terça-feira, 26 de outubro de 2010

Florbela Espanca no Algarve (parte II)

José Carlos Vilhena Mesquita Como já se disse, a permanência de Florbela Espanca em Quelfes não foi relevante e julgo que se desenrolou ao longo de apenas seis meses, de marasmo, sossego, solidão literária e exílio, pouco conformes ao seu natural estado de espírito. Amiúde vinha a Faro visitar o cunhado Manuel e consultar o seu médico assistente, então conhecido pelo «Doutor Índio», visto se tratar de um canarim natural de Goa, que gozava de grande fama em toda a província, especialmente no campo das doenças pulmonares, que rigorosamente lhe impunha um tratamento de repouso absoluto. Escusado será dizer que Florbela detestava ir a Faro, só porque o médico a submetia a minuciosos exames. Como, aliás, detestava Olhão por não suportar o cheiro fétido e pestilento que ressumava da Ria. Apesar disso, gostava do seu alvo casario e, especialmente, adorava ver o pôr-do-sol que, afirmava já mais ter visto espectáculo tão belo. Curiosamente, estranhava o facto de no Algarve o Sol nascer sobre o mar e pôr-se no mesmo mar sobre o qual se elevara. Tratava-se de um acontecimento raro, esquisito e que contado aos seus amigos alentejanos passaria, naturalmente, por uma ingénua balela. No entanto, existem sonetos que recordam esses momentos inesquecíveis, marchetados pela natural beleza de um sol inebriante, que empresta a este céu aquele azul extasiante que só os poetas sabem cantar, reflectido nesse mar imenso que atraiu os argonautas lusitanos para revelarem ao mundo novos mundos nunca antes navegados. Convém notar que apesar de Florbela Espanca não aceitar de ânimo leve as imposições do «Dr. Índio», o certo e que ele era a única pessoa que a compreendia, que com ela discutia os problemas da psique, confessando frustrações mútuas, discutindo literatura e revelando-se, tal como ela, um grande cultor da poesia de Verlaine. Antero de Quental. António Nobre, etc... Também o conceituado médico era um infeliz que cedo perdera a esposa, igualmente vitimada por um aborto mal curado. Quão parecidos eram seus fados! «O médico vem a casa regularmente, receita, aconselha, demora-se com certeza junto dessa doente que fala de António Nobre e de Verlaine. (...) O médico é o seu único amigo, no plano de compensação do seu processo psíquico. Ele dá nomes transfigurados e tranquilizantes da natureza dos seus males. Com ele pode falar à vontade, caracterizar a doença quando a descreve ao nível clínico. Os segredos não são precisos, porque essa história clínica e uma libertação para eles, sem lhes impor uma culpa».[1] Florbela, desesperada de nada fazer, passando os dias deitada, comendo, escrevendo, meditando, sem nunca se levantar da cama. Recomendação que o médico lhe exigira cumprimento e que ela estritamente se via compelida a executar. No entanto, apesar dessas visitas que o seu médico assistente fazia ao «ermitério de Quelfes», e não obstante o contacto que mantinha com o exterior através das cartas dirigidas ao pai, à futura madrasta, ao irmão e aos amigos, o certo é que a sua situação psíquica ultrapassava já o estado da saturação, agravando-se progressivamente aquela fatídica neurose que a arrastará para a morte nas vésperas da publicação do seu livro mais querido: Charneca em Flor. Estou tão triste e aborrecida! Tenho ódio ao Algarve. Será exactamente esse ódio, essa inconstância, essa inatingível procura da felicidade, que irá determinar a sua separação e consequentemente o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, nessa altura (1921) um considerado funcionário bancário de Vila. Nova de Portimão. Terminado o tratamento que confirmara o depauperamento