segunda-feira, 10 de agosto de 2009

No Centenário de Marcelo Caetano - Salazar e Caetano, dois cérebros para um só Fascismo


José Carlos Vilhena Mesquita

Não passou despercebido à opinião pública o primeiro centenário do nascimento do Professor Marcello Caetano, figura proeminente do nacionalismo corporativista e do «Estado Novo», designação eufemística do fascismo português. A aliança paternalista dos poderes político e religioso, foi ardilosamente usada para escamotear a ditadura que durante meio século subjugou o nosso povo, impedindo o seu desenvolvimento económico, o seu progresso sociocultural e a sua integração no espaço comunitário da Europa democrática. Não há desculpa nem mitigação possível para esta triste realidade: Portugal foi um país fascista.
Por mais que tentemos dourar os conceitos, e perdoar aos intervenientes do regime a sua mediação e conivência com as atrocidades cometidas nas cadeias políticas, principalmente no campo do Tarrafal, a verdade é que jamais poderemos esquecer que entre 1926 e 1974, vivemos debaixo de uma ditadura, anti-democrática, anti-partidária e anti-liberal, pese embora a abissal distância que a separava da desumana barbárie perpetrada pelas tiranias nazi-fascistas, contra as quais eclodiu a II Guerra Mundial.
As raízes do regime ditatorial emanaram das casernas militares em 28-5-1926, pela mão de um triunvirato marcial, no seio do qual se estranhava a presença do algarvio, Mendes Cabeçadas – obreiro do “5 de Outubro” e sincero admirador da democracia, sistema político em que aliás se consubstanciava a República – pondo cobro a uma certa anarquia governativa em que se deixara resvalar o novo regime. Nessa altura, emergiu na cena política aquele que viria a tornar-se na eminência parda do regime, um conceituado professor de Finanças na Universidade de Coimbra, de seu nome António de Oliveira Salazar, católico fervoroso, acérrimo contestatário da democracia, dos partidos políticos e das liberdades cívicas. Dois anos depois aceitaria a pasta da Economia por insistência do eng.º Duarte Pacheco, um algarvio de grande talento e honestidade que serviu o regime em nome dos altos desígnios da pátria, cuja eficiência e dedicação ao trabalho acabaria por transformá-lo na figura emblemática do salazarismo.
A ditadura e o fascismo português tiveram um só rosto: Oliveira Salazar. Todavia, foram os que o serviram e o bajularam como salvador da pátria, os verdadeiros obreiros do fascismo. No séquito dos fiéis áulicos do regime, na montra dos favoritos da ditadura, no pedestal dos predestinados e iluminados validos do “Pai da Pátria”, figurava em primeiro plano o Professor Doutor Marcelo José das Neves Alves Caetano, que aos 16 anos se matriculara em Direito, aos 21 estava licenciado e aos 25 doutorado. Era o que hoje se considera um sobredotado, um génio do Direito, a quem o regime teve a sorte de enfeitiçar.

A emergência política de Salazar

Antes de chegar ao poder, Salazar, do alto da sua cátedra coimbrã, publicava nos órgãos da imprensa católica, verdadeiras catilinárias contra o despesismo do Estado e o regabofe dos partidos republicanos, que paulatinamente iam destruindo a pátria. O seu pensamento, bem estruturado e esclarecido, consonante ao seu estatuto professoral, assim como as críticas dirigidas à irresponsabilidade governativa dos dirigentes republicanos, tornara-se notada nos areópagos da conspiração política, sobretudo no seio da oposição monárquica. Salazar emergia na opinião pública como um homem sério e competente, que desprezava a democracia e a consequente partidocracia, sugerindo que a salvação da pátria teria de ser restabelecida através de uma política de forte contenção administrativa. Quando o país parecia mergulhado na bancarrota, Salazar foi chamado a sobraçar a pasta das Finanças, tornando-se a breve trecho no salvador da pátria, não só pelos seus equilibrados Orçamentos de Estado como também pelo facto de ter evitado a entrada de Portugal na II Guerra Mundial. A organização de uma poderosa máquina de propaganda política – sobretudo após a promulgação da Constituição de 1933 que pôs fim à Ditadura Militar e proclamou o “Estado Novo” – tanto a nível interno como externo, liderada por António Ferro, fizeram de Salazar um modelar homem de Estado, impoluto, honrado e honesto, que tudo sacrificara aos supremos desígnios da pátria. Após o conflito bélico, assistiu-se à reconstrução da Europa, ao desenvolvimento da via socialista e ao nascimento da chamada Guerra-Fria. Por razões geo-estratégicas de até de contrabalanço das influências políticas na Europa, a Inglaterra como potência dominante optou pelo mal menor, garantindo a manutenção do fascismo ibérico.

