domingo, 23 de agosto de 2009

Nem Colombo nem Cabral - Quem descobriu a América?


José Carlos Vilhena Mesquita

A dúvida, precedida da afirmação, que usamos como título para este artigo, exclui à partida que aceitemos a tese clássica do “acaso”, como se tratasse de obra do destino o feliz “achamento” do Brasil pela frota de Pedro Álvares Cabral. E isto porque não se pode atribuir à ocasionalidade ou ao sortilégio da sorte, a descoberta de um território que já havia sido demandado por outros povos, que não os portugueses. Além disso, a ajuizar pelas palavras de Estevão Fróis, as costas do Brasil já eram navegadas pelos nossos marinheiros desde 1493.[1]
Mas a nossa intenção não é a de discutir se existiu ou não um conhecimento pré-colombino dos portugueses acerca das terras americanas, mas antes o de afirmar que muito antes das nações ibéricas já outros povos ocidentais e orientais haviam aportado naquelas paragens.
Efectivamente, uma espécie de “pedra roseta”, digamos assim, foi há anos exumada na Bolívia, na qual se podem observar inscrições cuneiformes juntamente com outras grafias de tipo semítico o que, à priori, nos leva a deduzir que navegadores do extremo oriente haviam precedido os navios de Colombo.
Através da leitura de obras como A Agonia do Deus Sol, de Jacques Mahieu, A América Antes de Colombo, de Cyrus Gordon, ou Os Conquistadores do Pacífico, de Pierre Carnac, somos despertados para as prováveis presenças em terras americanas de povos como os Irlandeses, os Fenícios, os Bascos (que em 1143 pescaram bacalhau na Terra Nova), os Vikings, os Egípcios e até os Chineses e Japoneses. Para se chegar a esta suposição muito tem contribuído a intervenção científica da moderna arqueologia.
Relativamente aos irlandeses, sabemos que estes se estabeleceram nos territórios da Terra Nova e da Nova Inglaterra, onde fundaram a chamada “Grande Irlanda”, muito antes de ali chegarem os Vikings comandados por Bjorn Herjulfason e por Leif Ericsson. Estes por sua vez, no ano mil, colonizaram a tão famosos quanto mítica Vimlândia, que se situaria entre Nova Iorque e Boston, embora Jacques Mahieu tenha encontrado vestígios da sua presença na ilha do Yucatão e na América Central.
Mas há ainda outros indícios e testemunhos arqueológicos que quase nos garantem a sua permanência no Peru, se considerarmos a descoberta de algumas múmias de cabelo ruivo na fortaleza amazónica de Kuelap, caso estranho já que os indígenas são regra geral de cabelo negro. Além disso, foram encontrados no deserto de Atacama alguns restos ósseos de cães dinamarqueses, galgos, muito provavelmente trazidos para este continente pelas embarcações vikingues.
Quanto aos povos asiáticos, possivelmente chineses, sabemos que o monge budista Huey Sing esteve na América Central, provavelmente na actual Guatemala, à qual chamou o “país de Fusang”. Por outro lado, de acordo com os estudos efectuados por investigadores e arqueólogos, presume-se que a cultura pré-colombina denominada Chimu, estabelecida a norte do actual território do Peru é, segundo parece, de origem japonesa. Na verdade, sabe-se que os Chineses chegaram a estas paragens por via marítima, e daí se infere que tenham vindo do Japão em resultado das constantes guerras-civis que se desencadeavam naquele arquipélago.
No que respeita aos Fenícios, também se aventa a hipótese da sua presença no continente americano, pois segundo alguns historiadores as terras do “Paruaim”, citadas na Bíblia não passam de uma corruptela da palavra “Peru”. Efectivamente, o templo de Salomão encontrava-se repleto de ouro, trazido pelos fenícios de Hirão, rei de Tiro, cujos marinheiros visitavam assiduamente as minas de “Paruaim”. Aliás, entre o avultado espólio arqueológico exumado na cidade geométrica de Cusco, capital do Império Inca, foi encontrada uma pequena estatueta representando um homem de compridas barbas, em posição sentado, retendo entre os joelhos uma pequena placa na qual parece registar algo que não podemos adivinhar. Porém, existe uma semelhança enorme entre esta pequena escultura e as estátuas representativas dos escribas fenícios. Visto que Cusco foi até à conquista espanhola uma das mais ricas regiões auríferas da América, porque não admitirmos que esse escriba estaria a anotar os carregamentos daquele preciso metal.
Mas foi Pierre Carnac, o historiador que melhor desmistificou a virgindade do continente americano, tomando como referência incontornável os achados arqueológicos encontrados em diversos lugares e regiões do continente americano. Foi com base nesses elementos que teve a ousadia de elaborar uma lista cronológica sobre o aportamento ao continente americano de variadíssimos povos provenientes da Europa e da África que precederam as naus de Colombo. O escalonamento desses povos, segundo Carnac, ficaria ordenado da seguinte maneira:
Cananeus, fenícios, povos negros indeterminados, cartagineses, gregos, romanos, celtas, irlandeses, vikings, ingleses, suevos, noruegueses, venesianos, bretões, bascos, dinamarqueses, portugueses, e só depois os espanhóis de Colombo.
Embora a arqueologia seja uma ciência rigorosa e de reconhecida autoridade, que muito tem contribuído para o progresso do saber histórico, cremos que Pierre Carnac exagerou no que respeita à lista dos povos acima discriminados. Não parece crível que a maioria deles tivesse precedido Colombo. O facto de terem sido encontrados objectos de diferentes origens e culturas, de diversas proveniências e distantes épocas, embora indubitavelmente estranhos às culturas autóctones, não significa que tenham sido levados para ali pelos seus originários produtores. O que deve ter acontecido é que foram transportados para a América por efeito de trocas mercantis não necessariamente operadas naquele território. Por isso é que foram encontrados em contextos arqueológicos deveras estranhos, para cuja explicação prevaleceram certas análises mais especulativas do que científicas, elaborando-se assim conclusões prematuras e pouco fiáveis.
Seja como for, uma coisa é certa: Colombo não descobriu a América, afirmação que é extensiva a Cabral, pois pensamos que alguns dos povos acima referidos terão chegado pelo menos ao actual estado de Pernambuco.
Antes de terminar, porém, acrescentaremos algumas achegas à tão decantada problemática do pré-conhecimento das terras americanas antes do aportamento em terras de Vera Cruz da frota de Pedro Alvares Cabral.
Cumpre assim, em primeiro lugar, perguntar como se explica que D. João II se tivesse apressado a negociar o Tratado de Tordesilhas com os Reis Católicos? De facto, a divisória de 1493 excluía aos portugueses a hipótese de “achamento de terras” para ocidente, e a avaliar pelas preocupações do monarca na demarcação de um meridiano situado a 370 léguas a ocidente do Cabo Verde torna-se um facto estranho, que facilmente no leva a deduzir que já então se sabia da existência de terras no Austro.[2]
Há ainda um outro facto algo estranho que merece ponderosa reflexão. No Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, publicado em 1838 por Diogo Kopke, a certo passo diz o seguinte:
E huma quynta feira que eram tres dias Dagosto partimos em Leste, e hindo hum dia com Sull quebrou a verga ao capitam morr e foy em xviij dias Dagosto e seria isto (duzentas) légoas da Ilha de Santiaguo, e pairamos com o traquete e papafigo dous dias e huma noute, e em xxij do dito mês hindo na volta do mar ao Sul e a Quarta do Sudueste achamos muytas aves feitas como garçõees e quando veo a noute tiravam contra o Susoeste muyto rrigas como aves que hiam pera terra, e neste mesmo dia vimos huma balea e isto bem oytocentas légoas em mar.”[3]
Algo um pouco semelhante escreveu Pero Vaz de Caminha, na sua Carta do Achamento:
E à quarta-feira seguinte (22 de Abril) pela manhã, topámos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra”.[4]
Ora, não terá Vasco da Gama avistado sinais de terra durante a sua prioritária missão de descobrir o caminho marítimo para a Índia? O indício das aves (garças), dos lenhos flutuantes (“rigas”, possivelmente madeira de pinho) e da baleia (mamífero que proliferava pelas costas brasileiras, e cuja pesca mais tarde se haveria de desenvolver), parecem-nos muito significativos se lhe ajuntarmos ainda o facto de no Roteiro se dizer peremptoriamente que “muyto rrigas como aves que hiam pera terra”. Logo, é muito provável que o descobridor da rota marítima das especiarias se tenha apercebido de correntes orientadas para terra, se é que não vislumbrou mesmo a terra brasileira. Só que a descrição do avistamento dessas terras não consta no Roteiro de Álvaro Velho, nem tão pouco no Diário de Vasco da Gama, facto esse quanto a nós originado pela política de sigilo impulsionada por D. João II. Porém, sabemos hoje que Vasco da Gama aconselhou Cabral a seguir a rota do Sul precisamente a partir das Ilhas de Cabo verde rumando para Sudoeste, caso viesse a ser “importunado” por ventos tempestuosos. Na verdade, o navegador seguiu o conselho, desviando-se ostensivamente para o quadrante de Sudoeste, durante as setecentas léguas que separam a Ilha de São Nicolau do local do primeiro desembarque em Porto Seguro.[5] E como as descrições da viagem não se referem nem a tempestades nem a correntes marítimas que justificassem tão pronunciado desvio da rota, é lógico admitir-se um pré-conhecimento daquele continente. Aliás, se por acaso houvesse necessidade de desvio motivado pelo regime dos ventos (o que não nos parece viável, já que os nossos pilotos sabiam bolinar há quase um século e dominavam as mais modernas técnicas de navegação), como é que se explica que Cabral e os seus pilotos tenham velejado setecentas léguas em águas desconhecidas sem procederem à correcção da rota?
Por outro lado, na Carta do Achamento de Pero Vaz de Caminha nada consta que nos possa levar a supor que aquela descoberta foi acolhida com grande surpresa e contentamento por todos os expedicionários. Ora, se efectivamente o acontecimento fosse obra do acaso, com certeza que o procedimento narrativo de Pero vaz de Caminha seria idêntico ao de Cadamosto quando descreve euforicamente a descoberta das Ilhas de Cabo Verde.[6]
Enfim, muitas mais razões se poderiam adiantar, mas não é nossa intenção esgotar este assunto, pelo que ficamos por aqui. A finalizar, e apenas a talhe de foice, concluímos que é quase certo o conhecimento prévio da existência de terras para ocidente da África, pois doutra forma Pedro Alvares Cabral não teria seguido uma rota tão directa para aquele continente. Agora, duma coisa temos a certeza, é que não foram nem Colombo nem Cabral os descobridores do “Novo Mundo”.

NOTAS

[1] Em todo o caso, Duarte Leite contraria a veracidade das afirmações de Estevão Fróis, considerando-as exageradas.
Cf. Duarte Leite, História dos Descobrimentos, 2 vols., Lisboa, Ed. Cosmos, 1959, 1.º vol. pp. 346-349.

[2] A este facto se refere a carta de Roberto Thorne de 1527, na qual o mercador inglês escreve ao seu monarca dizendo-lhe que desconfia que D. João II estivesse já na posse de notícias que lhe garantissem a existência dum continente austral a oeste de África, e daí ter negociado pela segunda vez o Tratado de Tordesilhas. Jaime Cortesão apresenta o documento e acredita nele, o que não se verifica na citada obra de Duarte Leite.

[3] Damião Peres (dir. de), História de Portugal, 9 vol., Porto, Portucalense Editora, 1928-1954, vol. III, p. 579.

[4] Pero Vaz de Caminha, Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974, p. 33.

[5] Duarte Leite. op. cit., p. 538.

