segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A Alma da poesia no Corpo do amor

José Carlos Vilhena Mesquita

A poesia é a ciência mais antiga do Homem. Dito assim, de chofre, parece uma blasfémia. Afirmo-o, porém, na plena consciência de não estar a incorrer na estulta insensatez de confundir a objectividade da ciência com o idealismo egocêntrico e fantasista da verve poética. A ciência é fria e impessoal, enquanto a poesia é calorosamente intimista. Parece que estamos a falar dos antípodas da razão, ou dos oponentes da existência humana. Mas, na verdade, a poesia é a expressão mais artística e mais sublime da vida, tendo servido desde tempos imemoriais para aplacar os deuses, homenagear os heróis, seduzir os vivos e invocar os mortos. Tudo na vida se pode envolver no halo sagrado da poesia.
Os primeiros conhecimentos foram transmitidos de geração em geração pela arte, pela música e pelo legendário oral, através do qual se fortaleciam os laços de pertença e de integração social. As tribos e os clãs mais ancestrais, identificavam-se não só pela sua peculiar iconografia, como sobretudo pela reverência dos seus heróis, cujo preito se fazia através de cânticos, loas, odes e outras expressões poéticas. Significa isto, que nos primórdios da civilização o saber/ciência era fruto do tempo e da experiência, ou seja, do empirismo vivencial, cuja transmissão se operava através de sentenciosos adágios ou provérbios, pejados de sonoridades rimáticas que facilitavam a sua memorização.
Digamos que a poesia nas sociedades menos evoluídas se tornou numa espécie de correia de transmissão da ciência, exemplo que ainda há pouco anos se verificava nas aldeias mais recônditas do nordeste beirão e transmontano. Se repararmos na nossa literatura oral, constatamos que o misticismo e a crendice popular estão impregnadas de poesia, evidenciada nas orações e benzeduras, nas adivinhas, nos maus-olhados, nas pragas e maldições, nos aforismos e adágios, nos autos e entremezes teatrais, nos relatos sobre o passado histórico e lendário dos antepassados... Enfim, nesse imenso património bio-socio-antropológico, a poesia funciona como uma espécie de oráculo da cultura popular.
No seio da cultura portuguesa, atribui-se ao Infante D. Pedro, a quem chamaram o príncipe das sete-partidas, filho de D. João I e membro da “Ínclita Geração”, a honra de ter introduzido na língua portuguesa o vocábulo POESIA, cujo género literário dizia ele ser “Coisa mais do sabor do que do saber”. Esta afirmação, aparentemente, vem contradizer a relação primordial entre a ciência e poesia. Mas, na verdade, o que acontece é que o tempo mudou, isto é, alteraram-se as mentalidades, transformando-se a organização social e económica do mundo. Modificaram-se as noções de ciência e de cultura, o conhecimento procurou independentizar-se da filosofia e assistiu-se ao nascimento das diversas ciências. E a Poesia, que durante muito tempo havia servido de muleta à ciência, tornou-se a partir de então numa Arte intelectual – é certo que numa expressão elevada do pensamento e num pitonísico oráculo do idealismo filosófico, mas definitivamente numa arte ou simplesmente numa forma de criação artística.
Estava-se em plena Renascença, fervilhavam novas ideias nos cenáculos do Humanismo, e a sombra do velho mundo passava a medir-se com a vara do estro humano. Era o tempo do homo mensura. A poesia tomava novos rumos em diferentes cambiantes. Tornara-se mais imaginativa e artística, formulando novos modelos para a arquitectura das palavras. O sentido desalinhou-se do conteúdo, isto é o significado e o significante estabeleceram um imbricado relacionamento, formando enigmáticos dédalos de locuções, aos quais a riqueza fonética das palavras emprestou uma inovadora sonoridades musical. A partir de então a poesia tornou-se na arte da palavra por excelência. Ora, acontece que as línguas latinas possuíam, na radícula do classicismo, a especial singularidade de darem à entoação das palavras uma musicalidade natural. Talvez por isso é que Rodrigues Lobo no seu livro a Corte na Aldeia, dissesse que "a língua portuguesa é branda para deleitar, grave para engrandecer e doce para pronunciar" .
