José Carlos Vilhena Mesquita
O Algarve não é apenas sol e mar. Muitas vezes o dissemos e todos sabem que temos razão. Porém, o turismo algarvio continua insistindo na polarização do litoral, esquecendo o interior onde muitas vezes a beleza do campo e do património histórico se transforma num tonificante lenitivo para o «stress», ou para as enfadonhas e rotineiras férias nas praias. Há que pensar na organização de novos roteiros turísticos e na alternância praia/campo que possibilite ao visitante uma imagem mais objectiva da realidade algarvia. O facto de não levar o turista até à serra, só para que não veja a frugalidade económica dos habitantes ou o atraso “civilizacional” (se é que isso existe) dos seus costumes, e quanto a nós uma política errada. Confinar o turista ao espaço geográfico que medeia entre a praia e o hotel é um perfeito disparate, e esconder-lhe a própria beleza do Algarve, e afastá-lo da nossa cultura e do nosso riquíssimo artesanato. Os estrangeiros apreciam as nossas tradições e os nossos valores sociais, muitas vezes aqueles que o desenvolvimento económico-industrial fez desaparecer nos seus próprios países, sem esquecer que a sua canalização para o interior iria certamente desenvolver a economia local, tão marginalizada e esquecida, prestes a sofrer o ermamento humano e, como natural consequência, a desertificação.
Como sugestão ou alternativa aqui deixo a ideia de uma visita ate ao monte de S. Miguel, cuja panorâmica, salvo as devidas proporções, nada fica a dever à Fóia em Monchique. Acrescento ainda que o cerro de S. Miguel é muito mais do que um soberbo miradouro natural da serra, do Barrocal e da linha azul cristalina do nosso litoral, pois que outros atractivos e riquezas se podem ali observar. Vejamos então.
«O monte do Figo» na história
Na antiguidade sabe-se que o cerro de S. Miguel ou monte do Figo, como então era conhecido, servia de importante ponto de referência à navegação costeira, não sendo raras as alusões à sua estratégica localização nos mapas portulanos, textos literários e documentos históricos pertencentes aos Fenícios, Cartagineses, Gregos, Romanos, Vikings, Árabes e outros povos cristãos da Europa do Norte. Inclusivamente, atribuíam-se-lhe poderes místicos, obscuros e fantasiosos, provenientes de uma fértil imaginária, intrínseca aos povos marítimos. Mitólogos como W. Christ Imullenhoff consideravam aquela elevação como uma montanha sagrada, uma espécie de Olimpo onde as divindades marítimas se reuniam em sigilosa conferência. O eminente arqueólogo prof. Schulten chegou mesmo a identificar o cabo Zéfiro, citado por Avieno no seu imortal poema Ora Marítima, como sendo o monte Figo, opinião de que comungam outros investigadores, nomeadamente o prof. Mendes Correia e o espanhol Antonio Arribas, o que parece definitivamente afastar quaisquer dúvidas acerca da identificação do tartéssico cabo Zéfiro com o cerro de S. Miguel.
Não obstante estas opiniões abalizadas de estudiosos célebres, como Schulten, penso que o problema não está ainda totalmente clarificado, e francamente, na minha opinião, não me parece muito lógico, ou pelo menos muito fácil de compreender, que um cerro de 400 metros de altitude e a cerca de duas léguas de distância da costa possa ser a mesma coisa que um cabo. Mais lógico seria, talvez, identificar o cabo Zéfiro com o cabo de Santa Maria e considerar como seu perceptível e mais elevado ponto de referência o Monte do Figo. Mas, enfim, tudo isso são questões que transcendem os meus precários conhecimentos.
Ermida de S. Miguel
Através da reconquista Afonsina cristianizaram-se os locais místicos ligados ao paganismo greco-romano, não escapando a essa onda de renovação religiosa o simples Monte do Figo, em cujo alto, reza a tradição, se teria erguido uma ermida para assinalar o aparecimento do Arcanjo S. Miguel. Contudo, no cume do cerro nada subsiste que prove a sua anterior existência, e de concreto apenas se sabe que o bispo D. Francisco Gomes do Avelar ali mandou colocar um pedestal de pedra com uma enorme cruz de madeira, que o tempo se encarregou de fazer desaparecer.
Todavia, na encosta norte do cerro ergueu-se, em data que desconhecemos, mas que deve rondar os séculos XV ou XVI, uma (nova) ermida, bastante singela, de tipo rural, denotando fortes influências góticas e visíveis reconstruções, que, por certo, alteraram a sua traça original. O último restauro processou-se no ano passado [1983], e tal como, desde 1943, ficou a dever-se à iniciativa do padre Isidoro Domingos da Silva, pároco de Moncarapacho, que nesta freguesia tem desenvolvido, de parceria com o Dr. José Fernandes Mascarenhas, uma acção cultural verdadeiramente brilhante e assinalável.
