José Carlos Vilhena Mesquita
Dificilmente se encontram hoje no Algarve os resquícios da festa natalícia genuinamente regional. Mesmo nos lugares mais recônditos da serra se esbateram as tradições, apesar de em toda a província não ser estranha a alegria que a verdadeira festa do lar traduz no espírito da família. No fundo, o Natal, quer seja minhoto, transmontano, beirão ou algarvio, contem um denominador comum: a celebração de uma festa religiosa com características muito intimas, na qual a família se reúne numa verdadeira apoteose dos seus continuadores – as crianças. O Natal é, por excelência, a festa da criança, o prolongamento da família, a personificação da unidade e da esperança no futuro.
Os presentes, com que no início da nossa Era os Reis Magos homenagearam o Deus-Menino, são hoje simbolicamente os mesmos – embora materialmente muito diferentes – e servem para traduzir a felicidade do lar, a paz e a amizade entre os homens. Por isso, Natal sem consoada, sem presépio nem prendas, não é Natal. E estas são, sem sombra para dúvidas, as características mais gerais da festa, que, cada vez mais, se tornou pertença de um património universal.
Verifica-se, porém, que as influências culturais resultantes de uma heterogeneidade geomorfológica de insondável ancestralidade marchetaram as celebrações religiosas com dispares manifestações populares, que, de algum modo, as diferenciavam, criando-lhes uma individualidade peculiar, e, por vezes, algo estranha e muito curiosa. Com o seu estudo se preocuparam os etnógrafos e antropólogos, mas para o seu progressivo esvaziamento parece estar a contribuir um hodierno progresso tecnológico, emanado duma sociedade consumista e alienante, que tende a estandardizar as próprias raízes culturais dos povos. O conservadorismo etnográfico, e a reserva do tradicional, assume-se hoje, numa perspectiva mais cosmopolita, como sintoma de atraso civilizacional. A mundialização do pinheiro escandinavo, e do Pai Natal normando, superaram, por observância da normalização comercial, os padrões culturais e as manifestações populares do Natal latino, esse sim, genuinamente cristão e profundamente visigótico. De tal forma assim é que o Natal secularizou-se para dar lugar a uma festa social, altamente vulgarizada, profundamente dependente duma indústria de mercado, que a força persuasora da publicidade e dos meios audiovisuais de comunicação tem vindo a banalizar.
Mesmo assim, apesar de todas as atrocidades etnográficas a que impavidamente temos vindo a assistir, o Natal é, e será sempre, a festa do lar, a apoteose da criança, um hino de paz que apela à fraternidade humana.
À procura do Natal algarvio
Tal como acima ficou explicitado, não existe hoje propriamente um Natal algarvio. Contudo, tempos houve em que as manifestações natalícias se transformavam em verdadeiras festas da comunidade, com ligeiras ou salientes afirmações da cultura local, que se transformavam em peculiares variações, de região para região, às vezes mesmo de concelho para concelho. Nas comunas rurais sempre se evidenciou um sentimento de solidariedade e de confraternização entre os seus membros, ao qual o espírito religioso emprestava uma forte consistência. Era uma festa deambulatória, se assim se lhe pode chamar, usando o lar e a igreja coma balizas duma intercomunicabilidade fraternal em que as dissensões e incompatibilidades entre as pessoas se perdoavam e desfaziam num amplexo, que o respectivo pároco se esforçava por estreitar. Na região algarvia, dum luminoso cenário azul, falta-lhe na noite de consoada a neve e o frio enregelante, capaz de reter as pessoas no aconchego da cálida lareira.
Antigamente, logo após a consoada, as famílias costumavam visitar-se na noite de Natal, tradição que até há bem pouco se conservava no interior algarvio. As crianças saíam com os pais a visitar os lares mais queridos, comendo deliciosos pastéis de mel e provando espirituosos vinhos. A bondosa inocência do serrenho algarvio impregnava a noite de Natal com um fraterno calor humano verdadeiramente inigualável.