[6] “Aguentamo-nos assim o tempo duas noites com três dias havendo ao terceiro vista de terra, e, gritando todos: - Terra, terra, muito nos maravilhamos, porque não sabíamos que naquelas paragens houvesse terra alguma e mandando subir ao mastro dois homens, descobriram duas grandes ilhas (Ilha do cabo Verde), o que, sendo noticiado, demos graças a Deus Nosso Senhor que nos levava a ver coisas novas; porque bem sabíamos que destas ilhas não havia notícia alguma em Espanha (designação que abrange os países da Península Ibérica, aqui refere-se a Portugal) e, julgando nós que elas podiam ser habitadas, para saber o mais e provar nossa ventura, nos fizemos na volta de uma delas e em pouco tempo nos achamos perto”.
Luís de Cadamosto, «Viagens», in Grandes Viagens Portuguesas, selecção de Branquinho da Fonseca, 2 vols., 2.ª ed., Lisboa, Portugália Editora, s/d, vol. II, pp. 11-12.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O Paladino da Poesia Algarvia – Joaquim Magalhães

José Carlos Vilhena Mesquita Procurando estabelecer um paralelismo comparativo entre a erudição e a generosidade intelectual, a bondade espiritual e a lisura de carácter, cheguei à triste conclusão que são atributos que muito raramente ornam a figura humana. Como raro é também caminharem juntos o percurso da vida numa só pessoa. Dei-me ao trabalho de procurar nos meus arquivos da cultura algarvia as personalidades que melhor preenchessem essas qualidades e virtudes. Confesso que entre os que possuíram essas virtudes e mais se assemelham entre si foram João de Deus e Joaquim Magalhães. A principal diferença entre ambos reside na distância cronológica e na confinação geográfica das suas acções cívicas. Um viveu e desenvolveu os seus principais projectos culturais em Lisboa e o outro quedou-se pela província, curiosamente a de que era originário o “poeta das crianças”. Existindo, como creio, uma geopolítica da cultura, protegida pelo poder político, favoritista e centralizador, não admira pois que João de Deus se tenha alcandorado ao areópago das figuras nacionais, apontado como elemento definidor duma cultura e educador de gerações. As suas qualidades foram reconhecidas e o seu génio imortalizado. O Dr. Joaquim Magalhães embora mais humilde e menos ambicioso que o autor da Cartilha, nunca poderia guindar-se a altos voos porque destas terras de lendas e feitiços nunca se apartou. Em todo o caso viveram duas realidades político-culturais absolutamente diferenciadas, em dimensões cronológicas muito distantes, pelo que qualquer comparação entre ambos é sempre passível de incongruências e anacronismos. No Algarve dos meados do século a vida cultural era incipiente, escassa e quase episódica. O regime vigente também não permitia grandes veleidades, pois encarava os intelectuais como subversivos e potenciais adversários. E quantas vezes o Dr. Joaquim Magalhães não sentiu a impossibilidade de ir mais longe, vendo-se coagido a silenciar as suas opiniões sobre a situação sociocultural em que o país vivia. Por vezes a mais elementar crítica de âmbito literário, quando dita em público, podia ser entendida como perniciosa e desafecta ao regime. Talvez para evitar mais sacrifícios e perseguições - até porque como professor estava sob a alçada do Estado - decidiu refrear as opiniões políticas, evitando confrontar-se com os esbirros do salazarismo. Provavelmente por isso, chegou mesmo a dar a impressão que pactuava com o regime, mas toda a gente sabia que o Dr. Magalhães era um indefectível democrata, cuja bondade de carácter não era capaz de estabelecer diferenças nem distinções entre bons e maus concidadãos. Pela admiração que me merecia esse generoso amigo, senti um indescritível desgosto no passado dia 16 de Outubro de 1999 quando recebi a triste notícia do seu falecimento. Eram cinco horas da tarde quando um telefonema frio e repentino anunciava: Morreu o Dr. Magalhães. Senti um calafrio, um aperto sufocante no coração que me paralisou a voz. O meu ilustre conterrâneo, indefectível amigo e companheiro nas lides culturais algarvias, partia para sempre. Não sofreu, foi de repente, faleceu serenamente - confidenciou um seu familiar. Virou-se para o outro lado da vida, diria certamente o nosso comum amigo Pinheiro e Rosa, que tinha para a morte uma explicação de transitoriedade, uma espécie de mutação material para um estado de graça absolutamente espiritual, que pessoalmente prefiro qualificar como a prova da nossa impermanência existencial. A sua provecta idade, noventa anos acabados de concluir em Maio, não parecia ter-lhe diminuído a ânsia e viver. Bem pelo contrário, mostrava-se esperançado em romper o século e penetrar no novo milénio. Esta meta cronológica, carregada de fortes implicações psicológicas, sentia-a como uma barreira que desejava vencer. Todavia, uma recente intervenção cirúrgica ao esófago precarizara-lhe a saúde, agravada naturalmente pelo peso da idade. Vi-o definhar neste último verão. Notei-lhe uma grande quebra física, perdendo peso de uma forma irreversível, que o impossibilitou de andar e até de falar com o vigor a que nos havia acostumado. Senti-lhe o fim. Mas apesar de se temer o pior, mas nunca se está preparado para receber e aceitar a morte de um amigo. Em boa verdade pode dizer-se que o Dr. Joaquim Magalhães foi uma personalidade ímpar e uma figura tutelar da cultura algarvia. Creio mesmo que terá sido o último de uma plêiade de intelectuais que marcaram profundamente a vivência cultural no Algarve. Alguns deles tive a honra de conhecer, como foi o caso do Dr. Mário Lyster Franco, o museólogo José António Pinheiro e Rosa, os publicistas Maurício Serafim Monteiro, Antero Nobre, Abílio Gouveia e Aníbal Guerreiro, os historiadores Alberto Iria, Garcia Domingues e Mariana Santos, os jurisconsultos Rita da Palma, Júlio Carrapato e Neves Anacleto, os poetas João Bráz e Leonel Neves, o escritor Vicente Campinas e o artista Manuel dos Santos Cabanas, além de outros que a memória atraiçoa. Guardo do meu querido amigo Dr. Joaquim Magalhães as mais gratas recordações, nomeadamente os seus conselhos e ensinamentos, que nunca recusava a quem quer que fosse. Aliás, a sua principal característica era a generosidade. A sua grandeza humana definia-se em duas palavras: bondade e benevolência. É nesse sentido que se tornam mais entendíveis as palavras da escritora Lídia Jorge, quando na homenagem realizada na Livraria Odisseia afirmou: «O Dr. Joaquim Magalhães criou no Algarve uma autêntica família cultural e espiritual... era um homem bom de grande capacidade de envolvimento humano». Como teve a honra de aos catorze anos de idade ter sido sua aluna, recorda-se que «O Dr. Joaquim Magalhães ensinou-nos a saber ler que o silêncio das palavras é uma coisa muito importante... Aprendi com ele o fundamental para a minha vida». É raríssimo ver-se hoje alguém da sua estirpe, mostrando-se desprendido e desinteressado nas coisas de que poderia beneficiar. E como poderia ter ido longe este homem se fosse um pouco mais ambicioso e não vivesse quase em exclusivo para os outros. Não era esse o seu feitio. Recusou sempre o exercício do poder, apenas aceitando o cargo de Reitor do Liceu de Faro, por ser essa a vontade dos seus colegas. Por isso costumava dizer com alguma ironia que «quem não vive para servir, não serve para viver», sendo inclusivamente esse o seu lema de vida. Esta máxima identifica claramente um homem desprendido de quaisquer vaidades, sem pretensões para ser mais do que um educador e um provocador de ideias e um descobridor de talentos. Mas não só. A sua afabilidade granjeava-lhe amizades tanto à esquerda como à direita, suscitando através da cultura uma convivência pluridimensionada, geradora de consensos e de tolerâncias. A lisura de carácter, que tanto o caracterizava, é uma das razões que me leva a considerá-lo como um paradigma do intelectualismo moderno, inspirado nos sublimes valores do classicismo florentino. Acresce dizer também que, não obstante ser muito conhecida a sua máxima de vida (quem não vive para servir, não serve para viver), muitas vezes apregoou em público que se considerava um “algarvio nascido no Porto”, razão pela qual adoptou do seu conterrâneo Infante D. Henrique a divisa “talante de bem fazer” (talant de bien faire) para caracterizar a sua conduta sociocultural. Foi sobretudo essa vontade de fazer bem aos outros, usando largamente da paciência e da tolerância, para não ofender a ignorância nem a incompetência dos muitos que dele se cercavam, que obteve a aura de homem singular. Andarilho das ruas de Faro, visitava quase diariamente as sedes dos jornais, as livrarias e os escritórios de alguns amigos. Fazia-o como um ritual, em breves passagens à laia de “visita de médico”. Era só para dar de vaia, comentava em jeito de graça, e partia depois dos cumprimentos habituais. No seu passeio matinal era geralmente abordado por imensas pessoas. Escutava pacientemente quem o interpelava e nunca ouvi dizer que tivesse uma palavra, um comentário reprovador ou depreciativo para quem quer que fosse. Também não gostava de dar opiniões, porque receava que isso pudesse vir a causar dissabores ou a indispô-lo com alguém. Preferia agir como um autêntico diplomata - nem sim, nem não. Contudo, para que a conversa não azedasse tinha logo uma laracha para comparar à situação ou uma anedota para amenizar o clima de crispação. Ouvindo maus dizeres contra tanta gente, nunca foi capaz de “trazer e levar” as intriguinhas que adornam e fertilizam a nossa mesquinha sociedade. Posso afirmar, com pleno conhecimento de causa, que levei algum tempo até aceitar do Dr. Magalhães este silêncio, qual voto de confessionário, que o impedia de revelar as maledicências que lhe confidenciavam aqui e ali. Tinha uma “calma freudiana” que lhe refreava o ânimo e impedia de exteriorizar as emoções ofensivas. Foi então que me disse uma quadra de António Aleixo que nunca esquecerei: Que importa perder a vida Em luta contra a traição, Se a Razão mesmo vencida Não deixa de ser Razão. A benemerência que espalhou foi de carácter espiritual, já que de ordem material não lhe era possível. Aliás, uma das queixas que lhe ouvi várias vezes prendia-se com a sua escassa reforma, nada consentânea com a sua especialização profissional, que noutros tempos era exigentíssima. Apesar disso, a Dr.ª Maria Aliete Galhoz afirmou, na homenagem acima referida, que o Dr. Magalhães após ter sido seu professor soube que as dificuldades económicas colocavam em causa a continuidade dos seus estudos na Universidade, pelo que de uma forma mecenática se ofereceu para lhe pagar as propinas, o que não chegou a ser necessário. Este gesto identifica bem o homem que ele era, as salutares preocupações que tinha com o sucesso dos seus alunos. Mesmo sabendo-se das suas dificuldades económicas, já que um professor ganhava pouco para as funções sociais que desempenhava. Por outro lado, o Dr. Joaquim Magalhães não prescindia das despesas inerentes a um intelectual, ou seja, comprava diariamente jornais e adquiria de livros, por mais dispendiosos que fossem. Tínhamos em comum algo que nos unia profundamente: nascêramos ambos na mesma rua, a trinta passos de distância, como ele costumava dizer. Distanciavam-nos, porém, 46 anos de diferença. Joaquim da Rocha Peixoto Magalhães, de seu nome completo, nasceu na freguesia da Sé, na cidade do Porto a 3 de Maio de 1909, razão pela qual se intitulava como um “irmão mais velho da República”. Aprendeu as primeiras letras na escola primária de Massarelos, na cidade Invicta, transferindo-se pouco depois para São Martinho de Sande, no Marco de Canaveses, terra de origem dos seus ascendentes. Estudou depois no Colégio Francês e no Liceu Rodrigues de Freitas, ambos no Porto, em cuja Faculdade de Letras se licenciaria em Filologia Românica, com dezasseis valores, no ano de 1930. No ano seguinte iniciou o estágio pedagógico no Liceu Normal de Coimbra, relativo ao 2.º grupo nas disciplinas de Português e Francês. Foram dois anos extenuantes e de certo modo injustos, pois que durante o estágio não se recebia salário. Por isso, foi trabalhar na Escola Comercial Oliveira Martins, no Porto, no Colégio de S. Luís, em Espinho e no Internato de Sernache do Bom Jardim. Em 1933 foi aprovado com dezassete valores no Exame de Estado no Liceu Normal Pedro Nunes em Lisboa. Ainda antes de ser colocado, no ano lectivo de 1933-34, no Liceu de Faro como professor agregado, O primeiro contacto com Faro durou apenas um ano, já que em 1934-35 concorreu para professor efectivo sendo colocado no Liceu Jaime Moniz, no Funchal. No ano seguinte tomava posse no Liceu de Faro como professor efectivo de Português e Francês, tendo até exercido funções de Director de Classe, Director de Ciclo, Vice-Reitor e Reitor entre 1968 e 1974, com a particularidade de não ter sido saneado com o «25 de Abril». Pelo contrário, merecendo a confiança dos colegas e das novas instituições teve a honra de ser o primeiro Presidente do Conselho de Gestão Democrática do Liceu de Faro. Durante esses quase quarenta anos de docência foi por diversas vezes requisitado para elaborar os pontos nacionais de exame da disciplina de Francês, assim era solicitado para aprovar os livros escolares da mesma língua e de Português. Ao longo desses quarenta anos de docência deixou fortes marcas no espírito dos seus jovens alunos, que na sua maioria guardam dele as mais gratas recordações. Nesse aspecto parecem-me, mais uma vez, dignas de memória as palavras, aliás, bastante elucidativas, da escritora Lídia Jorge quando a esse respeito afirmou: «Para além do pensamento aberto ao mundo, ele [Dr. Joaquim Magalhães] faz parte de uma espécie de tendência de escola libertária, os únicos textos pedagógicos, didácticos de que eu me lembro e a que ele se referia nas aulas eram os textos de Rousseau. Dizia-nos que cada homem tem um saber dentro de si, tem é de o descobrir, foi a essa perspectiva que o Prof. Joaquim Magalhães foi capaz de se associar com um temperamento que estava perfeitamente coadunado para esse tipo de escola libertária. Por isso nós acabamos por ser tocados por ele.»[1] Também o seu ex-aluno e reputado poeta, Gastão Cruz, corrobora as influências deixadas pelo antigo mestre, salientando que o Dr. Joaquim Magalhães foi «uma pessoa que soube estimular os alunos no sentido de um aperfeiçoamento cultural. Era um homem que demonstrava aos seus alunos e não só, uma claridade, uma abertura de espírito e um grande estímulo para todos os que conviviam com ele.»[2] A sua acção pedagógica foi notável, sendo ainda hoje lembrado como um professor que não preparava as lições como a maioria dos seus colegas, pois fazia da aula um acto de criação. Mas não foi só na sala de aula que o seu talento se evidenciava, pois que durante dezoito anos preparou as récitas de teatro dos finalistas do Liceu, cabendo-lhe a encenação de obras de autores consagrados como Garrett, Gil Vicente, Camilo, António José da Silva (O Judeu), Ramada Curto, Júlio Dinis e Moliére. Alguns dos seus antigos alunos ficavam bastante surpreendidos com a forma como o Dr. Magalhães se dedicava ao teatro, explicando as cenas e imaginando as emoções do autor quando as escreveu. Ainda recentemente, na sua última homenagem pública realizada na Livraria Odisseia no dia 9 de Outubro, a Prof. Doutora Teresa Rita Lopes e a Prof. Aliete Galhoz, recordavam com saudade alguns desses momentos em que a criatividade e a sensibilidade artística do Dr. Magalhães conseguiam fazer dos ensaios verdadeiras homenagens à arte de Talma. Como agente promotor da cultura a sua acção na sociedade farense foi a todos os títulos exemplar. Merece especial menção a sua participação na fundação da Alliance Française, de que foi o último presidente. Pertenceu com Lionel de Roulet e o Dr. Fernandes Lopes, ao grupo fundador do Círculo Cultural Camões, que durante a guerra se haveria de transformar no Círculo Cultural do Algarve, ao qual presidiu desde 1943 até 1970. Importa acrescentar que o Círculo foi uma espécie de bolsa de resistência intelectual ao fascismo, ali se realizando várias exposições, conferências, colóquios e até cursos intensivos sobre assuntos que não agradavam à situação política. Inclusivamente alguns dos conferencistas e prelectores eram claramente desafectos ao regime salazarista, o que originava constantes visitas dos agentes da PIDE. Além de desagradável a situação chegava por vezes a ser atemorizante, pois podia ocasionar a detenção do palestrante e o encerramento do Círculo. Apesar da sua honorabilidade o próprio Dr. Joaquim Magalhães chegou a temer pela sua segurança, quando numa das suas acostumadas palestras literárias encarou na assistência com um agente da polícia secreta. O caso não passou de um susto, com uma certa graça, que o Dr. Magalhães descreveu nos seguintes termos: «Fui passar férias e encontrei na casa do meu avô, em Marco de Canavezes, um livro de poemas de Olindo Cabral, abade de Jazende. Achei interessante para apresentar uma conferência. Quando já estava quase no fim vi na sala um PIDE que já conhecia por ter lá ido fazer apreensões de livros. Fiquei perturbado a pensar o que é que ele quereria. No fim da conferência ele aproximou-se de mim e disse que estava curioso em saber quem tinha sido o abade de Jazende porque ele era natural daquela freguesia. Foi uma grande surpresa saber que um agente da repressão podia também ter curiosidade literária.».[3] Fundou igualmente o Cine Clube de Faro e o Conservatório Regional do Algarve, a cujo Conselho Administrativo presidiu durante catorze anos. Estas foram as instituições a que mais se dedicou. Porém, outras houve que igualmente beneficiaram do seu esforço como a Misericórdia de Faro, de que foi Vice-Provedor e Provedor, a Mutualidade Popular de que foi Presidente, a Associação de Pais e Amigos das Crianças Deficientes Mentais em Faro, e a Câmara Corporativa a que foi Procurador entre 1973-74 em representação das Associações de Socorros Mútuos ao Sul do Tejo. Pertenceu a certos organismos autárquicos de carácter consultivo, como foi o caso do Conselho Municipal de Faro, da Comissão Municipal de Turismo e da Comissão de Arte e Arqueologia de Faro. Julgo também que terá sido um dos primeiros membros do Rotary Clube de Faro, da Cruz Vermelha e de tantas outras associações locais e regionais. Importa referir que não obstante a sua reconhecida independência política, o certo é que o Dr. Joaquim Magalhães aceitou tomar parte nas comissões distritais eleitorais das candidaturas de Norton de Matos e do general Humberto Delgado. Recentemente foi mandatário regional da segunda candidatura do Dr. Mário Soares à presidência da república, para a qual, como se sabe seria eleito por esmagadora maioria. Em reconhecimento da sua dedicação à cidade de Faro, às instituições culturais e ao associativismo filantrópico, foi agraciado pela autarquia com as medalhas de Grau Ouro da Câmara Municipal de Faro e Grau Prata da Câmara Municipal de Tavira, culminando em 1995 com a atribuição da Comenda da Ordem do Infante D. Henrique. Porém a mais digna e a mais sentida homenagem pública que se lhe prestou em vida ocorreu em 16 de Setembro de 1991, quando foi atribuído o seu nome à Escola C+S n.º 2 de Faro, que hoje ostenta orgulhosamente a designação de Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos Dr. Joaquim Magalhães. Essa foi justamente a mais coerente e perpectualizante homenagem da sua longa e nobre existência. Estreou-se na imprensa algarvia nos meados da década de trinta tornando-se logo num assíduo e respeitável colaborador, a ponto de lhe ter pertencido durante trinta anos a secção «Sete Dias da Semana» no semanário farense O Algarve, do qual viria mesmo a ser Director entre 1981 e 1983. Colaborou também na Voz de Loulé, no Correio do Sul (Faro), no Povo Algarvio (Tavira), no Jornal do Algarve (V. R. St.º António), nos órgãos estudantis do Liceu de Faro, etc, etc. Pronunciou largas dezenas de conferências no Algarve, Funchal, Setúbal, Lisboa e Porto, concitando sempre numerosas audiências. A forma como teatralizava a palavra, aliada a uma dicção cristalina, ao estilo coimbrão, proporcionou-lhe a justa fama de orador. Onde quer que fosse palestrar era certo e sabido que tinha a sala cheia. A sua coroa de glória, fruto do seu bom coração, surgiu nos anos quarenta quando deu atenção a um simples cauteleiro que nas ruas de Faro apregoava a “sorte grande”, bonificando os seus clientes com quadras populares a que só um espírito superior como o do Dr. Magalhães sabia dar valor. Esse simples cauteleiro era o poeta António Aleixo, figura popular e de parcas posses, a que a sociedade burguesa dava pouca importância. Era quase analfabeto, porém o Dr. Magalhães soube ver nele um verdadeiro filósofo, que escutou e apoiou, fazendo-se orgulhosamente seu “secretário”. Não há nenhum milionário Que seja feliz como eu:
Tenho como secretário Um professor do Liceu.
O tal Aleixo, o poeta, Que dizem ser de Loulé, É uma figura incompleta
Sem o Magalhães ao pé.

