domingo, 23 de agosto de 2009

Nem Colombo nem Cabral - Quem descobriu a América?


José Carlos Vilhena Mesquita

A dúvida, precedida da afirmação, que usamos como título para este artigo, exclui à partida que aceitemos a tese clássica do “acaso”, como se tratasse de obra do destino o feliz “achamento” do Brasil pela frota de Pedro Álvares Cabral. E isto porque não se pode atribuir à ocasionalidade ou ao sortilégio da sorte, a descoberta de um território que já havia sido demandado por outros povos, que não os portugueses. Além disso, a ajuizar pelas palavras de Estevão Fróis, as costas do Brasil já eram navegadas pelos nossos marinheiros desde 1493.[1]
Mas a nossa intenção não é a de discutir se existiu ou não um conhecimento pré-colombino dos portugueses acerca das terras americanas, mas antes o de afirmar que muito antes das nações ibéricas já outros povos ocidentais e orientais haviam aportado naquelas paragens.
Efectivamente, uma espécie de “pedra roseta”, digamos assim, foi há anos exumada na Bolívia, na qual se podem observar inscrições cuneiformes juntamente com outras grafias de tipo semítico o que, à priori, nos leva a deduzir que navegadores do extremo oriente haviam precedido os navios de Colombo.
Através da leitura de obras como A Agonia do Deus Sol, de Jacques Mahieu, A América Antes de Colombo, de Cyrus Gordon, ou Os Conquistadores do Pacífico, de Pierre Carnac, somos despertados para as prováveis presenças em terras americanas de povos como os Irlandeses, os Fenícios, os Bascos (que em 1143 pescaram bacalhau na Terra Nova), os Vikings, os Egípcios e até os Chineses e Japoneses. Para se chegar a esta suposição muito tem contribuído a intervenção científica da moderna arqueologia.
Relativamente aos irlandeses, sabemos que estes se estabeleceram nos territórios da Terra Nova e da Nova Inglaterra, onde fundaram a chamada “Grande Irlanda”, muito antes de ali chegarem os Vikings comandados por Bjorn Herjulfason e por Leif Ericsson. Estes por sua vez, no ano mil, colonizaram a tão famosos quanto mítica Vimlândia, que se situaria entre Nova Iorque e Boston, embora Jacques Mahieu tenha encontrado vestígios da sua presença na ilha do Yucatão e na América Central.
Mas há ainda outros indícios e testemunhos arqueológicos que quase nos garantem a sua permanência no Peru, se considerarmos a descoberta de algumas múmias de cabelo ruivo na fortaleza amazónica de Kuelap, caso estranho já que os indígenas são regra geral de cabelo negro. Além disso, foram encontrados no deserto de Atacama alguns restos ósseos de cães dinamarqueses, galgos, muito provavelmente trazidos para este continente pelas embarcações vikingues.
Quanto aos povos asiáticos, possivelmente chineses, sabemos que o monge budista Huey Sing esteve na América Central, provavelmente na actual Guatemala, à qual chamou o “país de Fusang”. Por outro lado, de acordo com os estudos efectuados por investigadores e arqueólogos, presume-se que a cultura pré-colombina denominada Chimu, estabelecida a norte do actual território do Peru é, segundo parece, de origem japonesa. Na verdade, sabe-se que os Chineses chegaram a estas paragens por via marítima, e daí se infere que tenham vindo do Japão em resultado das constantes guerras-civis que se desencadeavam naquele arquipélago.
No que respeita aos Fenícios, também se aventa a hipótese da sua presença no continente americano, pois segundo alguns historiadores as terras do “Paruaim”, citadas na Bíblia não passam de uma corruptela da palavra “Peru”. Efectivamente, o templo de Salomão encontrava-se repleto de ouro, trazido pelos fenícios de Hirão, rei de Tiro, cujos marinheiros visitavam assiduamente as minas de “Paruaim”. Aliás, entre o avultado espólio arqueológico exumado na cidade geométrica de Cusco, capital do Império Inca, foi encontrada uma pequena estatueta representando um homem de compridas barbas, em posição sentado, retendo entre os joelhos uma pequena placa na qual parece registar algo que não podemos adivinhar. Porém, existe uma semelhança enorme entre esta pequena escultura e as estátuas representativas dos escribas fenícios. Visto que Cusco foi até à conquista espanhola uma das mais ricas regiões auríferas da América, porque não admitirmos que esse escriba estaria a anotar os carregamentos daquele preciso metal.
Mas foi Pierre Carnac, o historiador que melhor desmistificou a virgindade do continente americano, tomando como referência incontornável os achados arqueológicos encontrados em diversos lugares e regiões do continente americano. Foi com base nesses elementos que teve a ousadia de elaborar uma lista cronológica sobre o aportamento ao continente americano de variadíssimos povos provenientes da Europa e da África que precederam as naus de Colombo. O escalonamento desses povos, segundo Carnac, ficaria ordenado da seguinte maneira:
Cananeus, fenícios, povos negros indeterminados, cartagineses, gregos, romanos, celtas, irlandeses, vikings, ingleses, suevos, noruegueses, venesianos, bretões, bascos, dinamarqueses, portugueses, e só depois os espanhóis de Colombo.
