José Carlos Vilhena Mesquita
Num país como o nosso, de reduzidas dimensões territoriais, é impensável que a festa da Natividade assuma proporções etnográficas dignas de elevado relevo. Além disso, em quase todo o mundo se celebra idêntica data, se bem que nem sempre com o mesmo espírito religioso e festivo que nós, europeus, lhe outorgamos.
Na realidade, desde os primórdios do cristianismo que se celebra esta solene data, muito embora se deva salientar que no início do século V se comemorava o nascimento de Cristo no mês de Janeiro, e no ano de 432 festejava-se simultaneamente no dia 25 de Dezembro a Natividade e a adoração dos Reis Magos. O estabelecimento desta data como aniversário do nascimento de Cristo deve-se a São João Crisóstomo, que no panegírico de S. Figolonio, pronunciado no ano de 386, defendeu a sua autenticidade. Houve, porém, que esperar pelo pontificado de Júlio II para definitivamente se estabelecer como dia de Natal a data de 25 de Dezembro.
A primitiva festa da Natividade consolidou-se durante a vigência do Papa Sisto III (432-440), e apontava já para o estabelecimento de duas celebrações bastante características: a do Presépio e a da Santa Missa, com as respectivas orações litúrgicas. A primeira deu grande impulso ao carácter festivo da celebração e realizava-se principalmente na basílica romana de Santa Maria, que passou desde então a denominar-se ad praesepe. Quanto aos ofícios litúrgicos, celebravam-se no mesmo templo e tinham um acentuado carácter mariano, obedecendo à clara intenção de converter a Natividade numa vigília nocturna, semelhante à que se celebrava na Páscoa.
A devoção e o gosto pela festa da Natividade acentuaram-se ainda mais quando o Papa Teodoro, no século VII, trouxe para Roma as relíquias do berço do Menino Jesus e das manjedouras dos animais que aqueceram a sua nudez. Muito embora nos pareça existir em tudo isto algo de fantasioso, o certo é que ainda hoje se veneram essas relíquias como se fossem autênticas. Por certo, o que importa é a sua simbologia e não a sua verosimilhança.
Associada à festa do Natal celebravam-se durante a Alta Idade Média três missas rezadas pelo Papa na Igreja de Santa Maria Maior, sendo de realçar a primeira, a da meia-noite, popularmente designada por missa do Galo por ser propiaquante gallorum canti. A segunda missa, a da alvorada, rezava-se na Igreja de Santa Anastásia, já inexistente, e a terceira na Basílica de São Pedro, às quais se outorgava um profundo sentido místico, já que a primeira significava o nascimento de Cristo, a segunda a felicidade que Cristo veio trazer aos homens e, a terceira a realização das promessas da lei santa.
Presentemente só a missa do Galo prevalece na tradição cristã e no espírito popular, se bem que a corrosão dos tempos e o materialismo da vida actual haja desbotado o seu significado. De qualquer modo, há que assinalar a permanência de algumas tradições de raiz medieval, que, nas terras do interior, ainda se vão mantendo, mau grado a aculturação motivada pelo surto emigratório. Mesmo assim, a época natalícia tem um carácter telúrico e vigoroso que, em certos casos, especialmente em Trás-os-Montes e nas Beiras, se assume como fonte inesgotável de conhecimentos nos domínios da etnografia e da demopsicologia. Como características gerais apontam-se a queima do madeiro ou cepo, a consoada, a Missa do Galo, o presépio, as Janeiras e Reis, os cortejos evocativos dos Reis Magos e os autos, entremezes e vilancicos.
A queima do madeiro ou do cepo
Em praticamente toldas as províncias do País se verifica a tradição do fogo da lareira familiar, alimentado por um enorme toro de madeira, que no Minho tem o nome de Canhoto, enquanto nas restantes regiões lhe chamam madeiro ou cepo.
Conforme a tradição, é preferível que o cepo seja de oliveira, árvore da paz, por ser dessa madeira a cruz de Cristo. Por outro lado, associam-se-lhe tradições profanas, pois que quanto mais grosso ele fosse mais gordo seria o porco para a matança do ano. Além disso, também se lhe atribuem poderes sobrenaturais, pois que os restos que não arderem serão guardados para com eles se preservar o lar das trovoadas e outras iras divinas. E para provar esta regra muitas lendas dramáticas se narram contra aqueles que violam a tradição e a crença do povo.