Na esperança de encontrarmos a chama ardente desse passado cultural, deslocamo-nos até ao concelho de S. Brás de Alportel, perdido na serra algarvia, cujos lugarejos percorremos ao sabor de seculares caminhos. Falamos com alguns anciãos de diferentes sítios, com pessoas instruídas e até com alguns jovens. No avaliação deste ligeiro inquérito, verificámos que as tradições antigas já se perderam, que na sua grande maioria são irrecuperáveis, que a juventude pouco se interessa com o passado, que a televisão faz reter as pessoas em casa, que a carestia de vida exterminou quase por completo as visitas aos lares, e, em suma, que o Natal se tornou na noite em que se recebem os presentes. Concordam todos que se trata da festa da família, marcada pela ceia natalícia e pela convivência com as crianças. Não obstante, os jovens preferem mais a noite de Passagem de Ano do que a noite de Natal, pois que, não se sentindo obrigados a ficar em casa com a família, reúnem-se em grupo para saírem até ao litoral ou às cidades mais cosmopolitas onde dançam e bebem até ao raiar da manhã. Surgiu mesmo uma nova tradição: a de presenciar o nascer do sol do Ano Novo.
Todavia, algo permanece ainda vivo do tradicional Natal algarvio, para alguns tão longínquo, mas para outros ainda saudosamente presente, sobretudo na memória dos mais idosos. Acima de tudo mantêm-se a Ceia de Natal, alguma gastronomia tradicional, a reunião da família e o presépio. Porém, são já raros os cantadores populares das janeiras e reisadas, cujos grupos de cantares se designam por “charoleiros”.
O dia de Natal continua a ser insofismavelmente o dia da Família, cujos membros se reúnem na casa dos pais, na do filho mais velho ou na do irmão mais “remediado". Curiosamente, ainda ouvimos falar dos morgados, termo que servia para designar os indivíduos mais ricos, em cujos lares se faziam lautas ceias de vários pratos, imensa doçaria e animada festa, para a qual se convidava o pároco. Durante a noite jogavam-se às cartas, contavam-se histórias antigas, revivia-se a memória dos antepassados, cantavam-se velhas modinhas, mimoseavam-se os mais idosos, presenteavam-se as crianças, filhos e netos. Às vezes reuniam-se numa só casa dezenas de familiares e amigos para celebrarem em conjunto a fraternidade natalícia.
Para estes lados da serra algarvia, e nesta altura do ano, vêem-se numerosas viaturas de emigrantes que apressadamente regressam aos seus lares de origem, para confraternizarem e reunirem-se com a família. A necessidade de afirmação do seu sucesso económico leva-os, por vezes, a realizarem ruidosas festas a que não faltam os acostumados foguetes.
Nos lares mais tradicionais, e que possuem antigas lareiras, queimam-se grossos madeiros, que se colocam atrás do fogo. Reza a tradição local que os rapazes solteiros, para no ano que se avizinha serem bafejados pela sorte, têm que durante a noite visitar nove madeiros, comendo filhós e bebendo vinho novo. Mas hoje já poucas casas se podem dar a esse luxo de receber tanta gente e de ter uma lareira acesa durante todos esses dias. Aliás, para combater o trio existem modernos caloríferos, para além de que as novas construções (os modernos apartamentos) nem sempre possuem fogão nem sala. De qualquer modo, dizem que quando o madeiro não chega a consumir-se inteiramente ate ao Dia de Reis deve-se parti-lo em pequenos pedaços, que servem para nos dias de tempestade se voltar a acender, evitando-se assim que algum raio fulmine o lar. Além disso, o Natal é também a festa da lareira, ou do ancestral fogo sagrado, e quanto maior for o madeiro e mais tempo durar a sua lenta incineração, maior e mais saudável ficará a seara. Parece que também dá mau agoiro não comer bolotas ou castanhas nas vésperas de Natal.