Essa prova de humildade chegou mesmo a ser criticada no tempo, visto ser indício de um certo bolchevismo, perigoso e desafecto ao regime vigente. Mas o Dr. Joaquim Magalhães não ligou importância e prosseguiu o seu trabalho de compilar, e certamente corrigir (senão mesmo melhorar), as quadras do Aleixo que deu à estampa num pequeno livro intitulado Quando Começo a Cantar, editado em 1943 pelo Círculo Cultural do Algarve. E foi logo um sucesso, já que o autor com a venda do mesmo apurou cerca de vinte e cinco contos, que o ajudaram a combater a tuberculose que infelizmente o haveria de vitimar. Apesar de Tóssan haver incentivado o poeta Aleixo, no Sanatório dos Covões, em Coimbra, a escrever e publicar os Autos da Vida e da Morte e do Curandeiro, divulgando assim o seu talento junto da academia coimbrã, o que certo é que pertenceu ao Dr. Magalhães a humildade e a generosidade de resgatar o simples cauteleiro do anonimato a que estava condenado, fazendo dele um poeta de renome e prestígio nacional. A bem dizer quem “fez” o poeta Aleixo foi o Dr. Joaquim Magalhães, a quem aliás dedicou o seu primeiro livro, intitulado Romance do Poeta Aleixo, editado em 1959. Para além de tudo isto, merece especial destaque o facto de haver pertencido ao grupo de intelectuais que liderou o movimento literário da «Presença», ao lado de Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões, José Régio, Miguel Torga e Adolfo Casais Monteiro. Os “presencistas” foram os grandes difusores do Modernismo em Portugal, contra o academismo e o jornalismo ronceiro, favoráveis a uma literatura viva, sendo por isso os herdeiros naturais do movimento do Orpheu. O Dr. Joaquim Magalhães colaborou com o grupo, carteou-se com a maioria dos seus impulsionadores, e quando no início da década passada se fez em Faro uma exposição sobre o movimento da Presença, o Dr. David Mourão Ferreira teve a hombridade de apontar, destacar e enaltecer a figura do Dr. Joaquim Magalhães como um dos últimos resistentes do movimento da Presença. Por fim, importa salientar a sua faceta de “pai dos poetas”, como ficou conhecido após ter lançado António Aleixo. Neste rincão de poesia e viveiro de poetas, que é o Algarve, poucos foram os que não se acercaram do Dr. Magalhães pedindo-lhe que apadrinhasse a sua estreia literária com um prefácio ou umas simples palavras de abertura, que pudessem dar a entender que as suas obras tinham préstimo e os seus autores sobejo talento. Nunca negou essa paterna bênção, como também nunca soube dizer não a ninguém. Nem mesmo quando sabia que dificilmente conseguiria gerir os seus compromissos. Escreveu prefácios, apresentou livros e fez palestras sobre poesia popular em todo o Algarve, tornando-se no intelectual mais conhecido da região. Fez parte de júris em Jogos Florais e concursos literários, dando com a sua presença muita da credibilidade e do prestígio que faltava à maioria desses certames. No âmbito da crítica literária escreveu dezenas de apreciações não só relativas às obras que acabavam de ver a luz da estampa como também sobre autores da moderna literatura portuguesa. Acima de tudo importa acrescentar que foi talvez o único intelectual que neste país teve a ousadia de descrer e, diria mesmo, desacreditar a poesia de António Ramos Rosa. Nada tinha a objectar contra o abstraccionismo poético, que não raras vezes até lhe agradava, mas incomodava-se com o pseudo-intelectualismo daqueles que, fazendo versos que ninguém entendia, passavam por ser mais inteligentes do que os outros poetas. Da poesia de Ramos Rosa dizia mesmo que se tratava de prosa às escadinhas ou texto retalhado no açougue dos cenáculos lisboetas. A sua obra poderia ter sido vastíssima se em vida se tivesse preocupado em reunir em livro o melhor e a maior parte do que escrevia. Por isso, acaba por ser considerada escassa. Em boa verdade serviu a cultura sem dela se servir. Não obstante publicou os seguintes trabalhos: O Romance do Poeta Aleixo, 1959. Perfil literário de Teixeira Gomes, 1960. Aventura Poética de Emiliano da Costa, 1962. Ao Encontro de António Aleixo, 1977. João de Deus, esse desconhecido, 1995. Pretérito Imperfeito - Quadras e Lírica, 1996. Cartas Sem Código Postal, 1999. Não é uma numerosa e farta lista de obras, como certamente sugere e pressupõe o seu grande prestígio intelectual. Mas as suas preocupações científicas foram quase sempre ultrapassadas pela inimitável missão pedagógica a que votou toda a sua vida. Não gozou da disponibilidade necessária para se dedicar à investigação por inteiro, deixando-se absorver pela divulgação, quer através de centenas de artigos nos jornais, quer através das inúmeras conferências pronunciadas em quase todo o país. Nunca foi capaz de se furtar ou simplesmente recusar as solicitações que lhe eram dirigidas, sobejando-lhe pouco tempo livre para se ocupar na investigação literária. Tinha disso consciência pois numa quadra, ao jeito aleixiano, retratou assim a situação: Cada um é como é, e, por isso, eu sou assim, dei todo o meu tempo aos outros, fiquei sem tempo para mim. Para encerrar esta já longa notícia biográfica, não posso deixar passar em claro a nossa convivência particular e a amizade cimentada ao longo de vinte anos. Lembro-me que estivemos juntos em várias iniciativas e que convivíamos diariamente na delegação do «Diário de Notícias», em Faro, onde fui colaborador regional desde 1981 a 1989. Era um regalo ouvi-lo recordar certos autores consagrados com quem privara, e, sobretudo, ouvi-lo comentar as obras que acabavam de surgir nos escaparates, às quais dava sempre grande atenção. Era aliás um inveterado cliente da Livraria do Diário de Notícias, situada na Rua Vasco da Gama, nos baixos da Secretaria de Estado da Cultura. Recordo-me que o Prof. Tomás Ribas quase sempre descia à Livraria pelas onze da manhã, hora da visita do Dr. Magalhães, sendo deliciosas de humor e de chiste político as análises que ambos faziam sobre as mais diversas situações. O Tomás Ribas tinha um humor sardónico, a que nada nem ninguém escapava, e com isso se divertia imenso o pobre do Dr. Magalhães, que sempre foi muito comedido nas suas apreciações, sobretudo quando relativas ao talento e capacidades das pessoas. Eram duas personalidades ímpares na sociedade farense da década de oitenta e tanto a Livraria como a Redacção do Diário de Notícias eram um ponto de passagem e de reunião diária da intelectualidade local e até mesmo do Algarve inteiro. Chegou a ser um ponto de referência para a convivência cultural, que hoje se perdeu e se desactivou completamente. Por ali passavam regularmente o Prof. Pinheiro e Rosa, o Antero Nobre, o Prof. Doutor Gomes Guerreiro, que era o Reitor da Universidade do Algarve, a Dr.ª Mariana Machado Santos, o Dr. Fernandes Mascarenhas, o Dr. Elviro da Rocha Gomes, e esporadicamente o Tóssan, Casimiro de Brito, Carlos Albino e sua esposa Lídia Jorge, o bibliófilo Tavares Simões, o Dr. Tello Queirós, etc. Pertencemos juntos à Direcção da Associação da Imprensa Regional do Algarve (AIRA), fundada pelo não menos saudoso amigo Antero Nobre. Estive, igualmente, com ambos na fundação da ADEIPA – Associação para a Defesa do Património de Faro, infelizmente já extinta. Participei, ao seu lado, na criação da Universidade para a Terceira Idade, onde leccionei gratuitamente nos dois primeiros anos de existência. Estivemos juntos em júris de Jogos Florais e em várias homenagens onde pronunciamos conferências lado a lado. Recordo-me de um caso exemplar; aconteceu a 15-6-1996, nas Comemorações do 3.º Centenário da Freguesia de Olhão, no âmbito das quais se homenageou nessa data a obra científica do Dr. Alberto Iria, um dos mais ilustres historiadores deste século e certamente uma das mais gradas figuras nascidas naquela vila piscatória. Quem abriu a cerimónia foi o Antero Nobre que nos apresentou como palestrantes, tocando ao Dr. Magalhães o elogio do Autor e a mim o elogio da Obra. Encontrava-se ao nosso lado um enorme retrato do Dr. Alberto Iria, e lembro-me da forma magistral como o Dr. Magalhães se lhe dirigiu, numa espécie de diálogo vivo, por vezes quente e arrebatador, que nos fez rir e chorar, numa mesclagem de sentimentos e emoções como só ele era capaz de suscitar. A numerosa assistência, representativa das principais autoridades políticas e culturais da região, ficou profundamente extasiada com o seu talento de orador, que ao teatralizar um monólogo com o homenageado recentemente desaparecido, parecia dar a entender que ele estava ali entre nós. Nunca vi nada parecido e só um homem de grande talento como o Dr. Magalhães é que era capaz de encenar um diálogo tão realista e emocionante. Ainda recentemente, durante a apresentação na do seu último livro editado pela Câmara de Tavira, fizemos projectos para o futuro, nomeadamente o encerramento das comemorações centenárias de António Aleixo por intermédio da AJEA, o que infelizmente já não realizaremos em respeito pela sua memória. Em todo o caso não quero terminar esta sentida evocação de homenagem pela perda de um grande amigo, sem afirmar que o Dr. Joaquim Magalhães deixa na memória de todos quantos com ele privaram a mais profunda saudade. Sinto, tal como o Algarve, uma impagável dívida de gratidão. No cemitério de Loulé repousa no sono eterno, e quase ao lado de António Aleixo, aquele que foi considerado como o “pai dos poetas” do Algarve. Perdemos um homem bom, que se algum erro cometeu na vida esse foi certamente o de ser generoso numa terra de ingratos.

