quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

As cédulas fiduciárias, e o dinheiro municipal

No início da I Guerra Mundial, decorrida entre 1914 e 1918, assistiu-se em toda a Europa a uma forte valorização dos metais, utilizados na indústria bélica. Quando, em 1916, Portugal entrou no conflito, notou-se uma grave escassez de moeda circulante, que se agravou até meados da década de vinte. As moedas de prata e bronze foram logo resgatadas pelo Estado, cujas finanças entraram em insolvência. As de cobre, ferro e cuproníquel, ainda em circulação, foram desviadas para a indústria e fabrico de armas, a ponto de deixarem de existir meios de troca.
Em reflexo da guerra desencadeou-se um surto inflacionário devastador, descaradamente visível nos géneros de primeira necessidade, e sobretudo no aumento do preço dos metais. Por isso, emitir moeda ficava não só muito caro, como era de todo inviável.
Face às circunstâncias, o governo recorreu a uma estratégia que havia sido aplicada em 1891, numa crise financeira muito semelhante – isto é, à emissão pela Casa da Moeda de pequenos bilhetes popularmente designados por “dinheiro de trocos”. Esses exemplares, impressos em papel comum ou em cartolina fina, uns muito simples, apenas com a indicação do local e do valor; outros mais elaborados, por vezes com requintes estéticos – divulgando os heróis locais ou as suas belezas turísticas, num requinte de indisfarçável nacionalismo – ficaram conhecidos até hoje como “cédulas fiduciárias”. Este fenómeno, da escassez de metais amoedáveis foi transversal a toda a Europa. E tal como no nosso país emitiram-se cédulas para facilitar as transacções de baixo valor no pequeno comércio, ficando conhecidas como “monnaies de necessite” em França, “emergency Money”, no Reino Unido, e “notgeld” nas nações do trato germânico.
Para obstar à escassez de moeda, o governo autorizou a Casa da Moeda, alguns bancos regionais, as Misericórdias, as Associações Comerciais, e sobretudo as autarquias (Câmaras e Juntas de Freguesia) a emitirem senhas ou cédulas ou papéis de trocos, abrindo-se uma espécie de cascata nacional que jorrou espécimes monetários no valor de 1 até 20 centavos. Este fluxo fiduciário iniciou-se em 1917 e prolongou-se até 1924-25.
O governo mandou a Casa da Moeda emitir cédulas de 2 e 10 centavos, autorizando a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a imprimir cédulas de 5 centavos. Estava aberta a catadupa. No ano seguinte, autorizou 178 municípios a imprimirem cédulas, até ao valor máximo de 10 centavos, sendo apenas válidas no concelho emissor. Em todo o país só podiam circular as cédulas emitidas pela Casa do Moeda.
Em 1924, o Ministro das Finanças, Dr. Álvaro de Castro, proibiu a circulação nacional e regional das cédulas fiduciárias, optando por uma política de rigor orçamental, através de um forte aumento de impostos e da diminuição da despesa pública, com vista a travar a descida do escudo. A exploração mineira colonial e a arrecadação dos metais preciosos depositados nos museus e noutros organismos do Estado permitiram voltar à amoedação dos cunhos nacionais e à revalorização do escudo.
O que ficou dessa grave crise económica foi o testemunho material da escassez de moeda, através das cédulas fiduciárias que se imprimiram um pouco por todo o país, algumas delas de rara beleza estética, a imitarem as notas de banco, mas também a divulgarem os padrões culturais dos concelhos em que foram emitidas.
Aqui ficam, como ilustração, algumas cédulas emitidas nos concelhos algarvios, assim como uma da minha terra, Vila Nova de Famalicão, algumas do Hospital dos Arcos de Valdevez, outras da própria Casa da Moeda, e dois exemplares emitidos na Áustria. O coleccionismo destes espécimes monetários em papel, tem sido alvo de atenção dos mercados da especialidade, nomeadamente dos bancos portugueses, sendo disso exemplo a colecção do Dr. António Cupertino de Miranda, que constitui uma parte do seu valioso Museu do Papel Moeda.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A vila de Monchique nasceu em 1573 ou em 16 de Janeiro de 1773?