O presépio é tradição inalterável. Toda a gente monta o presépio, que nas casas mais modernas figura, por vezes debaixo de um incaracterístico e profano “pinheirinho”, enfeitado com luminosos conjuntos eléctricos. Nos lares mais antigos, porém, entroniza-se o Menino, numa espécie de altar, ou peanha, que as moças casadoiras constroem sobre uma mesa, sobrepondo varias gavetas invertidas e de tamanhos sucessivamente menores, cobertas de alvas toalhas de linho, enfeitadas com lamparinas de azeite, frutos variados, bonecos alegóricos à quadra natalícia e as tradicionais searas. Convém esclarecer que estas searas, com um significado simbólico de ancestral origem, obtêm-se colocando em pequenos recipientes uma porção de cereais, geralmente trigo, cevada, lentilhas, grãos ou centeio, mergulhados em água, que passados alguns dias germinam e crescem com colorações de um verde amarelado e suave, semelhante aos das verdadeiras searas. No último degrau desta curiosíssima pirâmide figurava o Menino Jesus, emoldurado pela luz radiante das luminárias, em volta do qual se reuniam os mais jovens, para no Dia de Reis entoarem alguns cânticos bastante peculiares:
O meu menino Jesus
Está lá alto na tribuna;
Está pedindo a sua mãe,
Que nos dê muita fortuna.
Eu vim ver este presépio,
Qual será o meu destino,
Por ser noite de ano bom,
Venho cantar ao menino.
Hei-de dar ao menino
Quatro, cinco, nove, seis,
E uma camisinha fina
Pra vestir, Dia de Reis.
Hei-de dar ao menino
Um galão pra cintura;
Que ele também me há-de dar
Um lugar na sepultura.
A ceia de Natal
Junto ao presépio montava-se a mesa para a ceia, repleta de enchidos, presunto, carnes variadas, deliciosos bolos de mel, filhós, fatias douradas, brinhóis, “empanadilhas” de batata-doce, estrelas de figo, queijos de figo, bolos de amêndoa, dons-rodrigos, figos torrados, amêndoas, pinhões, avelãs e nozes, tudo isto acompanhado de espirituosos vinhos e da saborosa medronheira algarvia. Ao contrário do bacalhau minhoto, come-se no Algarve um anafado galo, escolhido meses antes, o qual o povo desde logo designa por Galo do Natal. Porém, nas casas mais opulentas há quem mate um porco, cuja carne e cuidadosamente repartida, salgada ou defumada, para que dure ate à Quaresma.
Durante a noite ou depois da consoada alguns grupos de rapazes vão cantando de casa em casa até à hora da Missa do Galo. Entretanto, os chefes das famílias mais gradas da freguesia dirigem-se à igreja da paróquia, onde apresentam as boas-festas ao pároco e distribuem esmolas aos pobres. À meia-noite celebra-se a Missa do Galo, cujo templo foi previamente decorado, pelas senhoras mais respeitáveis da freguesia, com flores, velas e um magnífico presépio. No fim da Missa o pároco dá o Menino-Jesus a beijar aos fiéis, regressando depois todos a casa, com os mais novos a cantarolar algumas quadras alusivas à época, quando não se reúnem à volta de um madeiro ardendo ao ar livre, cantando e dançando um qualquer improvisado corridinho.
No dia seguinte, come-se o que sobrou da noite da consoada, voltando-se a reunir a família. Porém a alegria e bastante menor. Nas localidades da faixa litoral, especialmente nos bairros de pescadores, come-se pelo Natal o célebre leitão, litão, ou “peixe-de-cor”, que não é mais do que um pequeno esqualo, conhecido por pata-roxa, também aqui designado por caneja. Este pequeno tubarão, para ser transformado numa iguaria do natal algarvio, precisa de ter no mínimo um metro de comprimento para poder pesar pouco mais de um kilo. Prepara-se “escalado”, ou seja, aberto ao meio, depois é distendido numas canas em forma de papagaio, e após salgado põe-se a secar à soleira da porta de casa durante uma semana. Guarda-se depois em sítio seco para ser consumido no Inverno, sobretudo na consoada por ser mais barato do que o bacalhau. Este costume ainda hoje se mantém em Olhão e Portimão.