Salazar e Caetano – diferenças e similaridades.

Entre Salazar e Caetano existiam pontos de encontro a nível intelectual, mas era no paralelo político que mais se aproximavam. Ambos eram estruturalmente autocratas, adeptos de um Estado forte, centralizado na absoluta autoridade do Chefe. A forma como ambos expressavam o seu pensamento político era visceralmente fascista. Julgo que Caetano na juventude, e sobretudo no período da sua afirmação política, mostrava-se mais convictamente fascista do que Salazar. Começou por dirigir a revista panfletária «Ordem Nova», que se identificava na capa como: “contra-revolucionária, reaccionária, católica, apostólica e romana, monárquica, intolerante e intransigente, insolidária com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais das letras das artes e da imprensa”. O conteúdo da mesma era nitidamente de inspiração fascista. Como se isso não bastasse, Marcelo fazia discursos impulsivos e alarmistas acerca do novo xadrez político europeu. Inclinava-se favoravelmente para o fascismo italiano, imitando a pose de Mussolini, mas evitava a gesticulação espalhafatosa e ameaçadora dos ditadores militaristas, ainda que gostasse de usar farda e de assumir uma postura marcial quando foi dirigente nacional da Mocidade Portuguesa. Hipocritamente dizia que não gostava de ver as crianças fardadas. Por isso transformou os nossos “lusitos” numa imitação barata dos “balilas” italianos.
A maior similitude entre Salazar e Caetano estabelecia-se nas origens académicas, porque ambos fizeram da cátedra universitária o seu trampolim político. Ainda que especializados em ciências diferentes – um na Economia/Finanças e o outro no Direito – o certo é que eram duas áreas fundamentais e complementares na administração pública. Por isso, sentiam-se predestinados e imprescindíveis para o competente exercício do poder. Salazar na concepção económica, para equilibrar as contas públicas, e Caetano na concepção das leis, para dar consistência e credibilidade à organização política do Estado.
Eram ambos soberbos e de temperamentos impositivos – como era apanágio das autoridades académicas – mas divergiam na plasticidade mental e na forma como abordavam as questões mais prementes, sobretudo na concepção política das relações internacionais.

Características de Salazar

Salazar era contido nas palavras, muito ardiloso no tratamento social e nas relações políticas, tendo como defesa natural a desconfiança. Para ele a vida era um jogo de interesses e de ganâncias mesquinhas. Apresentava-se aos olhos do público como o anti-político, enfadado com a governação, desejando servir sem servir-se, sacrificando a sua carreira e os seus próprios interesses em benefício da causa pública. Foi incensado como um exemplo para toda a nação, submetido à razão do bem comum e encarando o poder com espírito de missão. Era socialmente um solitário, com fortes indícios de misoginia. Tinha uma personalidade forte, mas evidenciava uma certa tacanhez na apreciação dos prazeres da vida quotidiana, refutando luxos e confortos por lhe parecerem ofensivos à pobreza em que vivia a maioria da nação. Em muitas das suas atitudes parecia apologista dum franciscanismo bacoco e démodé. Vivia frugalmente por assim ter sido educado desde tenra idade, era poupado e avarento como todos os rurais. Acima de tudo, Salazar era um rural, intrinsecamente um homem do campo e do interior agrícola, que simpatizava com a inocência e submissão do camponês. Por isso, nunca se integrou no espírito urbano ou na convivência cosmopolita, nem adquiriu a consciência citadina. Desconfiava dos burgueses e detestava os finórios da vida fácil. Nunca deixou de ser um seminarista, ascético e recatado, ferido de amores platónicos ou inconcebidos, que o tempo se encarregou de transformar num velho misógino. Em suma, tinha esgares de beatitude e mentalidade de sacristão numa paróquia de abrangência nacional.