NOTAS [1] A Avezinha, 21-10-1999. [2] Idem, ibidem. [3] Jornal do Algarve, Magazine, n.º 2191, de 25-3-1999, p. 15. Nota: este texto foi publicado na revista «Stilus» nº 2.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O primeiro jornal diário de Faro


José Carlos Vilhena Mesquita

Numa altura em que acabamos de assistir em Faro à fundação da edição Algarve do Diário do Sul, convirá, talvez, falar um pouco daquele que há mais de um século atrás apareceu pela primeira vez na capital algarvia com uma periodicidade diária regular e constante.
Fundado a 8 de Dezembro de 1880 para servir de arauto a um grupo de progressistas que se havia radicado na capital algarvia, teve O Progresso do Algarve, apesar da sua efémera existência, o mérito de ser o segundo diário a sul do Tejo, editado oito anos depois do célebre Diário do Algarve, fundado em Dezembro de 1872 na cidade de Lagos. Foi seu director o jornalista Luiz Sepulveda Pimentel Mascarenhas, natural de Portimão, figura marcante nos meios político-intelectuais de então, brilhante orador e dedicado pedagogo, que faleceu em Faro a 30-1-1920. À data do seu desaparecimento era ainda grande polemista e desde Abril de 1917 que dirigia o semanário farense O Algarve, que ajudara a fundar em 1908, e que por ainda hoje se publicar é justa e merecidamente considerado o decano da imprensa algarvia.
Publicava-se primeiramente como bissemanário às quartas e sábados e teve vários subtítulos, desde «Órgão da Política Progressista Algarvio», passando a «Folha afecta ao Partido Progressista» e terminando em «Órgão do Partido Progressista Algarvio». Estas constantes mudanças devem-se fundamentalmente às lutas intestinas dos progressistas algarvios que acabaram por se dividir em dois grupos: os “rabinos” e os “fajardos”. Aos primeiros pertenceram o Dr. Manuel Águedo Gomes de Miranda, natural de Moncorvo, Luiz Mascarenhas, de Portimão, o farmacêutico João Agostinho Ferreira Chaves e o Dr. António Frederico Gomes, ambos de Faro. Dos “fajardos” faziam parte o Dr. Manuel Joaquim d'Almeida, natural de Aveiro P.e Manuel José Gonçalves Osório, nascido em Bragança, e os irmãos Drs. Frederico e Francisco Lázaro Cortes, ambos de Faro.
Suponho que iniciou a sua publicação diária numa terça-feira a 18 de Abril de 1882 com o n.º 142 prolongando-se até ao n.º 225 de 18 de Julho desse ano, voltando à sua periodicidade normal de bissemanário desta feita às quintas e domingos. No total publicaram-se apenas 93 números diários, sendo hoje considerados ultra-raros, para além de com toda a certeza não existir, uma colecção completa deste jornal. Pessoalmente conheço apenas a colecção incompleta e bastante esparsa do Sr. José Manuel Bivar, muito possivelmente a única que subsiste deste título.
Entre os seus colaboradores mais assíduos merecem especial menção os nomes de Brotas Cardoso, desenhador de obras públicas, o veterinário Anes Baganha, o secretário-geral do governo civil Dr. Álvaro de Mendonça e o Dr. António Frederico Gomes, todos há muito desaparecidos. Possuía ainda nas suas fileiras três jornalistas remunerados: Silva Pontes, natural de Faro, José Bernardo de Aragão Teixeira, de Loulé, e o correspondente em Lisboa, António Eduardo de Macedo Ortigão, igualmente nascido em Faro, oficial do Real Arquivo da Torre do Tombo, 1.º conservador da Biblioteca Nacional, director da secretaria geral das Bibliotecas e Arquivos Nacionais, colaborador de vários diários lisboetas, redactor de O Século e do Diário de Notícias, onde trabalhou até ao seu falecimento ocorrido em 31-1-1931. De salientar que quando Macedo Ortigão vinha passar as suas férias à terra natal encarregava-se de escrever, quase na totalidade, O Progresso do Algarve, a ele se ficando a dever acesas polémicas com o seu adversário regenerador o Districto de Faro, dirigido pelo brilhante jornalista e agente consular António Bernardo da Cruz. Ambos os periódicos constituem ao presente das fontes mais importantes para o estudo da História Contemporânea do Algarve, havendo apenas a lamentar a falta das suas colecções completas. Vem a talhe de foice acrescentar que do Districto de Faro a mais completa colecção que se conhece comprei-a eu recentemente aos herdeiros do comendador Ferreira Neto.
Possuía tipografia própria adquirida ao Defesa do Povo, que se publicou em Silves de 15 de Setembro de 1878 até 8 de Dezembro de 1880, a qual já havia pertencido ao Correio do Meio Dia (fundado em 24-5-1874 e extinto a 13-1-1878) e ao Jornal dos Artistas (11-11-1875 a 20-7-1877), ambos periódicos de Portimão. Teve a Redacção e Administração sediada na Rua de S. Pedro n.º 5 e era propriedade do Centro Progressista de Faro, designação que manteve no cabeçalho até à já referida cisão do partido. Apresentava-se com um formato de 4 pp., no tamanho de 320x435 mm., sendo a sua mancha tipográfica de 285x410 mm, diminuindo na fase diária as suas proporções para 260x380 mm., com mancha de 230x325 mm. Tinha cinco colunas como bissemanário e quatro como diário, sempre impresso a preto e raramente ilustrado. O papel era fraco, a paginação corrida e a impressão era francamente medíocre. Os caracteres tipográficos apresentavam-se gastos e o título, impresso a negro, tinha a dimensão de 230x50 mm., inserindo na sua fase diária o subtítulo: «Folha diária do Partido Progressista». Custava avulso 30 réis e a assinatura trimestral era de 750 rs., passando na sua fase diária a 10 rs. Avulso, mantendo o preço anterior da assinatura. A publicidade “de interesse particular” pagava-se a 40 rs/linha e os anúncios vulgares a 20 rs/ /linha, cabendo aos assinantes um desconto de 25%, sendo por isso a última página integralmente preenchida pelos anunciantes do comércio e indústrias locais. A inventariação e sobrepesagem dessa publicidade no contexto socioeconómico da sociedade farense, constitui trabalho de muito interesse para o estudo das potencialidades da região nos finais do século passado. No rodapé da 1.ª página publicava-se sempre um folhetim, e de entre os muitos que ali se deram a público permita-se-me destacar «Uma Canção Romântica» de Pinheiro Chagas e «Os Piratas» de Frederico Marryat, por serem aqueles que mais aceitação tiveram entre os leitores farenses.
Manteve o Progresso do Algarve, como já se disse, demoradas campanhas e acesas polémicas contra o Districto de Faro, nomeadamente acerca da tisana Assis, que se dizia ser uma ligeira alteração do célebre “Chá Zithman”, especialmente indicado na cura da sífilis, facto que atraiu a Faro largos milhares de doentes, que enriqueceram os seus promotores e o comércio local. Nessa época custava cada tisana 3000 réis e o tratamento prolongava-se por cerca de um mês. Os doentes acorriam ao Algarve através de carreiras marítimas oriundas praticamente de todo o mundo ficando, por isso, a cidade de Faro conhecida pela “Meca dos sifilíticos”. O negócio remonta ao aparecimento no Algarve do Dr. Constantino Cúmano, italiano refugiado de perseguições políticas, que durante a sua estadia em Faro doara ao seu confidente e fiel amigo José Maria Assis o segredo de uma tisana que curava o flagelo da sífilis. Convém, já agora, lembrar que o Assis embora fosse barbeiro de profissão era um homem culto, de boa índole e a sua arte em nada se assemelhava à dos seus actuais colegas de profissão. No fundo ele era um misto de enfermeiro, veterinário, farmacêutico, dentista, etc... Portanto, o facto de ser “barbeiro” não queria dizer que se dedicasse propriamente a desfazer barbas e a cortar cabelo.
Quando o médico italiano regressou à sua pátria ficou o Assis na posse de um florescente negócio, que o tornou conhecido no país, nas colónias e até no Brasil, de onde vinham periodicamente centenas de sifilíticos, que enchiam os hotéis e pensões locais, para além da “Casa de Saúde” na Rua Infante D. Henrique, onde hoje se encontram os serviços da Caixa de Previdência.
Foi igualmente feroz a campanha encetada em 1885 contra Dr. António Centeno, na altura Governador Civil do Algarve e, mais tarde, presidente do conselho de administração das Companhias Reunidas Gás e Electricidade, a quem o jornal chamava o “Sem tino”. A dignidade daquele ilustre advogado e publicista, fundador do Correio Português, proprietário do Diário Popular e presidente da Associação Industrial Portuguesa, foi por várias vezes achincalhada de uma forma absolutamente injusta e escusada, até porque também ele militava nas fileiras do Partido Progressista.
Para terminar, resta-me salientar a importância deste efémero diário farense, o segundo que se publicou nesta província, para o estudo dos partidos monárquicos no Algarve e para a História da Imprensa Progressista em Portugal, sem falar já no seu primordial interesse para a realização de uma futura monografia da cidade de Faro.