físico suscitado por um aborto, invalidando assim a hipótese de doença pulmonar, Florbela escuda-se com os seus compromissos académicos e parte sozinha para Lisboa, onde conclui, com aproveitamento, o primeiro ano do curso de Direito. Matricula-se nas cadeiras do ano seguinte e regressa a Évora onde se reunirá aos seus familiares, trazendo já na ideia a publicação do seu primeiro livro. E assim, no ano seguinte, dá a público O Livro de Magoas cujo título anuncia já o seu temperamento, o espírito magoado de uma mulher que sofre de uma pluralidade interior: «De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...! De ter vivido e não ter sido Eu». O espectro da fama, a ansiedade de ser conhecida, admirada, respeitada, o desejo de poder impressionar com o seu talento os amigos e os desconhecidos, de acelerar a inveja dos seus inimigos, são tudo sintomas de uma estreante autora que sonha com as palavras do pai: «Serás uma Espanca que há-de ficar». Desinteressada pelo passado, move uma acção de divórcio contra o seu marido, fundamentando-se no abandono de que havia sido vítima durante três anos. Servindo-se do testemunho de um farmacêutico amigo e de um oficial de diligências do próprio tribunal, consegue que na cidade de Évora, a 30 de Abril de 1921, fosse notificado o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, pacatamente fixado na piscatória vila de Portimão, regaladamente livre dessa mulher, dessa diva que ele mimoseou com todo o sacrifício que as suas parcas possibilidades lhe proporcionaram. A irmã do marido, a professora Doroteia Moutinho, permaneceu em Quelfes, desiludida com a cunhada mas, ao mesmo tempo, admirando o seu talento com aquela piedade de quem sente pelos doentes a ternura de um perdão eterno. Tempos depois a bondosa Doroteia casaria com um abastado proprietário rural, muito conhecido no meio, José de Sousa Guita, de seu nome, que por curiosidade era o dono da escola e da casa onde habitara, e onde se albergara a insatisfeita poetisa de Vila Viçosa. Infelizmente, já todos desapareceram, tanto os familiares de Florbela como os de seu primeiro marido, restando apenas a geração que se lhe seguiu, agora muito dispersa por Lisboa, Évora, Portimão e Beja. Florbela Espanca casaria mais duas vezes. Primeiro no Porto, com António José Marques Guimarães, de 26 anos, ao tempo alferes de Artilharia da Guarda Nacional Republicana. Cerca de dois anos depois, divorcia-se daquele militar para se consorciar, logo a seguir, com o médico Mário Pereira Lage, de 32 anos, com quem permaneceu até à morte. No dia 7 de Dezembro de 1930, às 22 horas, suicidou-se na sua residência da Rua 1.º de Dezembro, em Matosinhos. No dia imediato, data do seu aniversário, descia à terra um corpo de 36 anos, cuja existência atormentada havia sido dilacerantemente sacrificada ao génio narcotizante de uma lírica mística e pagã, eivada de um certo narcisismo insatisfeito. Para terminar, gostaríamos de aqui, nestas mesmas colunas que em Janeiro de 1931 pela voz de António Ferro, logo corroborada por Lopes de Mendonça, D.ª Cândida Aires, Bourbon e Menezes, e, por fim D. Fernanda de Castro, defenderam, sustentaram e venceram a ideia de em sua memória se levantar um monumento; se pugnasse hoje, meio século volvido, pela incrustação de uma placa comemorativa da sua presença naquela modesta casa de Quelfes, onde Florbela Espanca receou enfrentar o mesmo espectro que 12 anos mais tarde ceifaria um dos mais notáveis talentos poéticos deste século e de toda a literatura portuguesa. [1] Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, a Vida e a Obra, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Arcádia, 1979, p. 68.