Gravura das Caldas de Monchique, pintada em 1812
pelo artista britânico George Landmann
O padre Dr. Francisco Xavier Ataíde Oliveira, publicou no jornal «Província do Algarve», que se editava em Tavira, no rodapé da primeira página, sob a epígrafe «Folhetim», nos nºs 241 a 268, de 29 de junho de 1913 até 18 de janeiro de 1914, o texto integral da «Relação da jornada de El-Rei D. Sebastião, quando partiu da cidade de Évora», da autoria do cronista João Cascão. Trata-se do manuscrito que se encontrava nos “Reservados da Livraria” da Torre do Tombo, sob o n.º 1104, junto do qual encontrei também vários outros manuscritos, de carácter histórico geográfico, com preciosas alusões ao Algarve.
Foto dos princípios do século XX, colorida à mão.
Vê-se a serra ainda muito escalavrada.

Esta "Relação da Jornada de D. Sebastião» ao Algarve", realizada em 1573, foi primeiramente publicada na «Revista de Sciencias Militares», vol.2, de 1886, e quase um século depois, em 1984, editada em livro, com um valioso estudo introdutório do Prof. Sales Loureiro, de quem tive a honra de ser aluno e amigo pessoal.
Mas, tudo isto vinha a propósito de uma breve alusão à aldeia de Monchique, contida na «Relação» de João Cascão, a propósito da visita do Rei D. Sebastião ao Algarve, quando se encontrava hospedado em Vila Nova de Portimão. Diz o cronista a dado passo:
«Na 2ª feira 26 de janeiro [de 1573] partio El-Rei de Vila Nova [de Portimão] ás 4 horas depois da meia noite para Monchique, e são 5 légoas de caminho… Foi acompanhado sómente dos Fidalgos da guarda; no caminho vio os banhos em que muitos doentes achão remedio ás suas enfermidades. Da Villa vierão esperar huma bandeira de soldados, e alguma gente de cavalo. Ouvio missa na Igreja matriz. Depois de jantar sobio á serra a qual he em extremo alta, e em cima muito chãm e se vê della huma grande parte da terra e a Torre de Beja muy clara; andou El-Rei hum pedaço vendo-a e onde chamam Loja se deceo e esteve bebendo em huma fonte; partio para Villa Nova [de Portimão], onde chegou já de noite, e por todas as janelas avia luminárias que pareciam em extremo bem. Em cima dos muros havia barris de alcatrão acezos, e afortaleza, entrando El-Rei, fez sua salva de artilharia.»
Até aqui tudo bem. Trata-se de uma descrição da viagem, assaz curiosa, porque se percebe que D. Sebastião visitou as termas ou Caldas, ouviu missa na Matriz e subiu à Fóia, onde pôde apreciar a deslumbrante paisagem virada à costa algarvia, mas também o horizonte para nordeste, onde lobrigou a torre da cidade de Beja. A verdade é que o jovem monarca ficou tão encantado com a frescura do clima e as semelhanças ambientais de Monchique com a nobre vila de Sintra, que, segundo revela o cronista, não teve pejo em elevá-la à categoria de Vila, o que deixou enfurecida a vereação de Silves, então a mais antiga cidade do Algarve, que assim se via desapossada de avultados rendimentos e de uma importante fatia do seu território administrativo.
O episódio ficou extratado pela mão de João Cascão nos seguintes termos:
«Monchique he lugar muito fresco, tanto que dizem que pode competir com Cintra; era aldeia de Silves, porque El-Rei fez agora Villa a nomeio. A camara de Silves tomou muito a mala nomeação em Villa e vierão contra isso dar suas rasões a El-Rei, que os mandou receber pelo ouvidor da Corte.»
Foto de 1913, publicada na revista Ilustração Portuguesa
relativa a uma visita de Jornalistas ingleses a Monchique.
Não sabemos ao certo qual o desfecho final deste episódio, mas não é difícil de perceber que no regresso da jornada o Rei tenha arrefecido o deslumbramento dos prazeres da viagem, e se deixasse convencer pelo Ouvidor, que terá esclarecido o monarca sobre os prejuízos de Silves, e certamente sobre a falta de meios dos monchiquenses para sustentarem a Câmara, para a qual talvez lhe escasseassem os povoadores, os rendimentos e até os “homens-bons ou ricos-homens” para uma governação a preceito. O jovem rei D. Sebastião foi magnânimo em diversas ocasiões desta visita ao Algarve, dentre os quais é subido exemplo a elevação de Monchique à condição de Vila. Todavia, não foi capaz de cumprir e manter a palavra, nem o seu desígnio, certamente por falta de meios práticos que viabilizassem um acto de justiça, que viria a ser realizado dois séculos depois, a 16 de janeiro de 1773, por vontade do Marquês de Pombal, e beneplácito do rei D. José I.

