura da alma na efervescência dos neurónios


José Carlos Vilhena Mesquita

A poesia é um manancial de sensações que se agitam em torno das palavras como ebulições do pensamento. É a efervescência dos neurónios nas etéreas cogitações da alma, causando a agitação das ideias e removendo as concepções estáticas da sociedade civil. Neste caso são revolucionárias, premunitórias e demolidoras. Anunciam a aurora regeneradora de novas eras. Porém, outras estremecem credos e apologias, remexem no íntimo da crença e da fé, esboroam dogmas em refulgentes concepções filosóficas. São agnósticas umas, cépticas outras, descrentes todas, quando concebem a criatura sem ver o criador. Mas, por mais ideológicas e sublimes, ou por mais profundas, ascépticas e enigmáticas que sejam as proposições de um poema de Antero ou de Junqueiro, não restam dúvidas que é na poesia que tudo se transmite e se transforma.
O génio sente-se no acto da criação. A expressão é que difere. A luz e a cor são do pintor, a forma do escultor, a palavra do escritor. Mas a emoção é do poeta. No jogo das sensações, no choque das impressões, nasce a poesia, pura, nua e crua. Um místico mundo de fantasia e realidade desfila pela escadaria do poema. São as metáforas que desaguam no remate de um soneto. A nostalgia da saudade, as comoções do amor, as vicissitudes da alma invadem o poema como uma enxurrada de sentimentos. Isso é poesia. E só o poeta sabe verdadeiramente sentir a poesia. Mesmo quando finge sentir na alma a tortura do imaterializável, o poeta consegue transluzir em diamantinas metáforas a sincera nostalgia de um ideal por construir.
José Estevão Cruz, prosador das efémeras colunas dos hebdomadários algarvios, estreia-se neste livro como poeta. Não sei se algum dia permitirá que o tratem desse modo. Em todo o caso, vê-se que a sua poesia é sentida, sincera e imarcescível. Ainda que retocada nas imagens e rebuscada nos conceitos, não deixa de ser expressiva, raiando, aqui e ali, elevados níveis de pureza lírica.
Parece não existir neste livro um tema principal, nem seria crível que tal acontecesse numa obra poética. Porém sente-se que, no âmago dos seus versos, é a denúncia da opressão e a pusilânime teia dos interesses económicos internacionais, que constituem o tema global desta obra. E se para o comum dos poetas é a Liberdade, na sua concepção mais sublime, o ideal preferido do canto lírico, o José Estevão Cruz vai mais além e elege-a como luta universal da humanidade.
Por isso, os seus versos são um veemente apelo à consciencialização dos oprimidos, clamando contra a iniquidade do poder político que procura entear as classes laboriosas numa inebriante estrutura de dependências socioeconómicas. A letárgica “paz podre” em que vivemos hoje conduz-nos ao insensível alheamento dos que sofrem. E a indiferença parece ser indício do desenvolvimento. O resultado é a distribuição desigual, a marginalidade, o racismo, a violência e a droga. Até parece que no código genético das novas gerações vêem já gravados os defeitos da sociedade moderna: poder, corrupção, vício e perfídia. E estes são os pontos cardeais da educação que na estultícia do nosso egoísmo transmitimos aos vindouros, em nome do sucesso e da competência. A vida é uma competição de tecnologias e cifrões que tudo submete e esmaga à impiedosa lógica da produtividade.
O José Cruz deixa perceber nos seus versos que os direitos individuais, a liberdade e a democracia são mais uma aparência do que uma realidade. E o homem na sua multiplicidade de anseios e frustrações, deixou de ter significado. O cidadão na sua dignidade e honra, é quase uma expressão de retórica. Dá impressão que somos escravos dum sistema sem rosto nem pátria, a que alguns designam por progresso e no qual somos reduzidos à mais abjecta insignificância. Mas se, por um lado, uma cadeia de interesses económicos parece conduzir o mundo, por outro assiste-se à destruição do ambiente, à ameaça termonuclear e aos conflitos internacionais pela posse das fontes energéticas.
Esta é a realidade do autor, que sente a poesia como uma forma de comunicação intelectualizada, dirigida a uma parcela da sociedade civil supostamente preparada para o entender. Este livro é uma espécie de tribuna pública e como tal um risco calculado, visto que o autor nele se expõe à crítica e à imprevisível discordância dos que vêem o mundo por um prisma diferente. Não obstante, acredito que a mensagem que o autor pretende fazer passar é correcta e preocupante, merecedora da nossa melhor atenção.
A poesia é a vida. Por isso a poesia simplesmente acontece, sem peias nem destinos predeterminados. O seu modelo é o homem, nos seus anseios, frustrações e sentimentos. Na verdade, a poesia só não acontece quando não há amor, razão e solidariedade. Em suma, a poesia não é mais do que a associação da inteligência com o sentimento. A vida é o pensamento. Na conjugação primordial desse binómio, na sua expressão mais sublime, reside a poesia como paradigma da humanidade. E a efervescência dos neurónios, que nos torturam a alma em constantes interrogações, é apenas poesia.

(Prefácio ao livro Neurónios Flutuantes, da autoria de José Estêvão Cruz)