(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 6 de Agosto de 1983)

sábado, 23 de outubro de 2010

Florbela Espanca no Algarve (parte I)

J. C. Vilhena Mesquita A fugaz passagem de Florbela Espanca pelo Algarve tem sido pouco estudada pelos seus biógrafos que, naturalmente, se têm mostrado muito mais atentos aos factos que marcaram directamente a sua amarga existência. Porém, permitam-me que discorde da macrobiografia e que modestamente me embrenhe na obscuridade dos episódios pouco conhecidos, «a priori» irrelevantes, mas que teremos de admitir, constituem os microfactos, na maioria dos casos, indispensáveis e urgentes para o desvelamento dos chamados «acontecimentos notáveis». Pois, na vida de Florbela d'A1ma da Conceição Espanca, verificam-se muitos «pontos negros», que apenas se afloram sem que, contudo, se penetre no cerne das suas origens, na essência da sua constituição. Ora, a permanência daquela poetisa em terras do Algarve não tem constituído, ainda, um objecto de investigação para os ensaístas da nossa literatura ou para os historiadores da nossa cultura, talvez porque a sua estada foi efémera, transitória e indelével. A razão da transferência daquela poetisa alentejana para a pacata Aldeia de Quelfes, no concelho de Olhão, prende-se com questões de saúde e data da Primavera-Verão de 1918. Nessa altura, Florbela já campeava nos jornais, mormente no «Notícias de Évora», creditando-se como uma jovem poetisa de rara sensibilidade, espelhando desde logo uma inspiração transcendente e mística, de uma beleza algo amarga. Vinha atraída pelo clima ameno, de ares puros e grande calmia, que então se vivia na orla marítima desta província. A sua doença aparentava sintomas de tuberculose e a prudência aconselhava-a a fugir dos ares poluídos e da vida atribulada, que experimentara como estudante do 1.º ano de Direito da Universidade de Lisboa. Nessa época Florbela era já uma mulher feita. Tinha 24 anos de idade e era casada com Alberto de Jesus Silva Moutinho, mais velho do que ela um ano. A sua vida conjugal prolongava-se desde há cinco anos e um aborto, associado a um estado de espírito verdadeiramente inconstante, degenerara num esgotamento físico-psíquico muito próximo dos sintomas da tuberculose. Restava-lhe escolher o local mais apropriado ao seu completo restabelecimento. Escolheu Quelfes. Porque? É simples! A zona da beira-serra algarvia que se estende desde os Vilarinhos, passando por Alportel até Moncarapacho, era muito aconselhada pelos médicos havendo inclusivamente a salientar a existência de uma sanatório no lugar de Almargens, no concelho de S. Brás de Alportel, originariamente destinado ao tratamento dos trabalhadores dos caminhos-de-ferro. Além disso, o pai de Florbela, o conhecido antiquário João Maria Espanca, era muito bem aceite por estas bandas, que frequentemente visitava na ânsia de encontrar e adquirir objectos de arte de comprovado valor e antiguidade. Portanto, tudo leva a crer que conhecendo bem a região e sabendo por experiência própria o quanto ela era benéfica no tratamento de tais doenças, tenha aconselhado a filha a vir para o Algarve, em vez de demandar as terras altas do Norte. Acrescente-se a tudo isto, o facto de em Faro residir o irmão de seu marido, o Manuel, de que era grande amiga, e cujo fraternal afecto conservou até à morte. Nada nos repugna afirmar que a seu alvitre resida mais uma das razões que motivaram a sua permanência nesta província. Mas, nessa altura, atendendo à amizade que a unia ao cunhado, porque não escolheu antes a cidade de Faro? Muito naturalmente porque nesta cidade os ares não seriam tão propícios à sua doença quanto os de Quelfes, que se situa na zona do chamado Barrocal, área morfologicamente intermédia à serra, e ao litoral. Mas, nesse caso, porquê Quelfes e não Moncarapacho, por exemplo? Ora aí é que reside a principal questão! E a explicação foi-nos revelada pelo Dr. Antero Nobre, grande investigador da cultura e da história olhanense, que, não há muito tempo, lançou de balde o alvitre de na casa que Florbela Espanca habitou, que felizmente ainda existe, se colocasse uma lápide, assinalando, com inteira justiça, a veracidade do facto. Infelizmente, o dono do imóvel recusou-se a permitir tal «sacrilégio», talvez com medo que assim se impedisse a futura hipótese de naquele lugar vir a construir um prédio novo. E a ideia morreu sem ter qualquer seguimento, apesar de mesmo assim se ter iniciado uma subscrição pública para