sábado, 14 de janeiro de 2023

António Augusto Santos, jornalista, poeta, dramaturgo e... sportinguista

Funcionário dos Caminhos-de-ferro e jornalista, nasceu na vila do Barreiro, a 2-4-1906, e faleceu em Faro, a 2-3-1987, com 81 anos de idade.
Estudou na sua terra-natal, não indo além da instrução primária, embora quem o conheceu, como foi o meu caso, sabe que era um homem bastante culto e muito inteligente, que escrevia primorosamente. Além dessas qualidades intelectuais, era também uma pessoa muito generosa, de bom coração, muito humilde e desprovida de quaisquer vaidades.
Como jornalista distinguiu-se ainda jovem ao fundar e dirigir o «Jornal do Barreiro», um órgão de largas e respeitáveis tradições, em cujas colunas colaboraram distintas figuras da intelectualidade nacional, nomeadamente Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Fernando Namora, Arlindo Vicente, Manuel Cabanas, etc. 
No seguimento do seu múnus profissional desempenhou também as funções de chefe de redacção de «O Ferroviário» órgão sindical daquele notável grupo laboral, com larga expansão e cobertura nacional. 
Por razões de ordem profissional, veio residir para Faro na década de quarenta. E aqui se manteve até ao fim da vida, isto é, durante mais de quatro décadas. Nessa altura, viviam-se os difíceis anos da II Guerra Mundial, e o Augusto Santos começou logo a dar nas vistas, não pelas suas indisfarçáveis qualidades intelectuais, como também pela sua generosidade ao ajudar os seus camaradas mais desafortunados, alguns deles perseguidos por razões políticas, a sobreviverem perante a carestia de vida. As suas preocupações sociais fizeram atrair sobre si a sanha da desconfiança e a passar também um mau bocado. 
Pouco depois de fixar residência, começou a colaborar em quase toda a imprensa algarvia, escrevendo também para os jornais diários e assumindo durante mais de trinta anos a incumbência de ser correspondente em Faro do «Jornal de Notícias» do Porto, de «A Bola», do «Norte Desportivo» e de outros órgãos desportivos. Aliás, o António Augusto Santos ficou conhecido no Algarve como um dos mais experientes e conceituados jornalistas desportivos da região, sendo inclusivamente o seu nome referenciado como uma autoridade nacional, sobretudo na exegese futebolística. Por isso é que o governo o agraciou, julgo que em 1986, com a «Medalha de Mérito Desportivo», exemplo esse que serviu de mote às Câmaras Municipais de Faro e do Barreiro. 
Dirigiu e editou várias publicações comemorativas, nomeadamente o «Anuário Comercial e Industrial de Faro», que teve várias edições, assim como a «Agenda Comercial e Industrial de Faro» (1968), etc. 
Para além de jornalista, foi também um inspirado poeta e um dramaturgo de grande qualidade artística, que passou ao lado de uma notável carreira nas pátrias letras, pois que possuía qualidades para singrar e tornar-se justamente famoso, mercê da grande qualidade evidenciada pela sua obra. 