O seu recheio é bastante pobre, de uma só nave, chão de grés em ladrilho, um único altar dois degraus acima do nível central, ostentando ao centro uma antiga imagem do padroeiro, ladeada por duas estatuetas de Nossa Senhora do Socorro. Possui alguns bancos corridos em castanho de antiga fábrica, à esquerda um secular púlpito (certamente resquício da primitiva construção), com boa acústica e uma improvisada sacristia. O referido pároco ali reza missa todos os últimos domingos de cada mês, a ela assistindo a população do barranco de S. Miguel, que não ultrapassa os 20 habitantes.
Curiosamente, a ermida possui campanário, mas não tem sino, o que, segundo apurámos, é uma aspiração destas gentes que vivem placidamente na lonjura da serra.
Potencialidades e dificuldades
Depois que a radiotelevisão ali instalou um retransmissor, depressa se abriram os convenientes acessos rodoviários, e hoje facilmente qualquer cidadão pode subir até ao cume do monte para dali desfrutar duma panorâmica de indescritível beleza.
A altitude atinge os 411 metros acima do nível do mar, o solo é calcário e no cume abundam vários minerais como a calcite, cor de mel rosado, e a halina, os calhaus rolados de quartzo e quartzites, um filão de basalto alterado com olivina e na encosta sul vêem-se imensas rochas com amonites fossilizadas.
Na face norte, a poucos metros do retransmissor, encontra-se o Barranco de S. Miguel, pequeno aglomerado habitacional, que em 1964 totalizava uma centena de moradores, mas que hoje não ultrapassa duas dezenas de locatários. O abandono da população deveu-se em larga medida à fraca rentabilidade agrícola, à escassez da água e, fundamentalmente, à emigração, não propriamente para o estrangeiro mas antes para a orla litoral do Algarve.
A zona florestal tem vindo a diminuir, as secas sucedem-se, os poços esgotam-se e as privações de toda a ordem têm tornado a vida insustentável àqueles que persistem em ficar. As crianças, que são em reduzido número, para irem à escola primária do Azinheiro, na freguesia de Estoi, deslocam-se quatro quilómetros, desbravando caminho entre os cerros. Os jovens têm de ir para Faro estudar, o que é muito dispendioso e praticamente incomportável. O analfabetismo ronda os oitenta por cento e a fuga à escolaridade obrigatória não é um hábito mas antes uma necessidade.
A luz eléctrica foi instalada há cerca de cinco anos [1979], não possuem água encanada nem fontanário, as instalações sanitárias (quando existem) são rudimentares, não há telefones, não lêem jornais e o único contacto com o quotidiano exterior é feito através da rádio (que ouvem com frequência) e da televisão, cujo aparelho poucos possuem, mas que vêem amiúde, sendo o programa preferido a telenovela, que curiosamente designam por «Gabriela», qualquer que seja o seu título original.
Nos últimos quatro anos tiveram de comprar água nas imediações mais próximas, a qual transportavam em mulas e cântaros para utilização doméstica e amanho de algumas sementeiras, pois o único poço (que é comunitário) só este ano, devido à forte pluviosidade, atingiu um nível razoável. A inquinação das águas e a deflagração de um surto de febres tifóides são perigos constantes e iminentes.
A produção agrícola é fundamentalmente composta por cereais: centeio, trigo, cevada e outros. Colhem alguns frutos num terreno difícil, onde só resistem com abundância as alfarrobeiras, oliveiras, figueiras e amendoeiras, cuja produção poderia ser aproveitada de forma conveniente à sua comercialização.
A exuberância silvestre, fortemente marcada pela presença do rosmaninho, tomilho, giesta, alecrim, rosas albardeiras e outros arbustos floridos, transforma o terreno numa vasta área propícia à produção de mel.
A constante desarborização da serra tem sido a causa próxima da secura e esterilização dos solos, situação que futuramente poderá levar ao desaparecimento deste interessante aglomerado que dá pelo nome de Barranco de S. Miguel.
Esperemos que as autoridades do turismo regional aproveitem ao máximo as belezas naturais deste local, onde se pode desfrutar de uma beleza panorâmica inigualável no Algarve. Sugerimos também aos futuros visitantes do cerro de S. Miguel que não deixem de confraternizar com o povo do sítio de Barrancos, esquecido e marginalizado desde há largas décadas, sofrendo em silêncio as amarguras de uma existência praticamente sem futuro.
