J. C. Vilhena Mesquita
Numa recente visita à cidade de Silves, tive a ocasião de apreciar o estado de conservação de um dos mais notáveis monumentos, sendo que é simultaneamente um dos mais referenciados no contexto da escultura histórica do Algarve. Refiro-me à Cruz de Portugal, considerada como uma das mais belas peças escultóricas da arte gótica em Portugal, facto esse que justificou em 1910 a sua elevação a Monumento Nacional. Situada, presentemente no Enxerim, ou seja na estrada de Silves para S. Bartolomeu de Messines, vê-se claramente que se encontra num estado de erosão precoce e de irreversível deterioração, devido à fragilidade do material constituinte e à agressividade dos agentes externos, especialmente ambientais, naturais e até sociais.
Creio que há mais de vinte anos atrás tive a oportunidade de ler e apreciar em detalhe o relatório de análise técnica e investigação geológica executado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil a pedido da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Nesse documento concluía-se que aquela peça escultórica deveria remontar ao séc. XV e devido à porosidade da pedra em que se encontrava talhada apresentava reais evidências de desgaste, fissuração e vandalismo, o que ameaçava, a breve prazo, a desagregação dos elementos constitutivos e o risco de destruição ou, pelo menos, de irreversível fraccionação. Exigia-se, por isso, que fossem adoptadas medidas urgentes de protecção, conservação e restauro. Neste caso deveria o “cruzeiro” ser retirado para, em sede especializada, se proceder à sua consolidação, recuperação e, sobretudo, à reconstituição dos elementos artísticos.
Efectivamente, ainda não foram solidamente comprovadas as origens deste cruzeiro, esculpido em ambas as faces no estilo gótico flamejante. Cronologicamente remonta à segunda metade, talvez último quartel, do séc. XV, por ser esse o período áureo do chamado gothique flamboyant (gótico flamejante), que teve como palco as abadias, colegiadas e catedrais da França e da Bélgica. Tenho para mim que o facto de haver sido esculpido em calcário branco-amarelado, pouco resistente e muito poroso – que não existe no Algarve e constitui exemplar único em toda a província – demonstra que não era daqui originário, mas antes importado doutra região, certamente de fora do país. E porquê?
Julgo que a explicação reside até no próprio nome: “Cruz de Portugal”, que parece indicar ter sido encomendada por portugueses e/ou com destino a Portugal. Além disso, o seu estilo afrancesado, os elementos compósitos (a Pietá, tão em voga na Alemanha do séc. XIV), não são frequentes no gótico português, que, como se sabe, foi suplantado pelo estilo nacional, denominado Manuelino, que é, ao fim e ao cabo, uma expressão de arte imposta pelo modus vivendi da nobreza e da fidalguia comercial. Por exemplo, a “Janela do Capítulo” no Convento de Cristo em Tomar não é uma simples janela, mas antes um documento histórico inspirado na hermética simbologia dos Descobrimentos, que pretende transmitir à posteridade várias mensagens politico-socioeconómicas. Por conseguinte, os conjuntos escultóricos têm sempre uma dupla função, estética e simbológica. Ora, segundo creio, a Cruz de Portugal deve ter sido encomendada para figurar numa praça pública como um ex-voto, um marco ou um cruzeiro, para assinalar algo piedoso, algo notável, que tenha que ver com a morte e o martírio, porque são esses os temas ali simbolizados.
Com efeito, sabemos que estas cruzes ordinariamente assinalavam catástrofes, enterramentos, batalhas, acidentes, lugares sagrados, ou simplesmente encruzilhadas de caminhos e, por vezes, o centro do burgo. Nenhuma destas hipóteses me parece a mais plausível. Na falta de melhores e mais seguras informações sou levado a admitir que a mesma talvez servisse para assinalar um grande feito histórico, religioso ou militar. Provavelmente a chegada àquela cidade, em 17 de Setembro de 1471, da armada real comandada por D. Afonso V, que regressava da tomada de Arzila e Tanger. O rei, que no seu exército tinha mercenários estrangeiros, talvez lhes tivesse encomendado aquela cruz para servir como voto em alguma praça pública ou num adro de igreja em Lisboa. Porém, vendo-se tão calorosamente recebido pelo povo de Silves resolveu presenteá-lo com a oferta daquela cruz. Na pior das hipóteses quis ver-se livre dela, talvez por esta incomodar a própria estabilidade do navio que a transportava, não sendo raro aligeirar-se a carga nos portos de retorno.