domingo, 16 de agosto de 2009

Reis d’Andrade, o jornalista da Branca Noiva do Mar


J. C. Vilhena Mesquita

Sempre que me lembro da vetusta aldeia da Fuzeta ou se por mero acaso os meus caminhos se cruzam com aquela praia de pescadores, ocorre-me logo à lembrança a memória do meu saudoso amigo Reis d’Andrade, que sempre carinhosa e fraternalmente tratei por João de Deus. Era um espírito de eleição e de rara camaradagem, sempre pronto a colaborar em iniciativas de carácter jornalístico, cultural e até desportivo, desde que nelas saísse em relevo a sua “Branca Noiva do Mar”, epíteto por si criado para designar a sua aldeia natal da Fuzeta. Receando que a lembrança da sua memória se vá esvanecendo no coração dos seus conterrâneos, e temendo que os mais jovens ignorem a sua projecção no actual panorama da cultura algarvia, julguei que seria de toda a justiça trazer a estas colunas um breve escorço da sua vida e da sua obra literária.
João de Deus dos Reis Andrade, de seu nome completo, nasceu na aldeia piscatória da Fuzeta a 26-5-1932 e faleceu no Hospital de Faro a 15-3-1998, com 65 anos de idade. Foi poeta, dramaturgo e notável jornalista, sendo, acima de tudo, um homem culto e de grande inteligência, que ao longo da vida se tornou numa respeitada figura da cultura olhanense, cedo evidenciando múltiplos recursos intelectuais, não só como homem de letras, mas também como artista plástico, músico e até como filatelista, já que possuía uma colecção de selos de incontestável valor e interesse cultural. Viveu praticamente a vida inteira na sua Fuzeta natal, onde desempenhou durante décadas as funções de chefe da Secção das Lotas e Vendagem de Peixe. Como no exercício dessas funções sempre cuidasse de zelar pelos interesses dos seus conterrâneos, e como era muito dedicado às coisas da cultura e do desporto local, depressa se tornou no fuzetense mais conhecido no Algarve.
Na verdade, Reis d’Andrade foi na aldeia da Fuzeta um autêntico animador cultural, incentivando sucessivas gerações de jovens a experimentarem o fascínio da Arte de Talma. Ensaiou várias peças de autores nacionais, mas também se lhe ficaram a dever, como dramaturgo de incontestável talento, a autoria de dezenas de peças, que escreveu propositadamente para o Grupo Artístico Fuzetense, uma agremiação de amadores que ele próprio fundou. Por mera curiosidade lembramos aqui algumas das suas peças de maior sucesso que foram representadas por todo o Algarve, cujos títulos passamos a citar, numa sequência que não corresponde à ordem cronológica da sua apresentação pública: A Lenda das Duas Cidades, Histórias da Minha Aldeia, A Branca Noiva do Mar, Os Filhos do Ti Leandro, Alguidares de Barro, Quem Conta um Conto..., Cégada no Carnaval, Quem Matou Juanita Banana, A Grande Excursão, A Grande Farra, As Surdas, As Criadinhas, Os Cravos Vermelhos, etc. Destas só a última foi impressa em livro, talvez por ser dedicada ao «25 de Abril», e, por isso, manter um interesse histórico de âmbito nacional. As suas peças revestiam-se de grande influência regionalista, não só na inspiração temática, como até na caracterização das personagens, nos seus dizeres locais e nas suas indumentárias particulares. Desse modo facilmente o público conseguia distinguir um alentejano, um lisboeta ou um turista estrangeiro, como também entre os algarvios se destrinçava pelo sotaque um olhanense dum farense, ou um lacobrigense dum vilarealense.
A sua paixão pela música levou-o a organizar e a compor as marchas que por ocasião dos Santos Populares se realizavam na Fuzeta, reavivando festejos que haviam caído em desuso. Mas também criou novas festas, como as que realizou em honra de Nossa Senhora do Carmo, para satisfação do fervoroso culto dos marítimos fuzetenses. Nos domínios do profano, acresce dizer que o seu talento de compositor revelou-se não só na música ligeira, como também nas canções populares com que recriou as velhas “estudantinas” que percorriam as artérias de Olhão e de Faro. Curiosamente era um dos mais antigos precursores da música Jazz no Algarve, chegando mesmo a tocar em bares ou em privado com grupos de jovens admiradores das novas correntes musicais, que nos anos cinquenta e sessenta chegavam da América. Era, aliás, dos poucos que na sua aldeia possuía a carteira de músico profissional.
Como artista plástico Reis d’Andrade nunca tratou de prestar justiça nem divulgação ao seu incontestável talento. Desenhava impecavelmente. E não raras vezes caricaturava os amigos, os políticos, os escritores, os artistas e até os jogadores do seu Benfica com um primoroso traço artístico. Existem na posse da família e dos amigos belos quadros representando cenas da faina marítima, pessoas, monumentos e até paisagens campestres. Pintava os próprios cenários para o teatro amador, cujas peças, como já dissemos, era ele mesmo que escrevia e encenava. Esta associação da escrita com o desenho, com as artes cénicas e até com a música, são raras e difíceis de conjugar num homem só, daí o seu inestimável talento e a sua invulgar polivalência intelectual.
No convívio social (sei-o bem porque tive a sorte de ter sido seu amigo) irradiava uma cativante simpatia que prendia os que com ele lidaram de perto, não só pelos seus dotes de oratória como também pelo humor com que descrevia as pessoas e as situações da vida política no Algarve ou no país. Por isso tinha amigos em todo o lado, mesmo até no estrangeiro, mercê da amabilidade com que tratava os turistas que passavam pela praia da Fuzeta. Havia turistas que lhe escreviam a agradecer a afabilidade do seu convívio ou as ajudas prestadas durante as férias no Algarve.
Como escritor possuía uma veia sarcástica de inspiração queirosiana, que se tornaria na sua imagem de marca, não só nas peças de teatro como também nas colunas dos jornais. O seu inconfundível humorismo lusitano deixou-o bem patente na rubrica “O Alto da Torre” que assinou de parceria com o jornalista João Leal no «Jornal do Algarve», em que colaborou, quase ininterruptamente, durante quarenta anos. Nessas colunas ficaram famosas as suas crónicas, de fino recorte humorístico e de acerada crítica social, malhando nos costados da nossa secular incompetência, quer fosse política, económica, cultural, artística ou desportiva. Aliás, o Reis d‘Andrade possuía uma prodigiosa memória, na qual arquivou durante anos certos episódios e figuras típicas do nosso bacoco provincianismo, que por vezes ressuscitava com hilariantes comparações aos tempos actuais. A figura do “ti-Lopinhos” que usava nas suas crónicas jornalísticas era uma espécie de consciência crítica das nossas incapacidades, das nossas vaidades, do nosso balofo patriotismo e do nosso injustificado nacionalismo. Por outro lado, a sua “memória de elefante” servia de tira-teimas nas discussões sobre os nomes dos antigos jogadores de futebol do Olhanense ou do Farense (então do Benfica sabia o nome de todos), os resultados dos desafios, as figuras e datas históricas, as capitais dos países, os nomes de artistas de cinema e do teatro português... enfim, era uma verdadeira enciclopédia de curiosidades e do bric-à-brac do saber universal. Lembro-me até da facilidade e rapidez com que fazia as “palavras-cruzadas” publicadas nos jornais diários. Também era exímio na resolução dos quadros de xadrez, damas, “quebra-cabeças” e “charadas” que os jornais inseriam nas suas edições dominicais. A sua inteligência era não só prodigiosa como verdadeiramente relampejante.
Os créditos jornalísticos ganhou-os ao serviço do «Século», na qualidade de correspondente e colaborador eventual, muito anos antes de se tornar conhecido como cronista do «Jornal do Algarve». Em todo o caso não se cingiu apenas a esse semanário vilarealense, pois que graciosa e desinteressadamente dispersou a sua colaboração por outros órgãos locais, nomeadamente pelo «Correio do Sul», «O Algarve», «Voz de Olhão», «O Olhanense», «O Algarve Desportivo», etc. Além disso, trabalhou na Rádio como jornalista e locutor, fazendo ouvir a sua bela voz de tenor em todo o Algarve.
Não podemos esquecer também que se lhe ficou a dever a organização dos Jogos Florais da Fuzeta, que anualmente ainda se realizam pela mão de Maria José Fraqueza, no encerramento dos quais nunca deixou de prestar homenagem à memória do seu fundador e dilecto conterrâneo.
Como filatelista fez exposições de grande valor e insofismável mérito nacional, deixando uma invejável colecção de muitos milhares de selos para ser prosseguida pelos seus herdeiros. Ao espírito irrequieto e criativo de Reis d’Andrade deve a freguesia da Fuzeta muito do seu desenvolvimento cultural, sobretudo por ter resgatado do anonimato uma simples praia de pescadores que epitetou de «Branca Noiva do Mar», numa feliz alusão à paixão, aos perigos e às ilusões, que aquele humilde povo sente pelo meio físico que lhe deu o cerne.
Pouco antes de falecer, e quando já se encontrava muito doente, o seu amigo e notável homem de Letras, Ofir Chagas, com a cumplicidade da família, mandou editar, em 1997, o Auto dos Cravos Vermelhos, que constitui a mais apreciada e a mais representada das suas peças de teatro.
A Junta de Freguesia da Fuzeta preiteou a memória de Reis de Andrade numa cerimónia pública realizada a 20-6-2000 materializada no descerramento um painel azulejado com desenhos da autoria do próprio homenageado.
Como seu amigo e admirador, não posso deixar de acrescentar que o João de Deus dos Reis Andrade foi uma figura ímpar da imprensa regional e da cultura algarvia. Quem dele se abeirava ficava logo sensibilizado com a sua inimitável boa disposição, com as suas amabilidades e o seu britânico cavalheirismo, visivelmente destacado na maneira elegante de vestir, com um aristocrático papillon e um cachimbo de tabaco perfumado, que, por outro lado, lhe dava o semblante do inspector Maigret. As suas conversas quase sempre desembocavam na aldeia da Fuzeta, nas suas figuras típicas e nas histórias edificantes daquele humilde povo de pescadores. No fundo o Reis d’Andrade personificava a própria Fuzeta, porque quem conhecia a aldeia conhecia-o a ele, pois que se lhe devia na imprensa de quase todo o país a divulgação dessa mítica aldeia de heróicos bacalhoeiros.
Lembro-me a todo o instante do seu bom humor e das suas altissonantes gargalhadas que a ninguém deixavam indiferente. Ao seu lado reinava a boa disposição e a amizade, porque sabia cativar e conservar os amigos, nunca deixando que entre si se interpusesse a maledicência, a intriga, a hipocrisia, o cinismo e o ódio. Não tinha inimigos porque amava a vida e à sua volta fazia todos felizes com ditos sarcásticos, anedotas hilariantes, divertidas cançonetas, imitações burlescas, sonoridades cómicas, enfim... reunia uma infinidade de recursos e aptidões para provocar a alegria e a boa disposição.
Nunca ouvi da boca do Reis d’Andrade uma palavra em desabono de alguém. E neste Algarve, onde campeia a inveja, a hipocrisia, a calúnia e a maledicência, raros eram os que tinham a ousadia de falar mal dele. E se alguém lhe levava ao conhecimento esse prato de fel, recebia em troca bem-humoradas palavras que deixavam as orelhas a arder, tanto de quem as pronunciara como de quem lhas trouxera. Até nisso demonstrava que era um homem raro, incapaz de guardar rancor a quem quer que fosse.
Por fim, cumpre-me louvar o amor e companheirismo que lhe dedicava a sua querida esposa, D. Maria José Marques, que sempre o acompanhou, nos bons e nos maus momentos, também ela uma mulher alegre, de bom feitio e muito bem disposta. À sua paixão de esposa, e ao amor dos seus três filhos, se ficou devendo em 2002 a edição da obra Crónicas do alto da Torre, uma colectânea de temática fuzetense, seleccionada entre as várias centenas de crónicas que sob a designação em epígrafe publicou entre 1956 e 1992 no semanário «Jornal do Algarve», fundado em Vila Real de St.º António pelo seu amigo José Barão, que foi nos anos cinquenta um dos mais prestigiados plumitivos da imprensa nacional.
Com a edição desse livro, infelizmente pouco divulgado entre nós, os seus familiares prestaram a derradeira, a mais condigna e justa homenagem a um dos mais lídimos talentos da cultura popular algarvia, que, sem os atavios estilísticos da nossa moderna intelectualidade, soube legar às gerações vindouras um testemunho realista, e bem humorado, da vivência política, da sociedade e da cultura das gentes da Fuzeta, notável alfobre de heróicos pescadores e de afoitos bacalhoeiros, que demandaram durante décadas as águas geladas da Terra Nova.
O Algarve não pode esquecer este João de Deus, que por ter sido um fiel apaixonado da sua humilde aldeia de pescadores, corre agora o risco de ficar para sempre esquecido e arredado do apreço das gerações vindouras. Este nosso apontamento é uma tentativa de contrariar a ingratidão a que todos estamos sujeitos neste paradisíaco rodapé de trinta léguas.