No fundo, a incineração do madeiro ou cepo não é mais do que a revitalização do fogo simbólico originário do rito pagão, que nos adros das igrejas e capelas crepita, abrasivo e luminoso, por entre os grupos de jovens que lhe dedicam inúmeras quadras do vasto cancioneiro natalino.
A ceia grande ou consoada
Normalmente designada por festa da família, por se reunir à mesa a maioria dos familiares, era costume realizar-se a consoada depois da Missa do Galo. Contudo, hoje, essa tradição já se vai perdendo devido ao desuso das antigas ceias. E na composição das ementas é que se constatam algumas heterogenias de carácter antropológico resultantes das assimetrias sociogeográficas.
Assim, enquanto no Minho predomina o bacalhau cozido com batatas, ovos e tenros, “tronchos” de “coivão” da horta, em Trás-os-Montes, no Centro Litoral e no Alentejo assa-se o leitão ou come-se um lauto assado de porco, regado com bom vinho novo. Por sua vez, na Estremadura, no Ribatejo e nas ricas casas beirãs, come-se o tradicional peru recheado de acepipes saborosos, enquanto no Algarve nos deliciamos com o lendário pitéu da carne de porco com amêijoas e linguiça assada, prato este já caído em desuso mercê da aculturação turística do peru.
Paralelamente ao “presigo”, as mesas, os armários e escaparates, estão repletos de doçarias de toda a espécie, variando igualmente de região para região. Por exemplo, no Minho os «mexidos» arabescados com canela da Índia, assumem posição de destaque, logo acompanhados pelas deliciosas rabanadas ensopadas no mel doirado, pelo leite-creme crestado com açúcar caramelizado, pelos pratos de aletria, pelo pão-de-ló e bolo-rei, este ultimo já importado desde há longa data. Nas Beiras confeccionam-se filhós estendidas. fatias-douradas, coscorões, bilhós, pães-leves, merendas, bicas e arroz-doce. No Douro, comem-se rabanadas, formigos, mexidos, sopas secas, ovos queimados, sonhos, arroz-doce, aletria, figos, uvas-passas e vinho quente. No Ribatejo tem especial relevo o bolo-podre, as broas, os bolos de gema e as azevias compostas por grão, arroz-doce e filhós. No Alentejo saboreiam-se as filhós, azevias, sonhos, borrachos e os nogados, à base de nozes, amêndoas ou pinhões misturados com mel. Finalmente, no Algarve, apreciam-se doirados fritos escorrendo mel, filhós, bolinhóis, empanadilhas de batata-doce, figos, pinhões e nogado.
Como facilmente se depreende, é ao nível da doçaria que as diferenças se acentuam, se bem que a gastronomia seja igualmente um indício da personalidade do nosso povo. Mas passemos adiante.
A Missa do Galo
Atendendo a que se trata duma celebração religiosa, não se radicalizam quaisquer heterogenias regionais. No entanto, pela circunstância de só se realizar nesta quadra do ano, não podemos deixar de salientar a sua singularidade litúrgica. Mas como especial atractivo registe-se o desvelamento do Presépio, que ate aí permanecia envolto numa cortina para dar ao acto um carácter mais solene. O pároco, após dar a conhecer a ingénua composição de figuras de barro. Celebra a missa enquanto o povo entoa cânticos de Natal. Por fim, o pároco dá o Menino Jesus a beijar aos fiéis, que silenciosamente lhe pedem mercês e protecção.
Como nota curiosa, é saliente nesta altura a boa disposição de todos os presentes alguns deles já bem bebidos e mais bem comidos.
O Presépio
A origem dos presépios remonta a São Francisco de Assis, que teve a genial ideia de fazer reviver, através da arte popular, as cenas bíblicas directamente relacionadas com o nascimento de Cristo. Em si mesmos, os presépios constituem uma lição viva de fraternidade, amor e humildade.