Por sua vez, Sá de Miranda (o célebre introdutor do soneto em Portugal) desejando ilustrar o espiritualismo e o desprezo dos poetas pelo materialismo, dizia que "os poetas tudo punham em flores e dos frutos nada havia que esperar". Esta asserção marcaria para sempre a concepção geral do valor da poesia, e, por consequência, a desvalorização social do poeta. Vulgarizou-se a errónea imagem do Poeta sonhador, lunático, excêntrico, extravagante e caprichoso, resultante do seu aparente desapego à realidade, do seu psiquismo frenético e fantasista, do seu epicurismo sensualista e, sobretudo, do seu hedonismo existencial.
Certamente por causa dessa falsa imagem do Poeta, é que, mais tarde, quando o materialismo burguês se apoderou do nosso país – um pouco à semelhança do que estamos a viver hoje –  Camilo Castelo Branco, que chegou a ter pretensões poéticas, afirmava enfurecido: «Gela-se-me o sangue, quando a ignorância petulante faz um trejeito de menosprezo ao talento e diz: poeta!».
Ora a Poesia é, em primeiro lugar, um acto de comunicação com o Eu e com o Outro. E actualmente a Poesia também é um lugar de resistência à globalização, cada vez mais redutora e homogeneizante, fulcralizada num modelo imperialista de cultura inspiradamente anglo-americano, no qual só o mediático é universal.
No fundo, a Poesia é simplesmente a arte de fazer versos, transmitindo neles o sentimento, o temperamento e o carácter do poeta, numa simbiose da intimidade com a estética, sem nunca perder de vista os excelsos valores da Ética. Mas, por outro lado, a Poesia é a expressão natural da paixão como suprema manifestação do amor, num entrelaçar de imagens e de metáforas que transluzem o sofrimento e a dor dos amantes. Porém, como dizia Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente". Por isso é que a poesia obedece a uma fórmula de composição estética e musical.
Classicamente a Poesia obedece a uma fórmula de composição estética e musical. O seu objecto é a beleza de expressão associada à ideia, usando a palavra com parcimónia, mas procurando elevar os conceitos até ao nível da plurivalência entre o significado e o significante. A poesia deve, pois, expressar uma certa harmonia entre a inspiração lírica e a mensagem literária, dando-lhe um carácter comovente, sem extinguir certezas absolutas.
A Poesia é a inspiração natural e transcendente, mas também é um labor sequencial com a palavra num aprimoramento de ideias e de pensamentos, concebidos nos céus etéreos da lógica, que ultrapassam a materialidade e a impermanência da vida. Por outro lado a poesia é a própria Vida, pejada de memórias recorrentes e de magnetismos telúricos, impregnando-se, por vezes, de obscuros e insondáveis mistérios.
Acima de tudo, a Poesia é dialógica. Com a palavra inventamos mundos usando conceitos profundos e belas metáforas, mas é com palavras simples e familiares que se faz a melhor poesia. Talvez por isso é que o poeta José Craveirinha concebia a criação lírica como uma "fraternidade das palavras", afirmando que "as palavras só precisam de quem as toque ao mesmo ritmo para serem todas irmãs".
Mas a memória das palavras não depende da memória, mas antes das palavras. Existe um Sul mítico no esplendor do Sol, nas areias movediças da memória e na espuma das palavras, como a presença viva dos nossos ascendentes que pairam sobre a nossa memória. Os lugares de recorrência acontecem frequentemente na poesia, quando lembramos as raízes e o tempo que passa, como memória da água.
Existe um tempo de maturação poética, durante o qual o poema precisa de adormecer na sua forma crisálida até despertar como eflúvio de vida e de beleza. Em jeito de crítica, construtiva, diria que existem dois tipos de poetas: os de inspiração vulcânica, a que chamo repentistas, e os versificadores aplicados, a que chamo poetas da inteligência. Os primeiros são os apóstolos do povo, cantam aquilo que vêem com a simplicidade do seu limitado horizonte intelectual. Os segundos versejam com eloquência, constroem imagens e metáforas de fino recorte estilístico, evidenciando uma forte presença intelectual, entretecida na sensibilidade estética e na elevação do pensamento filosófico. Há certos poetas que escrevem de chofre, na primeira penada, sem tão pouco verificarem se nos seus poemas existe sentido, Beleza ou Graça.