Mas há hipóteses mais lógicas e plausíveis. Quando D. João II faleceu na vila do Alvor, a 29 de Outubro de 1495, o seu corpo foi depositado na Sé de Silves, até que D. Manuel mandou em 1499 buscar o féretro a fim de o trasladar para o Mosteiro da Batalha, não nos repugnando a hipótese daquela cruz haver sido então ali implantada para assinalar tão piedoso acto. Não esqueçamos que os elementos escultóricos que a constituem são um Cristo crucificado e na retaguarda uma Nossa Senhora da Piedade, vulgarmente conhecida por Pietá, que assumiu foros de imortalidade artística mercê do magistral escopro de Miguel Angelo. Esses elementos relacionam-se com a morte e com o acto piedoso de sepultar os mortos.
Por outro lado, a sua similitude com as medievas cruzes processionais (de que existem vários exemplares nos nossos museus de Arte Sacra), poderá querer assinalar a transferência da Sé de Silves para Faro, efectuada definitivamente a 30 de Março de l577. Mas é muito improvável, visto que nessa época já o estilo gótico havia caído em desuso.
Enfim, são tudo hipóteses, bastante frágeis e sem qualquer fundamento documental que não seja a própria imaginação. De qualquer modo, parece tratar-se de uma memória, até porque nos últimos séculos ela fazia-se distinguir do restante casario mercê dos seus seis metros de altura, o que em certa medida constituiria um ponto de referência para os habitantes e até para os forasteiros, já que se dizia que assinalava o centro da cidade. Infelizmente, foi sucessivamente trasladada para vários locais. Já esteve perto da Sé no terreiro da Câmara, e, ultimamente, voltou para onde já havia estado, ou seja, a cerca de 500 metros da cidade no cruzamento para São Bartolomeu de Messines. Em 1824 deu-lhe a Câmara a base de pedra calcária (bem diferente na cor e textura do calcário da cruz) que ainda hoje a sustém e teria então o dobro da altura que tem actualmente.
O seu valor artístico é incontestável e segundo afirma Pinho Leal, na sua obra Portugal Antigo e Moderno, já os ingleses a haviam cobiçado a ponto de a tentarem levar consigo, pretensão a que a população se opôs vigorosamente. Creio que se referia aos industriais ingleses ali estabelecidos. Não esqueçamos que se trata de um monumento de carácter religioso, cujas origens se perdem na memória dos tempos, e daí o povo atribuir-lhe grande significado religioso. De tal forma que diariamente se viam ali pessoas ajoelhadas invocando a graça divina, sendo igualmente costume juntar-se o povo a rezar em volta da cruz na sexta-feira da quaresma. A própria filarmónica silvense fazia por vezes os seus concertos junto à Cruz de Portugal.
Seja como for, os tempos foram apagando as tradições e inclusivamente reduziram para três metros, isto é, para metade, a altura da primitiva cruz. Actualmente, se bem que resguardada por um alpendre e por um gradeamento de ferro, o secular monumento corre o risco de nos tempos mais próximos se desgastar gradualmente até à sua total irrecuperabilidade. De momento, o calcário em que foi esculpido encontra-se bastante alterado e em estado de desagregação e com algumas fissuras bastante acentuadas. Faltam-lhe já vários fragmentos de pedra e o relevo das figuras e dos ornamentos está muito desgastado. Além disso, agentes parasitários e corrosivos, como líquenes, têm-se fixado especialmente nas zonas umbrosas das reentrâncias do fuste que sustém o crucifixo, contribuindo para a sua progressiva desagregação. O calcário de um modo geral apresenta uma tonalidade amarelo-rosada e o florão que remata a cruz está escurecido, talvez derivado dos fungos da humidade ou das gotículas que caiem do travejamento de madeira que forma o referido alpendre. Por outro lado, a acidez dos excrementos das aves, por exemplo, das andorinhas, tem corroído a pedra. Nota-se, ainda, uma acentuada fractura que atravessa as duas pernas do Cristo crucificado e na sua perna esquerda vê-se um remendo, talvez de gesso. Verifica-se também que o calcário foi colocado com a estratificação no sentido vertical e que algumas fissuras do tipo estilolítico formam uma espécie de rede que põem em perigo a conservação do monumento.