(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias», em 24-9-1984)
O Algarve não é apenas sol e mar. Muitas vezes o dissemos e todos sabem que temos razão. Porém, o turismo algarvio continua insistindo na polarização do litoral, esquecendo o interior onde muitas vezes a beleza do campo e do património histórico se transforma num tonificante lenitivo para o «stress», ou para as enfadonhas e rotineiras férias nas praias. Há que pensar na organização de novos roteiros turísticos e na alternância praia/campo que possibilite ao visitante uma imagem mais objectiva da realidade algarvia. O facto de não levar o turista até à serra, só para que não veja a frugalidade económica dos habitantes ou o atraso “civilizacional” (se é que isso existe) dos seus costumes, e quanto a nós uma política errada. Confinar o turista ao espaço geográfico que medeia entre a praia e o hotel é um perfeito disparate, e esconder-lhe a própria beleza do Algarve, e afastá-lo da nossa cultura e do nosso riquíssimo artesanato. Os estrangeiros apreciam as nossas tradições e os nossos valores sociais, muitas vezes aqueles que o desenvolvimento económico-industrial fez desaparecer nos seus próprios países, sem esquecer que a sua canalização para o interior iria certamente desenvolver a economia local, tão marginalizada e esquecida, prestes a sofrer o ermamento humano e, como natural consequência, a desertificação.
Como sugestão ou alternativa aqui deixo a ideia de uma visita ate ao monte de S. Miguel, cuja panorâmica, salvo as devidas proporções, nada fica a dever à Fóia em Monchique. Acrescento ainda que o cerro de S. Miguel é muito mais do que um soberbo miradouro natural da serra, do Barrocal e da linha azul cristalina do nosso litoral, pois que outros atractivos e riquezas se podem ali observar. Vejamos então.
«O monte do Figo» na história
Na antiguidade sabe-se que o cerro de S. Miguel ou monte do Figo, como então era conhecido, servia de importante ponto de referência à navegação costeira, não sendo raras as alusões à sua estratégica localização nos mapas portulanos, textos literários e documentos históricos pertencentes aos Fenícios, Cartagineses, Gregos, Romanos, Vikings, Árabes e outros povos cristãos da Europa do Norte. Inclusivamente, atribuíam-se-lhe poderes místicos, obscuros e fantasiosos, provenientes de uma fértil imaginária, intrínseca aos povos marítimos. Mitólogos como W. Christ Imullenhoff consideravam aquela elevação como uma montanha sagrada, uma espécie de Olimpo onde as divindades marítimas se reuniam em sigilosa conferência. O eminente arqueólogo prof. Schulten chegou mesmo a identificar o cabo Zéfiro, citado por Avieno no seu imortal poema Ora Marítima, como sendo o monte Figo, opinião de que comungam outros investigadores, nomeadamente o prof. Mendes Correia e o espanhol Antonio Arribas, o que parece definitivamente afastar quaisquer dúvidas acerca da identificação do tartéssico cabo Zéfiro com o cerro de S. Miguel.
Não obstante estas opiniões abalizadas de estudiosos célebres, como Schulten, penso que o problema não está ainda totalmente clarificado, e francamente, na minha opinião, não me parece muito lógico, ou pelo menos muito fácil de compreender, que um cerro de 400 metros de altitude e a cerca de duas léguas de distância da costa possa ser a mesma coisa que um cabo. Mais lógico seria, talvez, identificar o cabo Zéfiro com o cabo de Santa Maria e considerar como seu perceptível e mais elevado ponto de referência o Monte do Figo. Mas, enfim, tudo isso são questões que transcendem os meus precários conhecimentos.
Ermida de S. Miguel
Através da reconquista Afonsina cristianizaram-se os locais místicos ligados ao paganismo greco-romano, não escapando a essa onda de renovação religiosa o simples Monte do Figo, em cujo alto, reza a tradição, se teria erguido uma ermida para assinalar o aparecimento do Arcanjo S. Miguel. Contudo, no cume do cerro nada subsiste que prove a sua anterior existência, e de concreto apenas se sabe que o bispo D. Francisco Gomes do Avelar ali mandou colocar um pedestal de pedra com uma enorme cruz de madeira, que o tempo se encarregou de fazer desaparecer.
Todavia, na encosta norte do cerro ergueu-se, em data que desconhecemos, mas que deve rondar os séculos XV ou XVI, uma (nova) ermida, bastante singela, de tipo rural, denotando fortes influências góticas e visíveis reconstruções, que, por certo, alteraram a sua traça original. O último restauro processou-se no ano passado [1983], e tal como, desde 1943, ficou a dever-se à iniciativa do padre Isidoro Domingos da Silva, pároco de Moncarapacho, que nesta freguesia tem desenvolvido, de parceria com o Dr. José Fernandes Mascarenhas, uma acção cultural verdadeiramente brilhante e assinalável.