Curiosamente, na serra repete-se pelo Carnaval uma ceia algo semelhante à do Natal, com filhós e o tal, indispensável, galo. Por isto se vê quão simples e pobre se mantém a gastronomia por estas bandas, onde a agricultura continua a ser rudimentar, mal dando para a sobrevivência da família.
Na passagem de ano, ou noite de Ano Novo, a festa é semelhante à do Natal, embora muito mais alegre, marchetada por frequentes libações e bailaricos, que os mais jovens organizam nas sociedades recreativas ou nos clubes populares. As charolas e o cantar das janeiras são as manifestações mais castiças do povo serrenho e as mais características desta época. No Dia de Reis era costume fazer-se o bolo-rei, cuja confecção difere muito daquela que já nos habituamos a consumir durante toda a quadra natalícia. As tradicionais janeiras ou reisadas cantavam-se pela última vez, encerrando-se, deste modo, o mais belo período festivo do ano.
Presentemente, nas cidades do litoral algarvio já não existem quaisquer manifestações populares que identifiquem aquilo a que poderíamos chamar um “Natal diferente”. As tradições esbateram-se ou perderam irrecuperavelmente o sentido peculiar do Natal.
Hoje, o Natal é de cada um, nunca para todos, mas cada vez será menos do Algarve.
(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias» em 24-12-1985)
Dificilmente se encontram hoje no Algarve os resquícios da festa natalícia genuinamente regional. Mesmo nos lugares mais recônditos da serra se esbateram as tradições, apesar de em toda a província não ser estranha a alegria que a verdadeira festa do lar traduz no espírito da família. No fundo, o Natal, quer seja minhoto, transmontano, beirão ou algarvio, contem um denominador comum: a celebração de uma festa religiosa com características muito intimas, na qual a família se reúne numa verdadeira apoteose dos seus continuadores – as crianças. O Natal é, por excelência, a festa da criança, o prolongamento da família, a personificação da unidade e da esperança no futuro.
Os presentes, com que no início da nossa Era os Reis Magos homenagearam o Deus-Menino, são hoje simbolicamente os mesmos – embora materialmente muito diferentes – e servem para traduzir a felicidade do lar, a paz e a amizade entre os homens. Por isso, Natal sem consoada, sem presépio nem prendas, não é Natal. E estas são, sem sombra para dúvidas, as características mais gerais da festa, que, cada vez mais, se tornou pertença de um património universal.
Verifica-se, porém, que as influências culturais resultantes de uma heterogeneidade geomorfológica de insondável ancestralidade marchetaram as celebrações religiosas com dispares manifestações populares, que, de algum modo, as diferenciavam, criando-lhes uma individualidade peculiar, e, por vezes, algo estranha e muito curiosa. Com o seu estudo se preocuparam os etnógrafos e antropólogos, mas para o seu progressivo esvaziamento parece estar a contribuir um hodierno progresso tecnológico, emanado duma sociedade consumista e alienante, que tende a estandardizar as próprias raízes culturais dos povos. O conservadorismo etnográfico, e a reserva do tradicional, assume-se hoje, numa perspectiva mais cosmopolita, como sintoma de atraso civilizacional. A mundialização do pinheiro escandinavo, e do Pai Natal normando, superaram, por observância da normalização comercial, os padrões culturais e as manifestações populares do Natal latino, esse sim, genuinamente cristão e profundamente visigótico. De tal forma assim é que o Natal secularizou-se para dar lugar a uma festa social, altamente vulgarizada, profundamente dependente duma indústria de mercado, que a força persuasora da publicidade e dos meios audiovisuais de comunicação tem vindo a banalizar.