sábado, 15 de agosto de 2009

Aljezur, um oásis no turismo algarvio


José Carlos Vilhena Mesquita

Quando há dias relia o Pão Incerto, fabuloso livro de Assis Esperança, cujo cenário narrativo decorre entre os frescos campos e os vergéis pomares da vila de Alfamar, uma láctea cascata de campestres moradias escorrendo pela vertente soalheira de um castelo altaneiro, lembrei-me da vila de Aljezur e de toda a sua envolvência paisagística, cujos reflexos matinais revelam timbres diamantinos de rara e valiosa jóia, encastoada nas faldas da serra algarvia, desaguando ténue e serenamente nas águas cristalinas da costa vicentina.
No romance de Assis Esperança, publicado em 1964, a vila de Alfamar é, claramente, a actual Aljezur, descrita como uma terra de gente sofredora cujo magro sustento granjeado na paludosa safra do arroz, e agravado pelas constantes crises de trabalho, davam origem à migração dos serrenhos algarvios para a extenuante monda das férteis searas do Alentejo. Os laços de dependência criados ao longo dos tempos fizeram do camponês um servo, uma força de trabalho submissa, desprovida de ambições e sem projectos de futuro. A vida desses pobres aldeões, vivia-se no imediato da sobrevivência, sem o amanhã da esperança.
Mas os tempos, ficcionadamente romanescos do Pão Incerto, foram-se alterando para novas realidades e diferentes quadros socioeconómicos, despertando a consciência dos trabalhadores rurais e politizando as novas gerações. Os resultados surgiram de forma surpreendente nas eleições de 1958 quando os aljezurenses votaram maioritariamente no general Humberto Delgado. A partir desse gesto de coragem cívica, a vila de Aljezur deixara de ser a Alfamar de Assis Esperança. Foi como se nesse momento adquirisse a sua carta de alforria. O serrenho transformou-se paulatinamente em próspero agricultor, ou em pequeno empresário agrícola, procurando nas férteis várzeas de Aljezur e de Odeceixe novas e mais rendáveis produções, passando do arroz para o amendoim, e hoje para a batata-doce, numa clara demonstração da sua inteligência mercantil, da sua visão e capacidade de trabalho, do seu sentido de adaptação a novos desafios.

A dedicação e o sacrifício de autarcas modelares

O povo de Aljezur (a par do de Alcoutim), foi sempre o mais esquecido do Algarve, diria até que o mais marginalizado pelos poderes político-administrativos de Faro e de Lisboa. Durante décadas consecutivas ignoraram a existência daquele povo, privando-o das estruturas básicas de desenvolvimento social, como por exemplo dum cine-teatro, uma biblioteca, uma escola secundária, um hospital, um tribunal, e toda uma panóplia de meios de progresso cultural, aperfeiçoamento cívico e de expansão económica, que não facilitaram o crescimento daquele belo concelho ao ritmo dos seus congéneres do litoral.
Mas nesta última década, a autarquia aljezurense tem dado provas de grande sacrifício e aplicação ao trabalho, conseguindo erigir novos equipamentos de apoio social, cultural e desportivo, protegendo os idosos e os doentes, promovendo as iniciativas dos jovens e incentivando os munícipes a acreditarem num futuro risonho para o seu concelho. Nos últimos anos, a autarquia promoveu a construção de lares e casas de repouso para os idosos mais pobres, construiu bairros sociais nas encostas soalheiras (de belo efeito estético, e não os acostumados pombais humanos), apoiou a criação de equipamentos turísticos, subsidiou as associações locais de promoção cultural, recreativa e desportiva, construiu uma escola secundária, edificou um magnífico pavilhão gimnodesportivo, abriu um arquivo histórico, uma galeria de arte, fundou cinco museus, etc., etc… Num esforço gigantesco e incomparável, os autarcas de Aljezur conseguiram acelerar o progresso do seu concelho, transformando-se num modelar exemplo de competência, dedicação e sacrifício.

A pureza ambiental é a pedra filosofal de Aljezur

Os aspectos que mais me sensibilizam quando visito Aljezur – para mim o mais belo concelho do Algarve – são sobretudo a pureza ambiental e a beleza paisagística do casario que sobe até ao castelo, por entre ruelas estreitas e sinuosas, íngremes ladeiras no ardor da cal, que nos levam, no olhar atento da calçada acutilante, para as cumeadas do seu velho castelo árabe. Lá no alto, espraiando o olhar sobre o horizonte, depara-se-nos a várzea fértil, tricotada em viçosas leiras, o prateado reflexo do rio cristalino, a ebúrnea colina da Aldeia Nova, e a entrecortada linha verde da serra… Um quadro de ímpar beleza que nos faz sentir senhores do mundo, como nos tempos dos espatários conquistadores.
A pureza ambiental é a pedra filosofal de Aljezur. Paira no ar um silêncio saudável, uma reconfortante paz natural, pendularmente desperta pelo chilrear dos pardais e pelo rumorejar das águas da ribeira, debaixo da fresca sombra e do ar perfumadamente doce das gigantescas tílias, que junto à ponte marginam a ponte de entrada na vila ribeira. No pequenino jardim junto à ponte, sente-se o afago da mão de Deus num inebriante sopro de vida… É um recanto de rara sensibilidade poética, um lugar incomparavelmente único neste Algarve de praias saturadas de gente, de trânsito congestionado, de stressante convivência humana e de florestas de betão armado que nos esmagam o olhar.

Praias paradisíacas de cristalinas águas e dourados areais

As praias de Aljezur são, pelo contrário, calmas e sossegadas, de cristalinas águas e extensos areais. São de uma beleza insofismável. Quando pela primeira vez desci à praia da Arrifana, com seu portinho de pesca embutido arrumado na falésia, fiquei com a sensação de estar num qualquer recanto paradisíaco dos Açores. Devo, aliás, acrescentar que não conheço no Algarve uma terra tão similarmente açoreana como Aljezur. Tem flagrantes analogias na arquitectura, no esplendor da cal e na humildade do casario, nas hortas emparceladas das várzeas aluviais, nos frondosos pomares, nas praias límpidas e na riqueza piscícola das suas águas, enfim até na religiosidade e nas tradições etnográficas parecem irmãs, porque são filhas da mesma cultura e da mesma exuberante e generosa Natureza.
Não vou descrever as praias do Amado, da Bordeira, da Arrifana, do Monte Clérigo e de Odeceixe, porque todas elas são de assombrosa beleza, nas suas alcantiladas encostas de negro basalto ou de purpureado grés, sobre as quais batem safirosas ondas, que se espraiam sobre o fulvo areal em leitosas torrentes de espuma. Aquelas ondas são ricas em reconstituintes naturais, de oxigénio e iodo, que tonificam os corpos dos banhistas que demandam aquelas paragens. Os grandes utentes desta costa paradisíaca têm sido os surfistas, que do mundo inteiro visitam anualmente estas praias, sobretudo as do Amado e da Bordeira, justamente colocadas entre as primeiras no ranking do surf europeu. Deixo ao leitor e hipotético visitante o prazer de descobrir as praias menos conhecidas e frequentadas, como as de Vale do Homem, Carriagem, Amoreira, Carrapateira, etc.

Gastronomia rica e variada

Os que não se deleitam com a pureza do ambiente, nem com o exotismo das praias, desprezam a beleza paisagística e a riqueza do património histórico, podem sempre deliciar-se com a magnificência gastronómica do concelho de Aljezur. Desde a praia de Odeceixe (talvez a mais bela do Algarve) até à Carrapateira, perto de Vila do Bispo, não faltam restaurantes com ementas variadas de peixes e mariscos. Sargos e robalos, são de uma incomparável qualidade e sabor. Santolas, sapateiras e percebes são os mariscos tradicionais das águas puras e cristalinas daquelas praias. Por mim sempre prefiro uma “massada de tamboril ou de cherne” na Fortaleza da Arrifana. Também gosto muito do “marisco” do Rogil (pequena freguesia a seguir a Aljezur), isto é, uma bela costeleta de novilho criado nos verdejantes prados de Maria Vinagre. É só uma sugestão...

A maior concentração museológica do país

Mas acima de tudo, o que mais me encanta em Aljezur é o facto de ser a vila portuguesa com mais museus por metro quadrado. E não se pense que são de exígua qualidade ou de banal importância. Aprecio sobretudo o museu de Arte Sacra, com riquíssimo acervo de alfaias e paramentos religiosos do séc. XVI a XVIII. O humilde Museu Antonino, na antiquíssima ermida de St.º António, possui um escasso espólio, mas é genuíno e muito fresco numa íngreme encosta soalheira, escaldante em dias de Verão, espécie de entreposto para descansar o olhar, a meio caminho entre a várzea verdejante e o Castelo roqueiro. Por fim, a Casa de José Cercas, notável artista ali nascido, infelizmente pouco conhecido, mas autor de uma valiosa obra que o visitante pode descobrir paulatinamente, mas com muito cuidado para não tropeçar esbarrar nas milhentas (rigorosamente milhentas) peças de arte que o pintor foi coleccionando ao longo da vida. A casa é demasiado pequena para tão vasta herança artística. O Museu Etnográfico e Arqueológico, nos baixos da antiga Câmara, onde também existe uma magnífica galeria de arte, os restos do antigo Pelourinho em cuja praceta se recupera o fôlego para subir à Igreja da Misericórdia, de belo pórtico renascentista, são alguns dos locais que merecem uma visita atenta. Mas se o turista não quiser perder pitada do imaginário árabe-cristão, aconselhamos uma visita à «Fonte das Mentiras» e sobretudo ao Castelo sarraceno, com suas carcomidas torres e uma antiga cisterna mourisca, em cujas imediações fica o tenebroso «degoladoiro», onde os cristãos dizimaram os resistentes oponentes, supostamente sepultados no «Monte das Cabeças».
Por fim, sugerimos uma visita à Igreja Matriz mandada construir, após os desastrosos efeitos do terramoto de 1755, pelo bispo D. Francisco Gomes do Avelar, no cume duma airosa colina do outro lado do rio. Sagrou-a aquele prelado em 10-9-1809 e deu-lhe a invocação de Nossa Senhora da Alva. Ao local chamou-lhe “Aldeia Nova”, por ser dali que nasce a alvorada e por ser ali que se respiram os melhores ares, na expectativa de atrair as novas construções habitacionais dos seus paroquianos. Mas tal não aconteceu. Só praticamente depois da década de setenta é que a aldeia cresceu e hoje é um mimo de vida e de beleza turística.