Características de Caetano

Ao invés, Caetano era um homem garboso, alto e elegante. Tinha a pose de um galã, de sorriso simpático e afáveis palavras, não regateando elogios nem galanteios quando necessários. Porém, não se dava a confianças nem a relações fáceis. Consciente das suas raras qualidades intelectuais – era seguramente um sobredotado – investiu tudo na sua carreira académica, doutorando-se em Direito com apenas 25 anos de idade.
Era, porém, muito impulsivo, autoritário, exigente e perfeccionista. Media os outros pelo seu próprio estro, do que resultava quase sempre uma apreciação desnivelada. Por outro lado, era muito ambicioso e congeminava projectos pessoais de poder, fazendo alianças com grupos de sombra e criando os seus próprios fâmulos, um pouco à imagem do que lhe era peculiar no ambiente universitário.
Como tinha consciência do seu valor intelectual e sobretudo da sua fidelização aos valores do fascismo, achava que o regime, ou seja, Salazar e a sua entourage, deveriam promovê-lo aos supremos areópagos do poder, o que até esteve quase a concretizar-se. Ainda assim, foi Ministro das Colónias, Presidente da Câmara Corporativa e Ministro da Presidência. Mas queria mais. E se não foi mais longe, e se em todos esses lugares não se demorou muito, foi porque sobre ele impediam fortes desconfianças entre o séquito dos ultramontanos que rodeavam Salazar.
Apesar de Caetano ter sido católico praticante, foi com o decorrer dos anos perdendo a fé, até se tornar intrinsecamente agnóstico. Nunca o revelou em público, a não ser já no exílio e apenas aos seus amigos mais próximos. Todavia, como político e homem de Estado conservou sempre a conveniente postura de católico praticante. Julgo que a Igreja, apercebendo-se de alguma incongruência, terá vetado as suas ambições para se assumir como delfim do Chefe. Essas contrariedades não foram raras, porque esteve quase sempre a um passo do Olimpo. E sempre que Caetano não alcançava a satisfação dos seus interesses queixava-se das intrigas palacianas, apontando responsabilidades a João Lumbrales, a Cancela de Abreu e sobretudo ao coronel Santos Costa, ministro da Guerra e braço direito de Salazar.
A impulsividade de Caetano levou-o a proferir nos seus discursos algumas afirmações de caíram mal no caudatário salazarista, fazendo pender sobre a sua lealdade certas desconfianças. Cientes das suas qualidades e dos seus méritos académicos, mas receosos das desmedidas ambições, os prosélitos do regime trataram de o afastar do séquito do Chefe, deixando-lhe como única escapatória o feudo universitário, a que se dedicaria praticamente a vida inteira, à excepção da famigerada “Primavera Marcelista” que não passou de um embuste político e de uma oportunidade perdida. Curiosamente, sempre que se sentia injustiçado refugiava-se em deprimentes silêncios, queixando-se de deslealdades e traições, procurando remir as suas próprias culpas na incompetência dos seus servidores. Foi assim em 1972, quando perdeu o apoio da “Ala Liberal”, e foi assim após o “25 de Abril”, quando, no seu livro Depoimento, tentou justificar o falhanço da sua governação política através da insolubilidade da questão colonial. Na sua concepção política, o fim da guerra colonial só seria aceitável no quadro de uma derrota militar a negociar com os movimentos de libertação. A solução teria de ser militar e não política, ainda que aos políticos coubessem depois as negociações de entrega dos territórios. Esta solução era inaceitável para as altas patentes por se recusarem a arcar com o ónus duma derrota militar.