Mesmo assim, apesar de todas as atrocidades etnográficas a que impavidamente temos vindo a assistir, o Natal é, e será sempre, a festa do lar, a apoteose da criança, um hino de paz que apela à fraternidade humana.
À procura do Natal algarvio
Tal como acima ficou explicitado, não existe hoje propriamente um Natal algarvio. Contudo, tempos houve em que as manifestações natalícias se transformavam em verdadeiras festas da comunidade, com ligeiras ou salientes afirmações da cultura local, que se transformavam em peculiares variações, de região para região, às vezes mesmo de concelho para concelho. Nas comunas rurais sempre se evidenciou um sentimento de solidariedade e de confraternização entre os seus membros, ao qual o espírito religioso emprestava uma forte consistência. Era uma festa deambulatória, se assim se lhe pode chamar, usando o lar e a igreja coma balizas duma intercomunicabilidade fraternal em que as dissensões e incompatibilidades entre as pessoas se perdoavam e desfaziam num amplexo, que o respectivo pároco se esforçava por estreitar. Na região algarvia, dum luminoso cenário azul, falta-lhe na noite de consoada a neve e o frio enregelante, capaz de reter as pessoas no aconchego da cálida lareira.
Antigamente, logo após a consoada, as famílias costumavam visitar-se na noite de Natal, tradição que até há bem pouco se conservava no interior algarvio. As crianças saíam com os pais a visitar os lares mais queridos, comendo deliciosos pastéis de mel e provando espirituosos vinhos. A bondosa inocência do serrenho algarvio impregnava a noite de Natal com um fraterno calor humano verdadeiramente inigualável.
Na esperança de encontrarmos a chama ardente desse passado cultural, deslocamo-nos até ao concelho de S. Brás de Alportel, perdido na serra algarvia, cujos lugarejos percorremos ao sabor de seculares caminhos. Falamos com alguns anciãos de diferentes sítios, com pessoas instruídas e até com alguns jovens. No avaliação deste ligeiro inquérito, verificámos que as tradições antigas já se perderam, que na sua grande maioria são irrecuperáveis, que a juventude pouco se interessa com o passado, que a televisão faz reter as pessoas em casa, que a carestia de vida exterminou quase por completo as visitas aos lares, e, em suma, que o Natal se tornou na noite em que se recebem os presentes. Concordam todos que se trata da festa da família, marcada pela ceia natalícia e pela convivência com as crianças. Não obstante, os jovens preferem mais a noite de Passagem de Ano do que a noite de Natal, pois que, não se sentindo obrigados a ficar em casa com a família, reúnem-se em grupo para saírem até ao litoral ou às cidades mais cosmopolitas onde dançam e bebem até ao raiar da manhã. Surgiu mesmo uma nova tradição: a de presenciar o nascer do sol do Ano Novo.
Todavia, algo permanece ainda vivo do tradicional Natal algarvio, para alguns tão longínquo, mas para outros ainda saudosamente presente, sobretudo na memória dos mais idosos. Acima de tudo mantêm-se a Ceia de Natal, alguma gastronomia tradicional, a reunião da família e o presépio. Porém, são já raros os cantadores populares das janeiras e reisadas, cujos grupos de cantares se designam por “charoleiros”.
O dia de Natal continua a ser insofismavelmente o dia da Família, cujos membros se reúnem na casa dos pais, na do filho mais velho ou na do irmão mais “remediado". Curiosamente, ainda ouvimos falar dos morgados, termo que servia para designar os indivíduos mais ricos, em cujos lares se faziam lautas ceias de vários pratos, imensa doçaria e animada festa, para a qual se convidava o pároco. Durante a noite jogavam-se às cartas, contavam-se histórias antigas, revivia-se a memória dos antepassados, cantavam-se velhas modinhas, mimoseavam-se os mais idosos, presenteavam-se as crianças, filhos e netos. Às vezes reuniam-se numa só casa dezenas de familiares e amigos para celebrarem em conjunto a fraternidade natalícia.
