José Carlos Vilhena Mesquita
A cidade de Tavira, pela sua posição estratégica na foz do rio Gilão, nas proximidades do Guadiana e da raia espanhola, espraiada sobre a ria que a defende das intempéries oceânicas e das incursões corsárias, teve desde a conquista cristã uma importância fulcral na defesa militar do espaço oriental do reino do Algarve. A sua triangulação entre Aiamonte e Faro privilegiam o seu posicionamento geográfico, condicionando simultaneamente o seu crescimento socioeconómico. Todo o seu desenvolvimento futuro ficaria dependente das relações internacionais com a Andaluzia e a costa magrebina, onde estabeleceríamos os nossos interesses comerciais em controversos territórios de difícil sustentação política e de arriscada conservação militar.
Os distintos privilégios e isenções, concedidos no foral e nas diversas cartas régias emanadas pela coroa, desde D. Dinis até D. Sebastião, atestam e confirmam não só a sua importância geo-estratégica, como ainda a necessidade de promover um porto alternativo à costa granadina e um entreposto mercantil à argêntea cidade de Sevilha. Devido às incompetentes relações políticas com o al-andaluz, não teve a cidade de Tavira o sucesso comercial que se esperaria entre os dois reinos transfronteiriços, estabelecendo-se um divórcio ou um alheamento de interesses desde 1252 (conquista definitiva do Algarve) até 1492 (conquista de Granada pelos reis católicos). No decurso desse período, virou-se o Algarve para a estrada atlântica, descurando parcialmente as relações mediterrânicas. A sediação da Ordem de Cristo na raiana praça militar de Castro Marim, agravada com a presença do Infante D. Henrique, impediam qualquer reatamento das relações andaluzas. Por outro lado, sabendo-se dos projectos expansionistas do Infante, a cidade de Tavira viu-se prejudicada pelo entravamento da ria e pelo progressivo assoreamento do seu canal portuário, razões naturais que embargaram o estabelecimento dos estaleiros navais necessários à consolidação do projecto henriquino. Digamos que a região sotaventina, pela configuração da restinga costeira e até pelo regime dos ventos, viu-se arredada, ou pelo menos desviada para segundo plano, no processo dos Descobrimentos Portugueses.
Com a morte do Infante D. Henrique amorrinhou o plano de expansão atlântica, para lhe suceder uma política africanista de conquista militar, afirmação religiosa, fixação cultural, controlo económico e assenhoreamento territorial. Os tavirenses, mareantes e pescadores, fidalgos terratenentes e militares, empenharam no acometimento africano o melhor do seu esforço, e até o fruto dos seus cabedais financeiros, para que a glória do rei e o prestígio da lusa pátria, pairasse nas praias magrebinas como sinónimo da honra e do heróico sacrifício da cristandade. Os algarvios, mas principalmente os tavirenses, foram o sustentáculo, militar e financeiro, das nossas possessões africanas.
Em resultado da posição geo-estratégica da cidade, o seu porto transformou-se na plataforma giratória do profícuo trato sahariano, com particular ênfase no mel, na cera, nas couramas e marroquins, nas exóticas tâmaras, nos incensos e especiarias, no pescado seco e, sobretudo, nos corcéis árabes tão procurados nas cortes europeias. E de Tavira seguiam para os portos magrebinos o sal (o nosso ouro branco), o azeite mais fino (para a higiene e cosmética), a amêndoa coca, o figo mercador, as lixas de peixe, as frutas de espinho (citrinos), a cortiça, o sumagre (para a curtição peleira e tintureira dos marroquins), linho, resina, carvão, cal e peixe salgado (atum e sardinha). Mas também ao porto de Tavira acostaram as armadas reais da “ínclita geração” e do rei africanista, que levaram de Tânger até Arzila o nobre pendão das quinas. E em homenagem à abnegação do povo tavirense, na conquista e conservação das praças africanas, pela cidade passaram e estanciaram alguns monarcas, desde D. João I ao mítico D. Sebastião, que dos campos de Alcácer Quibir haveria de aqui voltar, num frio e pesado esquife, que os tavirenses velaram emocionados na sua Igreja de St.ª Maria.
Com a ascensão de D. João II ao trono, a retrógrada política de fixação territorial no norte de África foi derrogada, para dar prosseguimento ao projecto atlântico – muito diferente do henriquino, que se baseava mais na captura de escravos para financiamento da empresa, do que propriamente na expansão territorial ou no ecumenismo cristão. O estabelecimento da rota da Índia tornou-se num desígnio nacional, centralizado nas mãos da Coroa, preludiando o absolutismo político que dominaria a nação portuguesa até ao raiar de Oitocentos.