A pureza ambiental provoca assimetrias de desenvolvimento

Apesar de Aljezur ser inquestionavelmente o último paraíso do Algarve, não tenho dúvidas de que se trata de uma vila profundamente carenciada, cujos autarcas se sentem muitas vezes impotentes para satisfazerem as reivindicações dos seus munícipes, pois que sob a aura da conservação ambiental, vivem praticamente envoltos num espartilho que mal os deixa respirar. Falta muita coisa, que os autarcas gostariam de empreender. Mas acima de tudo Faltam-lhes os meios financeiros para o fazer, porque o concelho carece de rendimentos suficientes para sustentar o seu próprio desenvolvimento. Isto é muito injusto, porque nos concelhos do litoral algarvio os rendimentos fiscais provenientes da contribuição autárquica são avultadíssimos, enquanto que em Aljezur são escassíssimos, devido às constantes proibições das entidades ambientais que impedem a aprovação de resorts turísticos, novos aldeamentos, campos de golfe ou outros equipamentos congéneres. Por um lado, compreende-se, mas por outro é inaceitável que o Estado não atribua à autarquia meios de compensação financeira que lhe permitam encontrar novas vias de desenvolvimento sustentável sem ferir a pureza ambiental nem o equilíbrio paisagístico.
Quem vive em Aljezur conhece estes estrangulamentos provocados pelos gabinetes ministeriais, que muitas das vezes nem sequer conhecem aquele concelho. Para os jovens, sobretudo para os que concluem cursos superiores ou de especialização técnica, são cada vez mais escassas as perspectivas de futuro na sua terra-natal, pois que não havendo investimento nos sectores produtivos, nomeadamente no terciário, ou seja, no turismo, dificilmente haverá postos de trabalho e prosperidade económica no concelho.
Cremos que as autoridades governativas têm de ponderar devidamente este problema, sob pena de estarem a penalizar os aljezurenses por preservarem orgulhosamente uma jóia que ao invés de produzir riqueza apenas acalenta desilusões e suscita frustrações. Afinal de contas, o que parece ser uma dádiva de Deus, transforma-se numa condenação, numa grilheta a que os aljezurenses vivem acorrentados sem poderem decidir eles próprios os caminhos mais convenientes para o seu próprio desenvolvimento.
Muito mais haveria para dizer, mas fico-me por aqui, não vão os supostos ecologistas, que prezam mais a vida dum escaravelho do que a dum ser humano, sair à estacada acusando-me de querer vender o paraíso a retalho. Para esse peditório já dei, e não volto a cair nas tretas do costume.
Deixo, porém, aqui um simples conselho. Neste período de férias aventure-se no prazer da descoberta. Encontre o seu paraíso perdido na vila presépio de Aljezur ou nas praias cristalinas da costa vicentina.
Existe um outro Algarve, mais verdadeiro e puro. Vá vê-lo, estabeleça comparações, faça as suas reflexões e pondere as suas críticas. Depois grite, esbraceje, proteste, enfim faça-se ouvir. É o que eu estou a fazer agora…

Como se faz uma Recensão Crítica


José Carlos Vilhena Mesquita

Designa-se como recensão crítica o texto que emite juízos críticos de apreciação, de valorização ou de rejeição, sobre uma determinada obra escrita, quer seja livro ou ensaio. O autor da recensão é, em suma, um crítico especializado que estabelece uma apreciação criteriosa e com profundo rigor científico. Da sua análise deve resultar uma avaliação global do texto em apreço. Portanto, uma recensão é uma avaliação, e o seu autor é um crítico, especializado, experimentado e idóneo.
Vejamos agora, e em síntese, os diversos passos que devem conduzir até ao produto final, isto é, à recensão em si.
O Crítico, que passamos a designar por recensor, passo o neologismo, deve ser, tanto quanto possível, um perito na matéria em apreço ou, pelo menos, um estudioso dos assuntos em discussão.
O recensor só pode pronunciar-se ou emitir juízos críticos depois de ler atentamente a obra, dissecando o seu conteúdo nas partes mais relevantes. Nesse aspecto torna-se fundamental incluir no início da recensão um breve resumo da obra.
Todavia, uma recensão não é propriamente um resumo dos conteúdos da obra, pois que o seu objectivo principal perspectiva-se na apreciação da mesma, por forma a distinguir o seu valor científico e a motivar o interesse do leitor a quem a mesma possa vir a ser útil.
Uma recensão é um texto síntese, pelo que não deve ser longo nas suas apreciações sob pena de se tornar enfadonho e maçador. Caso contrário corre o risco de se transformar num ensaio e não numa recensão crítica. O tamanho aconselhável será de três a quatro páginas, impressas de um só lado, em Times New Roman 12 e num entrelinhado a espaço e meio. Recomenda-se que não exceda as 3500 palavras ou os 25000 caracteres, tudo dependendo do espaço público a que se destinam.
Deve notar-se que uma recensão não é um texto científico, mas deve ser rigoroso, objectivo e conciso. Não raras vezes uma recensão crítica, quando elaborada por um especialista, pode ajudar ao avanço da ciência, pois que dela se podem extrair correcções e, sobretudo, novas ideias ou sugestões para o progresso do conhecimento científico.
Resumidamente, uma recensão crítica deve abrir com um parágrafo descritivo da obra em análise, enunciando o nome do autor, o título do livro, o local da edição, a editora, o ano de edição e o número de páginas. Não esquecer de indicar o nome do tradutor quando a obra pertença a autor estrangeiro.
Seguidamente a recensão deve obedecer aos seguintes pontos e conter as indicações que passamos a enunciar:

1.º O recensor deve ler atentamente a obra em análise, do princípio ao fim, se possível sem interrupção.
Em seguida deve reiniciar a leitura da obra, um ou dois dias depois da primeira leitura, de forma pausada, ao mesmo tempo que procede à anotação das ideias basilares da mesma, assim como das afirmações que lhe pareçam geniais ou fundamentais para o alicerçamento teórico do texto em análise. Serão essas frases e citações objecto de transcrição para a relevância crítica do texto analítico da recensão.
Deve apontar as impressões críticas que lhe forem ocorrendo ao longo da leitura. No final da leitura deve apagar ou corrigir as notas que lhe pareçam confusas ou menos claras, assim como os juízos críticos que estiverem repetidos. Evitar o discurso redondo, isto é, o raciocínio que não progride de forma rectilínea e na construção objectiva do texto crítico.

2.º O recensor (depois do parágrafo descritivo do livro em análise) deve elaborar um breve resumo da obra para que o leitor da sua recensão crítica se aperceba do seu conteúdo geral. Só depois é que deve passar à análise crítica.

3.º O recensor deve definir claramente qual é o assunto fundamental da obra, subdividindo a sua análise pelos diversos conteúdos em que a mesma se decompõe. Não importa falar de todos os assuntos ou capítulos da obra (isso está contido no resumo inicial), mas apenas dos mais relevantes, isto é, daqueles que se distinguem pela sua qualidade, rigor e aprofundamento científico.

4.º O recensor deve salientar, com rigor e imparcialidade, a forma como a obra está estruturada, definindo os critérios desse ordenamento. Deve apontar as vantagens ou desvantagens de que se reveste para o leitor a formulação sequencial dos capítulos, nomeadamente se existe ou não uma perspectiva evolutiva do conhecimento científico.

5.º O recensor deve criticar a orientação ideológica do autor da obra, quando esta influencie a objectividade da mesma e prejudique a isenção ou clarividência da sua exposição teórica. Sempre que possível deve também comparar a obra com outras já anteriormente editadas no âmbito da mesma especialidade, de forma a avaliar as diferenças e os progressos evidenciados.

6.º O recensor deve salientar qual o público-alvo a atingir com a obra em análise, isto é, a quem poderá ser necessária, indispensável ou apenas útil, a sua leitura. Mas também pode apontar a que tipo de público pode a mesma vir a ser prejudicial.

Em suma, o recensor para garantir a objectividade da sua recensão terá que interrogar a obra em apreço, formulando, por exemplo as seguintes questões: Qual foi a intenção do autor ao escrever esta obra? Logrou alcançá-la? Tem qualidade científica para ser referenciada numa bibliografia da sua especialidade? Qual o seu significado, importância, carácter ou possibilidade de permanência no seio da bibliografia de recomendação pública ou universitária?

Não obstante tudo quanto ficou dito, e que consideramos imprescindível para a elaboração duma recensão crítica (tanto para a obra científica como, com as devidas alterações, para a obra literária) importa ter em linha de conta mais alguns aspectos que consideramos importantes.

a) Exactidão, Rigor e Objectividade. Isto é, a recensão deve ser exacta na forma como expõe as ideias contidas na obra. Deve ser rigorosa nos juízos críticos que tece acerca da obra em análise – o que implica da parte do recensor um forte domínio das matérias contidas nessa obra ou nesse ensaio. Quem não possuir conhecimentos básicos de Sociologia, de História, de Filosofia ou de Psicologia, dificilmente conseguirá escrever um texto expositivo com recurso a juízos críticos que assegurem a objectividade das suas afirmações, dos seus valores e das suas apreciações.

b) Imparcialidade. A crítica para ser justa tem de obedecer a esta característica, pois o crítico não pode atender nem só às virtudes, nem só aos defeitos: deve-se ter em atenção todo o conjunto da obra. Obviamente o recensor deve abster-se de todo o tipo de preconceitos, favoráveis ou desfavoráveis, em relação à temática da obra e ao autor.

c) Elegância, escrúpulos e delicadeza. São atributos do recensor educado e bem intencionado. Embora a recensão deva, na sua objectividade e isenção crítica, apontar as fragilidades, inexactidões e incongruências da obra em análise, aconselha-se a que não o faça de forma agressiva, arrogante e depreciativa. O recensor deve ser acima de tudo uma pessoa educada, elegante na escrita, escrupulosa na crítica, mas acima de tudo delicada e polida na forma como enuncia as suas discordâncias. Deve ser prudente para não atacar de forma ríspida e delegante a obra, e muito menos o autor, ainda que para isso tenha irrefutáveis fundamentos. É preferível ser-se indulgente do que demasiadamente severo. Por isso a recensão dever ser objectiva e rigorosa, alheia a quaisquer paixões ideológicas ou políticas, procedendo sempre que possível a comparações com outras obras da mesma área científica ou da mesma temática.

d) Clareza, evidência e perspicácia. O recensor deve impregnar a sua recensão de uma absoluta clareza, de forma a dar ao seu leitor uma nítida perspectiva do valor e importância da obra em análise. A falta de perspicácia e de clarividência das suas afirmações pode tornar a recensão num texto inútil. Por vezes os pruridos de elegância e delicadeza podem deixar dúvidas ao leitor e criar confusões desnecessárias.