Para estes lados da serra algarvia, e nesta altura do ano, vêem-se numerosas viaturas de emigrantes que apressadamente regressam aos seus lares de origem, para confraternizarem e reunirem-se com a família. A necessidade de afirmação do seu sucesso económico leva-os, por vezes, a realizarem ruidosas festas a que não faltam os acostumados foguetes.
Nos lares mais tradicionais, e que possuem antigas lareiras, queimam-se grossos madeiros, que se colocam atrás do fogo. Reza a tradição local que os rapazes solteiros, para no ano que se avizinha serem bafejados pela sorte, têm que durante a noite visitar nove madeiros, comendo filhós e bebendo vinho novo. Mas hoje já poucas casas se podem dar a esse luxo de receber tanta gente e de ter uma lareira acesa durante todos esses dias. Aliás, para combater o trio existem modernos caloríferos, para além de que as novas construções (os modernos apartamentos) nem sempre possuem fogão nem sala. De qualquer modo, dizem que quando o madeiro não chega a consumir-se inteiramente ate ao Dia de Reis deve-se parti-lo em pequenos pedaços, que servem para nos dias de tempestade se voltar a acender, evitando-se assim que algum raio fulmine o lar. Além disso, o Natal é também a festa da lareira, ou do ancestral fogo sagrado, e quanto maior for o madeiro e mais tempo durar a sua lenta incineração, maior e mais saudável ficará a seara. Parece que também dá mau agoiro não comer bolotas ou castanhas nas vésperas de Natal.
O presépio é tradição inalterável. Toda a gente monta o presépio, que nas casas mais modernas figura, por vezes debaixo de um incaracterístico e profano “pinheirinho”, enfeitado com luminosos conjuntos eléctricos. Nos lares mais antigos, porém, entroniza-se o Menino, numa espécie de altar, ou peanha, que as moças casadoiras constroem sobre uma mesa, sobrepondo varias gavetas invertidas e de tamanhos sucessivamente menores, cobertas de alvas toalhas de linho, enfeitadas com lamparinas de azeite, frutos variados, bonecos alegóricos à quadra natalícia e as tradicionais searas. Convém esclarecer que estas searas, com um significado simbólico de ancestral origem, obtêm-se colocando em pequenos recipientes uma porção de cereais, geralmente trigo, cevada, lentilhas, grãos ou centeio, mergulhados em água, que passados alguns dias germinam e crescem com colorações de um verde amarelado e suave, semelhante aos das verdadeiras searas. No último degrau desta curiosíssima pirâmide figurava o Menino Jesus, emoldurado pela luz radiante das luminárias, em volta do qual se reuniam os mais jovens, para no Dia de Reis entoarem alguns cânticos bastante peculiares:
O meu menino Jesus
Está lá alto na tribuna;
Está pedindo a sua mãe,
Que nos dê muita fortuna.
Eu vim ver este presépio,
Qual será o meu destino,
Por ser noite de ano bom,
Venho cantar ao menino.
Hei-de dar ao menino
Quatro, cinco, nove, seis,
E uma camisinha fina
Pra vestir, Dia de Reis.
Hei-de dar ao menino
Um galão pra cintura;
Que ele também me há-de dar
Um lugar na sepultura.
A ceia de Natal
Junto ao presépio montava-se a mesa para a ceia, repleta de enchidos, presunto, carnes variadas, deliciosos bolos de mel, filhós, fatias douradas, brinhóis, “empanadilhas” de batata-doce, estrelas de figo, queijos de figo, bolos de amêndoa, dons-rodrigos, figos torrados, amêndoas, pinhões, avelãs e nozes, tudo isto acompanhado de espirituosos vinhos e da saborosa medronheira algarvia. Ao contrário do bacalhau minhoto, come-se no Algarve um anafado galo, escolhido meses antes, o qual o povo desde logo designa por Galo do Natal. Porém, nas casas mais opulentas há quem mate um porco, cuja carne e cuidadosamente repartida, salgada ou defumada, para que dure ate à Quaresma.