comportar as despesas de elaboração da referida placa comemorativa. Enfim…, coisas que só acontecem no Algarve. Mas estava eu dizendo que a explicação da sua fixação em Quelfes reside no facto de aí se encontrar colocada como professora primária uma irmã solteira do marido, que se chamava Doroteia, e que partilhava a residência com uma amiga. Logicamente que ela era a pessoa mais indicada para os ajudar pois residia no local apropriado ao tratamento de Florbela e, além disso, tinha conhecimentos suficientes da vila de Olhão que permitissem ao irmão ganhar a vida como explicador de matérias liceais, trabalho esse que ele já havia desenvolvido nos concelhos de Redondo e de Évora. Inclusivamente era esse o único ganha-pão do casal, muito embora o pai de Florbela já patrocinasse os estudos da filha contribuindo com uma mesada que, associada aos rendimentos do Alberto Moutinho, era substancialmente capaz de permitir a sobrevivência de ambos. Portanto, atendendo a que Olhão Se encontrava a dois quilómetros da casa da irmã e que aí existia um colégio onde podia exercer a sua actividade de explicador, o Alberto Moutinho concluiu, naturalmente, que não valia a pena pensar duas vezes. E assim aconteceu. Fixaram-se em Quelfes, muito provavelmente desde Março de 1918 até Setembro desse mesmo ano. Uma efémera estada, portanto. Contudo, foi suficiente para que Florbela se restabelecesse dos achaques provocados pelo aborto e pudesse, inclusivamente, dedicar-se à meditação poética, à produção de alguns sonetos, que mais tarde foram reunidos em livro. Curioso será notar que a amenidade do clima algarvio e a placidez da aldeia de Quelfes vão estar na base da separação do casal e no seu consequente divórcio. Assim, enquanto o marido, mais calmo e sensato, preferia a segurança e a tranquilidade da província, situação que mais se coadunava com o seu espírito modesto e resignado, capaz de viver com as maiores dificuldades, sem que isso constituísse uma verdadeira desgraça; Florbela, ao invés, preferia o luxo, o convívio com gente culta, mais de acordo com o seu feitio e com as suas carências afectivas. Florbela amava a cidade, o movimento e o rebuliço, a sua roda de amigos e, especialmente, sentia uma vontade intrínseca de ser adorada, na expressão mais sublime do termo. O marido não podia regular-se pelo mesmo diapasão. Daí a sua incompatibilidade. Efectivamente, não se pode dizer que Florbela Espanca tenha sido feliz nesta sua torturante permanência em Quelfes. Assim se comprova através de breves passagens das suas cartas, datadas de 19 de Abril, 18 de Maio e de 5 de Junho, justamente compiladas em livro por Azinhal Abelho e José Emídio Amado, Cartas de Florbela Espanca (1949), nas quais faz transparecer a sua desilusão, o seu desencanto a sua, ao fim e ao cabo, permanente frustração. «Estou farta disto tudo. Se me vejo daqui para fora não acredito, mas o raio do médico diz que se me vou embora que não duro seis meses e eu tenho medo.» Mas ainda mais saturante e dramática poderá considerar-se esta passagem: «Não me digas que fico cá até ao fim da vida. Era melhor dar um tiro nos miolos.» A solidão da aldeia igualmente atormentava o seu espírito sequioso de comunicação, de carinho, de afecto, de admiração, de fama…, com a qual sempre sonhou, mas que só veio a obter depois da morte. «Não imaginas como eu passo os dias aborrecida. Não há ninguém com quem a gente possa conversar.» Tal como muito bem observa Agustina Bessa Luís, «todas as suas perturbações, a emoção exaltada, o esgotamento, as insónias, a intolerância aos alimentos, às pessoas, ao género de vida, a tuberculose encoberta, as dores de cabeça, as infecções, toda a espécie de repugnâncias físicas e morais, anunciam a instalação da neurose. Provavelmente com o desgosto sexual aparece o grande motivo desentendimento no matrimónio.»[1] No entanto, é errado pensar-se que ambos viviam numa situação económica matizada por privações insustentáveis e adversas ao seu espírito, já que o contrário se comprova através de uma carta, datada de Junho de 1918, na qual se verifica que o Alberto Moutinho ganhava cerca de 45$00 mensais como explicador, e que, acrescido do ordenado da irmã e da mesada que recebia do pai, dava perfeitamente para levarem uma vida desafogada. (artigo publicado no «Diário de Notícias» em 5 de Agosto de 1983) [1] Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, a Vida e a Obra, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Arcádia, 1979, p. 46.