Nos finais do séc. XV, com a queda de Granada e Sevilha, e a consequente unificação da Espanha, experimentou a cidade de Tavira um período de florescimento através do estreitamento das relações político-económicas com a vizinha Andaluzia. A bem dizer, o trato mercantil entre os dois territórios nunca foi anulado pela separação da fé religiosa. Apenas se fazia com mais dificuldade, em atitude de descambo e quase sempre correndo enormes riscos. Mas as transacções em moeda forte (maravedil de ouro), aguçavam o engenho dos traficantes. A partir da legitimação do trato transfronteiriço as exportações do Algarve para a Andaluzia cresceram de forma exponencial, tendo no sal de Tavira e Castro Marim, assim como no peixe fresco ou nas barricas em salmoura, o grosso do seu tráfico. Nas décadas seguintes, a cidade de Tavira atingiu um florescente crescimento urbano e um acentuado desenvolvimento económico, mercê da prata peruana que afluía e entesourava Sevilha. Vive-se, nessa altura o apogeu do imperialismo ibérico, primeiro com D. Manuel I de Portugal, e depois com Carlos V e Filipe II de Espanha. A cidade de Tavira cresceu não só no comércio como na religiosidade, construindo-se no séc. XVI várias igrejas e conventos, restaurando-se as muralhas assim como os edifícios antigos e de maior notoriedade, religiosos ou de nobre talha, com que a cidade se vangloriava de ser a primeira do reino. A prova dessa ascensão está na atribuição do título de cidade, por carta de D. Manuel I, datada de 16-3-1520, vinte anos antes de Faro que só em 1577 se sagraria capital do reino, quando nela se instalou D. Jerónimo Osório trazendo de Silves a cadeira episcopal.
A fervorosa religiosidade dos tavirenses está certamente ligada às suas tradições marítimas, mas também ao espírito beato da época, que teve o seu expoente com D. João III e a introdução do Santo Ofício. É verdade, que já com os Reis Católicos a sanha anti-judaica havia contaminado a política de D. Manuel I, que forçara a conversão dos judeus e criara a gravíssima distinção social entre cristãos-velhos e cristãos-novos, tardiamente dirimida com a governação pombalina, que em 16-2-1773 aboliu a “limpeza de sangue”. O certo é que um aparente fanatismo religioso constituiu-se num factor de antagonismo social e de rivalidade mercantil com as comunidades hebraicas residentes no Algarve, contribuindo para a desagregação do trato mediterrânico e para o esfriamento económico com os portos holandeses e os mercados do Báltico. A questão hebraica, ou seja a perseguição pelo braço inquisitorial do Santo Ofício aos judeus ou cristãos-novos (depreciativamente designados por marranos), suscitou uma abrupta fuga de capitais e de insubstituíveis recursos humanos, que animavam as actividades financeiras e os mercados comerciais, tanto interna como externamente. Por outro lado, a par da debandada dos mercadores e banqueiros, retirou-se também a inteligentzia hebraica, que no campo das matemáticas e das ciências experimentais constituíam uma espécie de oásis intelectual no ronceiro atraso nacional.
O Algarve, e a cidade de Tavira, perdeu imenso com essa sangria humana, que aliás serviu de exemplo para muitos empresários mercantis e industriais, que não podendo desenvolver os seus negócios partiram para o Norte de África, para as nações livres da chamada Europa da Reforma, para a bacia mediterrânica e para o Médio Oriente. Tudo se agravou ainda mais quando a crise de sucessão dinástica, provocada pelo desastre de Alcácer Quibir, fez resvalar a coroa para as mãos de Filipe II, ou seja para a temida, e sempre combatida, dominação espanhola. O país apagava-se, diluía-se no império dos Filipes, e com isso se eclipsavam também as principais actividades económicas no país e no Algarve, em particular. O primeiro sintoma da decadência socioeconómica da cidade de Tavira evidenciou-se na diminuição da população residente, suscitada pela quebra das actividades mercantis, mercê da emigração para Sevilha dos mercadores e ricos homens de negócios ligados ao comércio com as Índias, agora submetidas à esfera dos interesses espanhóis. Com os negociantes do comércio internacional foram também para as praias da Andaluzia os empresários da pesca que em Tavira auferiam menores proventos com a exportação do pescado do que nos portos espanhóis. Não esqueçamos que os Filipes desenvolveram uma política económica proteccionista, assegurando o exclusivo dos negócios com as possessões coloniais aos seus naturais ou aos residentes no território metropolitano. Isso fazia com que os nossos empresários do comércio internacional se fixassem na vizinha Espanha para continuarem a desenvolver as suas relações e os seus rendíveis negócios. Por outro lado, a nossa proverbial inveja dos homens bem sucedidos e do nosso endémico arrivismo, tornaram insuportável a vida aos negociantes que não fossem algarvios e aos estrangeiros da fé protestante. A vila de Aiamonte, em reflexo do mau ambiente criado em torno dos mercadores estrangeiros, experimentou em acentuado desenvolvimento urbano, populacional e económico, nos séculos XVII e XVIII, pois que os barcos que antes demandavam o porto de Tavira passaram a acostar naquela vila as suas mercadorias, animando um avultado giro mercantil que se estendia entre Huelva e Sevilha.
Deste modo, tudo se conjugou para que a cidade entrasse numa progressiva decadência, num apagamento económico, que se agravaria com o terramoto de 1755, do qual só se restabeleceria na segunda metade de Oitocentos, com a renovação das pescarias de cerco, do atum e da sardinha, e, muito especialmente com a implantação das indústrias de transformação e conservação do pescado. Mas as explicações dessa regeneração socioeconómica são contas de um outro rosário, que ficarão para desvelar numa próxima oportunidade.
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