Durante a noite ou depois da consoada alguns grupos de rapazes vão cantando de casa em casa até à hora da Missa do Galo. Entretanto, os chefes das famílias mais gradas da freguesia dirigem-se à igreja da paróquia, onde apresentam as boas-festas ao pároco e distribuem esmolas aos pobres. À meia-noite celebra-se a Missa do Galo, cujo templo foi previamente decorado, pelas senhoras mais respeitáveis da freguesia, com flores, velas e um magnífico presépio. No fim da Missa o pároco dá o Menino-Jesus a beijar aos fiéis, regressando depois todos a casa, com os mais novos a cantarolar algumas quadras alusivas à época, quando não se reúnem à volta de um madeiro ardendo ao ar livre, cantando e dançando um qualquer improvisado corridinho.
No dia seguinte, come-se o que sobrou da noite da consoada, voltando-se a reunir a família. Porém a alegria e bastante menor. Nas localidades da faixa litoral, especialmente nos bairros de pescadores, come-se pelo Natal o célebre leitão, litão, ou “peixe-de-cor”, que não é mais do que um pequeno esqualo, conhecido por pata-roxa, também aqui designado por caneja. Este pequeno tubarão, para ser transformado numa iguaria do natal algarvio, precisa de ter no mínimo um metro de comprimento para poder pesar pouco mais de um kilo. Prepara-se “escalado”, ou seja, aberto ao meio, depois é distendido numas canas em forma de papagaio, e após salgado põe-se a secar à soleira da porta de casa durante uma semana. Guarda-se depois em sítio seco para ser consumido no Inverno, sobretudo na consoada por ser mais barato do que o bacalhau. Este costume ainda hoje se mantém em Olhão e Portimão.
Curiosamente, na serra repete-se pelo Carnaval uma ceia algo semelhante à do Natal, com filhós e o tal, indispensável, galo. Por isto se vê quão simples e pobre se mantém a gastronomia por estas bandas, onde a agricultura continua a ser rudimentar, mal dando para a sobrevivência da família.
Na passagem de ano, ou noite de Ano Novo, a festa é semelhante à do Natal, embora muito mais alegre, marchetada por frequentes libações e bailaricos, que os mais jovens organizam nas sociedades recreativas ou nos clubes populares. As charolas e o cantar das janeiras são as manifestações mais castiças do povo serrenho e as mais características desta época. No Dia de Reis era costume fazer-se o bolo-rei, cuja confecção difere muito daquela que já nos habituamos a consumir durante toda a quadra natalícia. As tradicionais janeiras ou reisadas cantavam-se pela última vez, encerrando-se, deste modo, o mais belo período festivo do ano.
Presentemente, nas cidades do litoral algarvio já não existem quaisquer manifestações populares que identifiquem aquilo a que poderíamos chamar um “Natal diferente”. As tradições esbateram-se ou perderam irrecuperavelmente o sentido peculiar do Natal.
Hoje, o Natal é de cada um, nunca para todos, mas cada vez será menos do Algarve.
(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias» em 24-12-1985)
Se por 85 já era assim , imagine agora como está.
ResponderEliminarDe facto a sociedade tende a caminhar para alienação total e a desenraização das pessoas do seu passado e da sua cultura.
Eu penso que é de propósito e que a intencionalidade de dominar a população mundial no seu todo, sem fronteiras e estados soberanos e com o inglês com lingua oficial, é a origem desta situação.
Hoje, as pessoas estão despidas completamente de relegiosidade, da sua história e do seu passado e sobretudo sem qualquer noção de futuro.
vitor xelim
é engraçado que as gerações responsáveis pela morte de inumeras tradições e costumes se queixem que são as gerações mais novas que não se interessam...
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