Embora a arqueologia seja uma ciência rigorosa e de reconhecida autoridade, que muito tem contribuído para o progresso do saber histórico, cremos que Pierre Carnac exagerou no que respeita à lista dos povos acima discriminados. Não parece crível que a maioria deles tivesse precedido Colombo. O facto de terem sido encontrados objectos de diferentes origens e culturas, de diversas proveniências e distantes épocas, embora indubitavelmente estranhos às culturas autóctones, não significa que tenham sido levados para ali pelos seus originários produtores. O que deve ter acontecido é que foram transportados para a América por efeito de trocas mercantis não necessariamente operadas naquele território. Por isso é que foram encontrados em contextos arqueológicos deveras estranhos, para cuja explicação prevaleceram certas análises mais especulativas do que científicas, elaborando-se assim conclusões prematuras e pouco fiáveis.
Seja como for, uma coisa é certa: Colombo não descobriu a América, afirmação que é extensiva a Cabral, pois pensamos que alguns dos povos acima referidos terão chegado pelo menos ao actual estado de Pernambuco.
Antes de terminar, porém, acrescentaremos algumas achegas à tão decantada problemática do pré-conhecimento das terras americanas antes do aportamento em terras de Vera Cruz da frota de Pedro Alvares Cabral.
Cumpre assim, em primeiro lugar, perguntar como se explica que D. João II se tivesse apressado a negociar o Tratado de Tordesilhas com os Reis Católicos? De facto, a divisória de 1493 excluía aos portugueses a hipótese de “achamento de terras” para ocidente, e a avaliar pelas preocupações do monarca na demarcação de um meridiano situado a 370 léguas a ocidente do Cabo Verde torna-se um facto estranho, que facilmente no leva a deduzir que já então se sabia da existência de terras no Austro.[2]
Há ainda um outro facto algo estranho que merece ponderosa reflexão. No Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, publicado em 1838 por Diogo Kopke, a certo passo diz o seguinte:
E huma quynta feira que eram tres dias Dagosto partimos em Leste, e hindo hum dia com Sull quebrou a verga ao capitam morr e foy em xviij dias Dagosto e seria isto (duzentas) légoas da Ilha de Santiaguo, e pairamos com o traquete e papafigo dous dias e huma noute, e em xxij do dito mês hindo na volta do mar ao Sul e a Quarta do Sudueste achamos muytas aves feitas como garçõees e quando veo a noute tiravam contra o Susoeste muyto rrigas como aves que hiam pera terra, e neste mesmo dia vimos huma balea e isto bem oytocentas légoas em mar.”[3]
Algo um pouco semelhante escreveu Pero Vaz de Caminha, na sua Carta do Achamento:
E à quarta-feira seguinte (22 de Abril) pela manhã, topámos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra”.[4]
Ora, não terá Vasco da Gama avistado sinais de terra durante a sua prioritária missão de descobrir o caminho marítimo para a Índia? O indício das aves (garças), dos lenhos flutuantes (“rigas”, possivelmente madeira de pinho) e da baleia (mamífero que proliferava pelas costas brasileiras, e cuja pesca mais tarde se haveria de desenvolver), parecem-nos muito significativos se lhe ajuntarmos ainda o facto de no Roteiro se dizer peremptoriamente que “muyto rrigas como aves que hiam pera terra”. Logo, é muito provável que o descobridor da rota marítima das especiarias se tenha apercebido de correntes orientadas para terra, se é que não vislumbrou mesmo a terra brasileira. Só que a descrição do avistamento dessas terras não consta no Roteiro de Álvaro Velho, nem tão pouco no Diário de Vasco da Gama, facto esse quanto a nós originado pela política de sigilo impulsionada por D. João II. Porém, sabemos hoje que Vasco da Gama aconselhou Cabral a seguir a rota do Sul precisamente a partir das Ilhas de Cabo verde rumando para Sudoeste, caso viesse a ser “importunado” por ventos tempestuosos. Na verdade, o navegador seguiu o conselho, desviando-se ostensivamente para o quadrante de Sudoeste, durante as setecentas léguas que separam a Ilha de São Nicolau do local do primeiro desembarque em Porto Seguro.[5] E como as descrições da viagem não se referem nem a tempestades nem a correntes marítimas que justificassem tão pronunciado desvio da rota, é lógico admitir-se um pré-conhecimento daquele continente. Aliás, se por acaso houvesse necessidade de desvio motivado pelo regime dos ventos (o que não nos parece viável, já que os nossos pilotos sabiam bolinar há quase um século e dominavam as mais modernas técnicas de navegação), como é que se explica que Cabral e os seus pilotos tenham velejado setecentas léguas em águas desconhecidas sem procederem à correcção da rota?
Por outro lado, na Carta do Achamento de Pero Vaz de Caminha nada consta que nos possa levar a supor que aquela descoberta foi acolhida com grande surpresa e contentamento por todos os expedicionários. Ora, se efectivamente o acontecimento fosse obra do acaso, com certeza que o procedimento narrativo de Pero vaz de Caminha seria idêntico ao de Cadamosto quando descreve euforicamente a descoberta das Ilhas de Cabo Verde.[6]
Enfim, muitas mais razões se poderiam adiantar, mas não é nossa intenção esgotar este assunto, pelo que ficamos por aqui. A finalizar, e apenas a talhe de foice, concluímos que é quase certo o conhecimento prévio da existência de terras para ocidente da África, pois doutra forma Pedro Alvares Cabral não teria seguido uma rota tão directa para aquele continente. Agora, duma coisa temos a certeza, é que não foram nem Colombo nem Cabral os descobridores do “Novo Mundo”.