O poeta é, em suma, um mago cinzelador da palavra transformada em verso, um alquimista da Beleza. Por isso é que Fernando Pessoa definiu o poeta nesta simples e genial síntese: «Deve haver no mais pequeno poema, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero».
Pegando na afirmação de Fernando Pessoa, sente-se que pelo Corpo e Alma deste livro, passou o espírito homérico da palavra peregrina, do amor platónico e da paixão física de Ulisses. Na profundidade estética da eloquência e na arrumação estésica do seu próprio sentido lírico, percebe-se que Saúl Neves de Jesus foi tocado pelo halo sagrado das musas, deixando-se enlevar no inebriante cântico das sereias.
Na sequência do meu raciocínio inicial, direi que esta obra não é de ciência, porque a tão elevado patamar já não se ergue a poesia. Porém, ela nasceu do amor, da paixão, do sentimentalismo e do mais puro espiritualismo de um cientista, que considero, sem favor, como um incansável, denodado e proficiente investigador, cuja obra académica tem depositado sobre o venerável e frio altar da ciência, com o aplauso inter pares e os mais rasgados elogios da crítica especializada. Este livro vem corroborar a velha frase de António Ferreira, o celebrizado autor da Castro, quando afirmou que “as musas nunca fizeram mal aos doutores”. E de facto assim se comprova pela leitura dos poemas que compõem o livro, De Corpo e Alma, embora também nele se perceba que não foram as musas que o inspiraram, mas certamente uma única e maravilhosa musa, que ajudou o poeta a descobrir a essência do amor.
Toda a obra está impregnada pela ascese dos sentidos, transmitida, de forma muito velada, através do calor sensorial das palavras, suspeitosamente evidenciada na apreensão sensual dos corpos, na percepção táctil das carícias dos amantes ou nos odores da carne libertados pelo frenesim do amor. No poema «Os cinco sentidos da paixão» tudo fica mais claramente definido. O amor vive-se e sente-se na plenitude dos sentidos. É dessa osmose sensitiva que o amor desperta em paixão. “O verdadeiro amor não pode ser definido, apenas sentido...”
Os poemas de Saúl Neves de Jesus são verdadeiras odes ao amor, cânticos oníricos carregados de paixão, num inebriante sensacionismo, que a ninguém pode deixar indiferente. O amor assume-se nos seus versos como um momento de magia, e o êxtase do amor pressente-se na simplicidade das palavras: “Um momento só nosso.../um momento eterno de magia”, “Vale a pena viver.../pela magia.../pelo teu olhar” Sente-se que o poeta vive “Um sonho acordado, / um espaço sem tempo, / num envolvimento infinito...” Por vezes sentimo-nos a seu lado, desejosos de “Acreditar no amor para todo o sempre / num destino traçado por Deus / como uma linha sem curvas...”.
Não restam dúvidas de que a leitura destes apaixonados poemas atingem o mais insensível leitor no profundo âmago dos sentidos, deixando-lhe na alma a contagiante nostalgia do amor, ateando-lhe a lembrança de amores inconseguidos ou de paixões inconsequentes. A magia poética ilumina a memória num contagiante fascínio pela dialéctica psicossomática do Eu em simbiose com o Nós, perpassando nessa relação intimista um certo dualismo ascético, por vezes místico, muito peculiar nos analistas da mente que vêem no amor o exclusivo refrigério da vida. “Quero continuar a sonhar / não me acordes / e sonha também...”
O livro aí está, pronto a ser partilhado, sobretudo por aqueles que ainda se sentem vivos para sonhar com o amor e experimentarem o calor de uma verdadeira paixão. O mistério da vida consubstancia-se precisamente na descoberta da essência do amor.