O desencontro com a História

Marcelo Caetano com o decorrer dos anos aprendeu a comedir-se nas atitudes e nas palavras. Digamos que poliu-se (ou poluiu-se!) com a proverbial patine dos políticos. Isto é, tornou-se astucioso e hábil nas relações com o poder, adulando as eminências do regime, como Albino dos Reis, Trigo de Negreiros e sobretudo Pedro Teotónio Pereira, que foi quem sempre manteve as delfiníticas pretensões de Marcelo Caetano no sentido de vir a suceder a Salazar. Para satisfazer as suas aspirações, conquistou a confiança de alguns homens do poder que se transformariam em seus fiéis sequazes, como Moreira Baptista, Duarte do Amaral, Silva Cunha, Elmano Alves e Andrade e Silva, insinuando-se também junto dos possíveis candidatos à sucessão do Chefe, como Franco Nogueira, Antunes Varela e Adriano Moreira.
Quando finalmente Salazar “caiu da cadeira” os ultramontanos do decadente fascismo português não conseguiram evitar que o “Grupo da Choupana” lograsse convencer Américo Tomás a nomear como sucessor do “Pai da Pátria” o seu eterno delfim, Marcelo Caetano, cujas cãs se haviam branqueado com as perfídias cortesãs que lhe arruinaram uma precoce carreira política.
Caetano aprendera a lição. Com o tempo tornara-se político antes de o ser. Assimilara a arte de ser político, ou seja, fez-se generoso nos compromissos e ardiloso nas alianças, tentando perceber atempadamente os inconfessáveis interesses alheios. Quando chegou ao poder nomeou os amigos e os informadores para as cadeiras governativas. Depois despiu a velha capa de fascista, que vestira na juventude, camuflando as suas ideias autocráticas com ilusórias simpatias liberais e supostas tolerâncias democráticas. Para se lantejoular com o brilho da indulgência política e da liberdade democrática, chamou do exílio o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que enfrentara Salazar com uma inusitada coragem contra a desigualdade social, clamando protecção para os desvalidos e desempregados, objectando a guerra colonial e a falta de liberdade, assumindo-se como um verdadeiro defensor da mensagem de Deus, fazendo corar de vergonha as supremas autoridades da Igreja. Também amnistiou o exílio do Dr. Mário Soares, sabendo porém que jamais o conseguiria atrair para as fileiras da sua “Ala Liberal”.
A suposta “primavera marcelista” com que iniciara a sua governação política não passou de simples cosmética administrativa. Mudou o nome à Censura e à PIDE, mas continuou a coarctar as liberdades individuais. A guerra colonial agudizou-se, surgiram as primeiras acções de terrorismo urbano (perpetrados pela ARA e pela LUAR) e as eleições de 1969 e de 1973 foram um tremendo embuste para as aspirações daqueles que (como Sá Carneiro, Miller Guerra, Francisco Balsemão, e outros) acalentavam a esperança duma transição democrática sem sobressaltos revolucionários.
O período de desenvolvimento económico e de progresso industrial, com que Marcelo esmaltara a sua “primavera” depressa se esfumou na crise petrolífera, no racionamento dos combustíveis e no surto inflacionário. Nem as suas pedagógicas “Conversas em Família” dirigidas ao povo semanalmente na TV, conseguiam justificar a sua política de “evolução na continuidade”. O país arrastava-se para o abismo e Marcelo teimava em manter uma ditadura que até à própria Igreja se tornara obsoleta e desacreditada.
Preferiu agarrar-se ao poder e cair de pé. Mas caiu de joelhos. No dia 25 de Abril de 1974 os soldados de mão dada com o povo gritavam pela Liberdade que Marcelo não lhes soubera proporcionar. Como um triste acossado refugiou-se na ratoeira do Carmo, onde nem a GNR o quis defender. Saiu numa Chaimite blindada e debaixo dos apupos do povo. Um duro castigo para a sua soberba de autocrata.
Marcelo Caetano perdeu a soberana oportunidade de proceder à transição do fascismo para a democracia. Não o fez. Por isso ficará para sempre lembrado na História como o último ditador de Portugal.

2 comentários:

  1. Amigo João José Horta Nobre, muito obrigado pelo seu comentário. Creio que o regime cairia com o tempo e daria lugar à democracia. Compreendo que hoje, até para mim, a situação política tem sido uma desilusão. Os nossos partidos políticos desenvolveram à sua volta um clientelismo facilitador de uma execrável prática corruptiva. Infelizmente os escândalos de corrupção política sucedem-se quase diariamente, havendo até alguns casos de políticos atrás das grades. Nesse aspecto o regime da ditadura foi muito diferente, porque Salazar foi um homem visceralmente honesto. Esta é uma constatação que como historiador não posso negar. Em todo o caso não tenho simpatia pela ditadura do «Estado Novo».

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