Um exame da pedra revelou que se trata de um calcário fundamentalmente composto por carbonato de cálcio, com leve percentagem de carbonato de magnésio, o que leva a designá-lo como calcário dolomítico. A humidade atmosférica, a chuva e a poluição, são actualmente os principais agentes corrosivos do frágil monumento. Para a sua conservação pode-se optar pelo seu tratamento in situ ou em laboratório. Por razões de urgência recomenda-se a primeira hipótese. Nesse caso, deve-se, tratar imediatamente de eliminar os líquenes, reparar as fendas e fissuras, colar os fragmentos prestos a caírem e, por fim, operar-se a sua consolidação total.
Sugerimos à autarquia de Silves que, em colaboração com o IPPAR e os Monumentos Nacionais, proceda à substituição da vetusta Cruz de Portugal por uma réplica, talvez em fibra de vidro, que fica barata e fielmente idêntica ao original. Não se notará a diferença, podendo sempre visitar-se o monumento original no museu municipal, depois de devidamente restaurado. Julgo que será a única forma de evitar a perda de uma das mais antigas e mais belas peças escultóricas do património histórico algarvio.
Grande Silves!
ResponderEliminarViva o Algarve Viva a PORTUGAL
dou-te os meus parabens, tens aqui um blogue e tanto... estou aqui a fazer um trabalho sobre a cruz de portugal... com este blogue deu para ajudar bastante.
ResponderEliminarass: Carlos Dinis, Silves
Olá Carlos Dinis
ResponderEliminarObrigado pelas tuas palavras.
Desejo-te o maior sucesso para o teu trabalho. Se precisares de ajuda é só dizer.
Um abraço do Vilhena Mesquita
muito bom
ResponderEliminarporque não existem fotografias do recinto da Cruz de Portugal nos anos anteriores ao 25 de Abril de 1974? é porque precisava de imagem dessa altura para um trabalho na escola e não consigo encontrar nada na internet.
ResponderEliminarA última foto do artigo é dos anos quarenta do século passado, mas posso tentar arranjar mais fotos antigas. manda-me o teu email, que eu prometo tentar encontrar as fotos que precisas.
ResponderEliminarSou natural do Concelho de Silves onde cresci e estudei. Contou-me o meu avô uma história lendária sobre o escultor da cruz de Portugal. Dizia-se que o dito escultor ao pretender fazer outro trabalho igualfoi-lhe decepada a mão direita contudo ele continuou dizendo que a faria com a mão esquerda a qual viria a ter a mesma pena. Perante a insistência do escultor foram-lhe decepados todos os membros. É uma história macabra e sem qualquer fundamento, que poderá ser entendida como o orgulho por uma peça única .
ResponderEliminarÉ uma história muito interessante, mas já a conheço de outros casos do legendário popular, inclusivamente relacionados com a estatuária europeia.
ResponderEliminarEspero que volte mais vezes ao convívio deste blogue.
Cumprimentos do Vilhena Mesquita
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Estou em Silves há dias, em trabalho, e fiquei muito curiosa para saber informações sobre esta "Cruz de Portugal". Hoje tive tempo e vim ao "google" pesquisar. Fiquei agradavelmente surpreendida com toda a informação que aqui consegui, tanta logo de "uma assentada"! Parabéns. Vou continuar a visitar-vos. M.F.M
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