O seu recheio é bastante pobre, de uma só nave, chão de grés em ladrilho, um único altar dois degraus acima do nível central, ostentando ao centro uma antiga imagem do padroeiro, ladeada por duas estatuetas de Nossa Senhora do Socorro. Possui alguns bancos corridos em castanho de antiga fábrica, à esquerda um secular púlpito (certamente resquício da primitiva construção), com boa acústica e uma improvisada sacristia. O referido pároco ali reza missa todos os últimos domingos de cada mês, a ela assistindo a população do barranco de S. Miguel, que não ultrapassa os 20 habitantes.
Curiosamente, a ermida possui campanário, mas não tem sino, o que, segundo apurámos, é uma aspiração destas gentes que vivem placidamente na lonjura da serra.
Potencialidades e dificuldades
Depois que a radiotelevisão ali instalou um retransmissor, depressa se abriram os convenientes acessos rodoviários, e hoje facilmente qualquer cidadão pode subir até ao cume do monte para dali desfrutar duma panorâmica de indescritível beleza.
A altitude atinge os 411 metros acima do nível do mar, o solo é calcário e no cume abundam vários minerais como a calcite, cor de mel rosado, e a halina, os calhaus rolados de quartzo e quartzites, um filão de basalto alterado com olivina e na encosta sul vêem-se imensas rochas com amonites fossilizadas.
Na face norte, a poucos metros do retransmissor, encontra-se o Barranco de S. Miguel, pequeno aglomerado habitacional, que em 1964 totalizava uma centena de moradores, mas que hoje não ultrapassa duas dezenas de locatários. O abandono da população deveu-se em larga medida à fraca rentabilidade agrícola, à escassez da água e, fundamentalmente, à emigração, não propriamente para o estrangeiro mas antes para a orla litoral do Algarve.
A zona florestal tem vindo a diminuir, as secas sucedem-se, os poços esgotam-se e as privações de toda a ordem têm tornado a vida insustentável àqueles que persistem em ficar. As crianças, que são em reduzido número, para irem à escola primária do Azinheiro, na freguesia de Estoi, deslocam-se quatro quilómetros, desbravando caminho entre os cerros. Os jovens têm de ir para Faro estudar, o que é muito dispendioso e praticamente incomportável. O analfabetismo ronda os oitenta por cento e a fuga à escolaridade obrigatória não é um hábito mas antes uma necessidade.
A luz eléctrica foi instalada há cerca de cinco anos [1979], não possuem água encanada nem fontanário, as instalações sanitárias (quando existem) são rudimentares, não há telefones, não lêem jornais e o único contacto com o quotidiano exterior é feito através da rádio (que ouvem com frequência) e da televisão, cujo aparelho poucos possuem, mas que vêem amiúde, sendo o programa preferido a telenovela, que curiosamente designam por «Gabriela», qualquer que seja o seu título original.
Nos últimos quatro anos tiveram de comprar água nas imediações mais próximas, a qual transportavam em mulas e cântaros para utilização doméstica e amanho de algumas sementeiras, pois o único poço (que é comunitário) só este ano, devido à forte pluviosidade, atingiu um nível razoável. A inquinação das águas e a deflagração de um surto de febres tifóides são perigos constantes e iminentes.
A produção agrícola é fundamentalmente composta por cereais: centeio, trigo, cevada e outros. Colhem alguns frutos num terreno difícil, onde só resistem com abundância as alfarrobeiras, oliveiras, figueiras e amendoeiras, cuja produção poderia ser aproveitada de forma conveniente à sua comercialização.
A exuberância silvestre, fortemente marcada pela presença do rosmaninho, tomilho, giesta, alecrim, rosas albardeiras e outros arbustos floridos, transforma o terreno numa vasta área propícia à produção de mel.
A constante desarborização da serra tem sido a causa próxima da secura e esterilização dos solos, situação que futuramente poderá levar ao desaparecimento deste interessante aglomerado que dá pelo nome de Barranco de S. Miguel.
Esperemos que as autoridades do turismo regional aproveitem ao máximo as belezas naturais deste local, onde se pode desfrutar de uma beleza panorâmica inigualável no Algarve. Sugerimos também aos futuros visitantes do cerro de S. Miguel que não deixem de confraternizar com o povo do sítio de Barrancos, esquecido e marginalizado desde há largas décadas, sofrendo em silêncio as amarguras de uma existência praticamente sem futuro.
(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias», em 24-9-1984)
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