Acima de tudo o recensor é um ser Crítico que deve pugnar pelo progresso da ciência ou da literatura, através do seu distanciamento da obra e do autor, fazendo da isenção e da objectividade a sua bandeira e o seu lema de trabalho. Basta estes dois atributos para que a sua recensão possa ser credível e respeitada.
Em suma, uma recensão crítica é uma avaliação e como tal deve ser operada com rigor e isenção, unicamente por especialistas na matéria cuja apreciação deve ser chancelada por uma instituição científica, para que a mesma possa ter credibilidade e ser objecto de referência.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Evocação do Eng.º Duarte Pacheco no encerramento das Comemorações Centenárias


José Carlos Vilhena Mesquita

Homem singular, uma estrela cintilante do salazarismo que ainda brilha na história do nosso país e na saudade do povo algarvio. Não foi propriamente um político, mas tão simplesmente um estadista activo e competente, construtor material do progresso pátrio, mas igualmente regenerador da imagem do homem público do século XX, do político da nova vaga. Essa era, por estranho que pareça e nos custe admitir, a vaga renovadora do “Estado Novo”.
Jovem, inteligente, prático e sobretudo simpático, de sorriso aberto, de palavra chã e segura. Tinha uma memória prodigiosa, fixando rostos, lugares, conversas e compromissos. Nunca faltava com a palavra dada. Era um homem sério e fiável, muito diferente da imagem deixada pelos políticos que o precederam. Fazia do seu gabinete o seu lar, sem horas para comer ou conviver com os amigos. E quando era preciso estar nas obras, fazia-o com o maior sentido de responsabilidade, mesmo que isso lhe representasse um forte incómodo. A sua postura era a do comum cidadão, tratando os engenheiros e os trabalhadores das obras com a mesma deferência e às vezes pelos seus nomes próprios. Surpreendia tudo e todos, especialmente pelo facto de não ser preciso ir ter com o ministro, já que era o ministro que ia ter com eles, analisando e discutindo o andamento das obras. Só a rotina, a inoperância ou a pura estupidez o faziam perder as estribeiras.
Por vezes enfurecia-se e levava tudo a eito, distribuindo reprovações sem olhar a quem. Rodeou-se de um “staf” de gente especializada e mais ou menos da sua geração. A todos exigia dedicação e sacrifício, a receita mestra da competência. Solicitava sempre as opiniões dos que o rodeavam e aceitava críticas às suas opiniões. Mas depois de decidir já não voltava atrás. Tinha uma personalidade de ferro. E o que mais apreciava num homem era o esforço e a lealdade. Tinha uma numerosa equipa de colaboradores, engenheiros e arquitectos, cujas relações de trabalho nem sempre eram pacíficas. Tinha pois que gerir um largo potencial de talento criativo, que muitas vezes se entrechocava gerando dissenções e conflitos a que o Ministro acorria com o tacto dum apaziguador. Por isso reagia leoninamente contra a intriga e a traição política.
Enfrentava, quando necessário, tudo e todos, desde que tivesse a certeza de estar a terçar armas pela verdade. Mas depois era ele quem sofria, porque a sua úlcera reagia dolorosamente aos efeitos da irritação nervosa obrigando-o a recorrer à sua inseparável garrafa-termo, contendo o leite que lhe servia de calmante natural. A doença agrava-se pelo stress da sua excessiva dedicação ao trabalho, causando-lhe ao mesmo tempo um certo afastamento duma vida normal e regrada. Embrenhado nos seus projectos de inveterado sonhador, esquecia-se da vida social e das elementares refeições, tornando cada vez mais insuportável a sua doença. Para agravar a situação abusava do cigarro, nunca se chegando bem a saber quantos maços fumava por dia, porque também nunca se chegou a saber quantas horas durava o seu dia de trabalho. Era um vulto de compleição superior, cujas virtudes superavam os defeitos. Tinha uma ampla visão das coisas e o conhecimento perfeito da realidade. Superioridade e indiferença à ingratidão e à crítica. Desprezo pelo que era medíocre, pelo hesitante, pelo provisório e pelo provisório, eram alguns dos atributos que marcavam a sua forte personalidade. Possuía um optimismo natural resultante da confiança que tinha em si próprio e da certeza no seu experimentado conhecimento como técnico e homem de estado.
Acima de tudo Duarte Pacheco era a imagem do salazarismo. Os seja, representava os atributos naturais em que se inspirava a filosofia política do exaustivamente propalado ressurgimento nacional. O conceito de ressurgimento, tão propagandeado na Itália de Mussolini, não era mais do que uma forma dourada de traduzir o fascismo europeu. Os atributos do homem do ressurgimento eram precisamente a dedicação à pátria e aos seus valores históricos, a preservação moral e o amor à família, o gosto pelo trabalho, a eficiência profissional, o respeito pelas hierarquias, a determinação nacionalista e a lealdade ao governo. Era nesses vectores que se inspirava o Estado Novo e a ideologia corporativista de Salazar. Falta apurar, com indefectível certeza, se Duarte Pacheco era ou não um apologista do ideário fascista e um convicto apoiante do corporativismo salazarista. Presumo, sinceramente, que era nacionalista, no sentido liberal do termo, e acima de tudo um indubitável admirador de Salazar. Tenho dúvidas que possa ser etiquetado como fascista, corporativista ou mesmo como salazarista, no sentido da estreme sujeição ao chefe. O que não tenho dúvidas é que existiam semelhanças entre ambos, não tinham vida familiar e dedicavam-se com grande sacrifício das suas vidas pessoais à causa pública. Por outro lado, fizeram-se a si próprios com parcos recursos materiais e emergiram dum completo anonimato provinciano, aureolados como homens modelados no barro da honestidade, da competência, do sacrifício e da perseverança. Mesmo discordando dos seus trajectos políticos não podemos ignorar a pujança nacional que ambos possuíam, pujança essa estribada na popularidade e num certo misticismo sebastianista.
Acima de tudo Duarte Pacheco foi um sonhador, um homem desejoso de atingir a perfeição, talvez inspirado no revolucionário espírito de reconstruir a imagem dum país em desacreditada agonia internacional, ainda que percepcionando a grandeza das suas concepções às naturais proporções económicas da pátria. Em todo o caso sempre na paradoxal ânsia de projectar para um século, rentabilizando desse modo as parcas disponibilidades financeiras dum país pobre.
Refazer, reconstruir, renovar e principalmente reinventar, foram as linhas de força do Ministério das Obras Públicas e da personalidade política de Duarte Pacheco. O volume de obras públicas, a que chamou o processo de realizações materiais, foi de tal forma extraordinário e grandioso para o país que, a par da não intervenção na guerra, cobriu o regime salazarista duma inatingível popularidade nacional e dum incomparável prestígio internacional. A verdade é que o período áureo do salazarismo correspondeu exactamente ao período de melhoramentos estruturais levados a efeito pelo ministro Duarte Pacheco. Os grandes beneficiários da esforçada obra de Duarte Pacheco foram o país e Salazar. A sua morte prejudicou ambos, embora o seu exemplo perdurasse para sempre como um paradigma que a todos cumpria imitar.

Obras no Algarve

Foi o primeiro estadista a exigir dos municípios maior responsabilização e rigor no desenvolvimento regional, assente em «Planos Gerais de Urbanização e Expansão», algo similares com os nossos Planos Directores Municipais.
Para a celeridade da sua política de “realizações materiais” criou à sua volta vários organismos públicos chefiados por pessoas da sua confiança e que despachavam directamente com ele, formando uma rede paralela na administração pública, que eram as Juntas, Comissões e Delegações que cobriam os principais sectores públicos, desde o ensino à assistência hospitalar, comunicações postais e telefones, Polícias (GNR e Guarda Fiscal) Alfândegas, Caixa Geral de Depósitos, Hidráulica Agrícola, etc. Tudo era pensado nesses organismos mas nada se decidia senão em despacho directo com o ministro. O centralismo era próprio do regime.
Para acelerar a construção das obras procedia-se a um ardiloso processo de municipalização de terrenos urbanizáveis, através de expropriações que evitassem a aquisição e especulação pelos construtores privados e a sua inflacionação pelos proprietários. O município proprietário urbano foi uma estratégia até de enriquecimento camarário.
A grande obra de Duarte Pacheco para o Algarve está na criação de infra-estruturas básicas. Nisso se acentuaria a sua permanente intervenção no Algarve. A obra mais generalizada de desenvolvimento regional foi o calcetamento de ruas estradas de acesso às grandes cidades algarvias. Mas foi sobretudo no apoio e incentivo à expropriação de terrenos urbanizáveis que mais se fez sentir a sua intervenção. Em todo o caso as Câmaras não tinham na sua grande maioria capacidades financeiras para custear essas expropriações, o que por vezes inviabilizou a realização de muitas obras. Estão neste caso a maioria dos municípios algarvios, exceptualizando-se talvez o de Faro, que pela sua grandeza e poder demográfico suportava melhor os investimentos.
De qualquer modo verificamos que a gestão dos melhoramentos rurais e desenvolvimento urbano das vilas algarvias fazia-se de uma forma pontual, cifrando-se em apoios financeiros do MOP para a realização de restauros em edifícios públicos, nas estradas, nos cemitérios, fontanários, pontões e encanamento de ribeiras, construção de mercados de abastecimento local, pavimentação e calcetamento de estradas e arruamentos, abertura de caminhos rurais, recuperação de edifícios históricos (sobretudo Igrejas, castelos, fortes e fortalezas) e públicos como Câmaras Municipais, escolas primárias e Comerciais, Liceus, bibliotecas, etc; reparação dos hospitais das misericórdias, construção de asilos, saneamento básico, abastecimento de água e luz eléctrica, aterros sanitários, enxugamento de pântanos e terrenos lodosos, etc.
Entre essas obras merecem destaque a abertura de novos furos artesianos e a reformulação do abastecimento público de água à cidade de Faro.
A Electrificação urbana das principais cidades algarvias, integradas no Plano Geral de Electrificação do País, através da rede pública, criando um monopólio de exploração ainda hoje vigente.
O melhoramento das vias de acesso ao Algarve e suas principais vias de comunicação, integrando-as no Plano Rodoviário Nacional. Merece destaque, pelas suas dificuldades de execução e altos custos, a estrada de ligação de Alcoutim com o Alentejo e Algarve; também foram elevados os custos de execução da estrada de Monchique para a Fóia, mandada construir pelo próprio Eng.º Duarte Pacheco que por mais de uma vez veio pessoalmente inspeccionar o andamento das obras.
Bairros Económicos, destinados a alojarem famílias de baixos rendimentos, construídos em Portimão, Olhão, Fuseta, Faro, Loulé, etc.
Equipamentos turísticos, nomeadamente a Pousada de São Brás de Alportel, cujo local escolheu pessoalmente. O Hotel de Sagres, a Pousada da Ria em Faro, etc. Patrocinou a publicação de material de propaganda em colaboração com a SPN de António Ferro. Tratou pessoalmente do Plano de Valorização da Praia da Rocha e sugeriu a construção da estrada Oceano, que ligaria a cidade de Faro à praia da Ilha.
Equipamentos portuários, nomeadamente em Alcoutim, Portimão, Vila Real de St.º António e no tão propalado porto de Faro-Olhão.
Quartel da Guarda Republicana de Tavira, Centro de Saúde de Loulé, estação de Telégrafo Postal de Loulé, Mercado Municipal de Faro, etc.
Liceu de Faro, cujo local no cimo da Av. de St.º António, e não na zona de S. Luís, foi por ele escolhido, inclusivamente com as proporções ditas exageradas para a época. Em conversa com o Presidente da Câmara de Faro, o Eng.º Duarte Pacheco teria afirmado: “Aqui sim, fica bem o edifício do Liceu, em remate desta avenida que será urbanizada. Muito ar, muita luz e paisagem grande. Um Liceu para o futuro.”
Mas de todas as obras a mais importante ou talvez a mais mediática terá sido as Comemorações Centenárias do Mundo Português, efectuadas em 1940, nas quais se integrou o Algarve através de uma majestosa exposição realizada no Largo de São Francisco em Faro, onde estiveram representadas todas as actividades económicas e industriais da região, assim como os municípios algarvios. Estas comemorações estenderam-se a Lagos e a Sagres com várias manifestações culturais e alguns melhoramentos locais. O Comissário Geral da Exposição foi o pintor Carlos Porfírio, sendo presidente da Comissão Executiva Nacional o Dr. Júlio Dantas, cabendo ao Eng.º Duarte Pacheco a honra de inaugurar a exposição e descerrar o monumento ao Bispo D. Francisco Gomes do Avelar em 14-6-1940.
Se mais não fez pelo Algarve foi porque de facto a capacidade de endividamento dos municípios algarvios, era diminuto para fazer face aos custos resultantes das expropriações de terrenos destinados à implantação dos chamados “melhoramentos materiais”. Essa incapacidade financeira derivava dos baixos rendimentos das próprias edilidades. Isso levaria, inclusivamente, o Eng.º Duarte Pacheco ao seguinte desabafo publicado na imprensa da época: “Queixam-se os Algarvios de que faço pouco pelo Algarve. O certo é que os algarvios pedem pouco, talvez porque as Câmaras não podem sustentar maiores encargos, ao contrário de muitas Câmaras de outras províncias.”