NOTAS

[1] Em todo o caso, Duarte Leite contraria a veracidade das afirmações de Estevão Fróis, considerando-as exageradas.
Cf. Duarte Leite, História dos Descobrimentos, 2 vols., Lisboa, Ed. Cosmos, 1959, 1.º vol. pp. 346-349.

[2] A este facto se refere a carta de Roberto Thorne de 1527, na qual o mercador inglês escreve ao seu monarca dizendo-lhe que desconfia que D. João II estivesse já na posse de notícias que lhe garantissem a existência dum continente austral a oeste de África, e daí ter negociado pela segunda vez o Tratado de Tordesilhas. Jaime Cortesão apresenta o documento e acredita nele, o que não se verifica na citada obra de Duarte Leite.

[3] Damião Peres (dir. de), História de Portugal, 9 vol., Porto, Portucalense Editora, 1928-1954, vol. III, p. 579.

[4] Pero Vaz de Caminha, Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974, p. 33.

[5] Duarte Leite. op. cit., p. 538.

[6] “Aguentamo-nos assim o tempo duas noites com três dias havendo ao terceiro vista de terra, e, gritando todos: - Terra, terra, muito nos maravilhamos, porque não sabíamos que naquelas paragens houvesse terra alguma e mandando subir ao mastro dois homens, descobriram duas grandes ilhas (Ilha do cabo Verde), o que, sendo noticiado, demos graças a Deus Nosso Senhor que nos levava a ver coisas novas; porque bem sabíamos que destas ilhas não havia notícia alguma em Espanha (designação que abrange os países da Península Ibérica, aqui refere-se a Portugal) e, julgando nós que elas podiam ser habitadas, para saber o mais e provar nossa ventura, nos fizemos na volta de uma delas e em pouco tempo nos achamos perto”.
Luís de Cadamosto, «Viagens», in Grandes Viagens Portuguesas, selecção de Branquinho da Fonseca, 2 vols., 2.ª ed., Lisboa, Portugália Editora, s/d, vol. II, pp. 11-12.

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