Dispersou a sua prestimosa colaboração por diversos órgãos da imprensa algarvia, nomeadamente por «O Algarve» de Faro, «Correio do Sul», «Folha do Domingo», «Correio Olhanense», «Povo Algarvio», «Comércio de Portimão», «O Sporting Olhanense», «O Sporting Farense», etc. No semanário farense «O Algarve» publicou, em Março de 1976, um “Pequeno Dicionário Humorístico do Futebol Português” que ainda se lê com proveito de boa disposição. Este órgão farense promoveu-lhe na década de oitenta uma homenagem pública, realizada no salão nobre da Assembleia Distrital de Faro, a qual foi presidida pelo seu amigo, conterrâneo e notável jornalista Manuel Figueira, então a desempenhar as funções de Director-Geral da Comunicação Social, cerimónia a que tive a honra de assistir. Nessa altura, António Augusto Santos foi considerado o decano dos jornalistas da imprensa regional algarvia.
Como escritor julgo que apenas deu à estampa uma pequena peça de teatro, na qual retrata a paixão futebolística sentida por um adepto sportinguista, face ao derby lisboeta disputado numa final da Taça de Portugal, intitulada «Benfica-Sporting – Farsa em um Acto», Faro, Tipografia União, 1958. 
Acresce dizer que António Augusto Santos foi membro fundador da AIRA - Associação da Imprensa Regionalista Algarvia, a cujos corpos sociais julgo que chegou a pertencer, ao lado de Antero Nobre, Joaquim Magalhães, Herculano Valente, Ofir Chagas, João Leal, Reis d’Andrade, e outros. 
Era casado com D. Maria José Santos e foi pai de quatro rapazes, todos cidadãos de primeira grandeza, alguns dos quais se distinguiram, tal como o pai, na imprensa e nas letras em geral. O seu filho mais novo, Dr. Luís Filipe Rosa Santos. notabilizou-se como professor e investigador da história local, além de ser também considerado com um artista plástico de enorme talento. 
Para terminar gostaria de deixar aqui estampado um dos seus muitos e belos poemas, que nunca chegaram a ser compilados em livro, tal como aconteceu com as suas peças de teatro que receio venham a cair num irremediável esquecimento. Este poema tem a particularidade de ser inspirado e dedicado aos seus dois filhos mais novos, sendo por isso intitulado “Dois Irmãos”: 

Eu tenho sobre a estante uma miniatura
Do Mundo – pequenina esfera colorida –
Talvez porque vê nele um mundo de ventura,
Meu filho a veio pedir com voz enternecida

Não porque as suas mãos, pequenas como são,
Pretendam sufocar o «mundo» pequenino,
Mas porque tem do globo uma abstracta noção
E o vê simples brinquedo, afeito a um menino.

Dei-lho. E quando o irmão, sem ter com que brincar,
Surgindo o viu do «Mundo» um senhor poderoso,
Sentou-se junto dele adoçando o olhar
Nesse império-brinquedo, humilde e pesaroso.

Estranhando o pesar do seu melhor amigo,
O mais novinho, então, num terno olhar jucundo,
Disse: - Aqui tens, para brincar comigo!
E estendeu-lhe a mão com metade do «Mundo».

Ao seu gesto inocente achei tanta bondade,
Que pensei noutra esfera, a fim de o premiar;
Merecia até mais tal generosidade
Digno de bons irmãos. Mas, fiquei-me a pensar:

Forçoso é desistir. Se há muito lhes mostrei
Que o «Mundo» se reparte, assalta-me um receio.
Que dor, que mágoa atroz sentiria nem sei,
Se um deles, amanhã quisesse mundo e meio...