Compõem o presépio, a Sagrada Família, os Reis Magos e a respectiva cascata com a manjedoura e os animais que aqueceram o Menino. No entanto, o gosto popular acentuou este enternecedor quadro litúrgico com o acrescentamento de centenas de outras figuras da sua própria existência socioeconómica, como é o caso dos gaiteiros, moleiros, moinhos, açougueiros, pastores, ferreiros, sapateiros, sem esquecer naturalmente a tradicional cena da matança do porco. Aliás, convêm lembrar que o nosso país é tradicionalmente ceramista, rico em valores artísticos, alguns deles florescendo em grupo, como são exemplo as escolas de Lisboa e de Mafra. Com especial relevo para os discípulos de Machado de Castro. Na Estremadura as igrejas locais pugnavam pela realização de maravilhosos presépios e rivalizavam com os de Coimbra, Aveiro, Viseu e Lamego, igualmente notáveis pela majestosidade e profusão das suas figuras.
Armados nas igrejas, expostos admiração e culto dos povos, os presépios funcionam ainda hoje como principal atractivo religioso para a Missa do Galo. Pena é que nas residências particulares se vá cedendo à importação profana das escandinavas árvores de Natal, que nada tem de católico nem de latino. O mesmo se verifica com essa figura pouco significativa que é O Pai Natal. Igualmente originário das regiões rígidas do Norte da Europa.
As Janeiras e os Reis
O cantar das Janeiras e o domínio, quiçá o mais rico, do Cancioneiro Popular Português. A sua origem remonta igualmente ao tempo do paganismo em imitação das Saturnais Romanas que, ao converterem-se à religião crista, assumiram foros da maior originalidade.
No ancestral cantar das Janeiras está contido todo o espírito popular, a criatividade; a beleza, o encómio e o escárnio. Muito embora neste domínio se acentuem as heterogenias regionais, é, no entanto, comum a todo o País a composição de pequenos grupos corais, normalmente acompanhados de instrumentos musicais, que percorrem os mais variados lugares da sua freguesia ou vila, batendo às portas e entoando loas religiosas à mistura com quadras de fino gosto popular. O objectivo era serem bem recebidos pelos moradores que lhes ofereciam doces e vinho. Mas, caso não correspondessem a contento, eram “mimoseados” com canções de chacota, por vezes achincalhantes, e não raras vezes culminadas por cenas bem tristes e desnecessárias. As esmolas recebidas, em géneros, guloseimas ou dinheiro, eram em certas regiões destinadas à ceia ou festa do grupo, enquanto que noutras paragens revertiam a favor das almas do Purgatório. No Algarve são bem conhecidas as tradicionais charolas que na orla marítima do Sotavento ainda se mantêm com o mesmo fulgor de há dezenas de anos atrás. A recolha deste riquíssimo espólio da nossa literatura oral, foi, em parte, compilado por José Leite de Vasconcelos, Ataíde Oliveira e muitos antropólogos, amadores ou profissionais, que percorreram o País de lés-a-lés.
Os cortejos de Reis Magos
Esta tradição dos cortejos dedicados ao tema bíblico da adoração dos Reis Magos tem vindo progressivamente a desaparecer, se bem que em Coimbra e na aldeia de Tentúgal ainda se conserve na plenitude da sua beleza etnográfica.
Assim, em Coimbra, desfilam bandas de música acompanhadas de crianças de batina vermelha e cota de renda branca, transportando consigo turíbulos de incenso e oferendas para o Menino Jesus. Seguem-se os homens que ostentam bandeiras engalanadas e archotes em ignição, como que a abrirem caminho aos Reis Magos, cujas roupagens sumptuosas e brilhantes denunciam a presença real. Nesta conformidade percorrem as ruas da cidade até à Igreja de S. Bartolomeu, em cujo adro se representa um auto popular alusivo ao carácter festivo da própria comemoração. Por fim, procede-se ao leilão das oferendas, após o que o pároco dá o Menino a beijar.
Na pacata localidade de Tentúgal, o cortejo é precedido por numerosos gaiteiros e clarins que duma forma ruidosa e alegre se anunciam a aproximação do desfile. Este é encabeçado por um arauto, logo seguido por uma estrela brilhante e majestosa alusiva àquela que guiou os Reis Magos até Belém, e um pouco mais atrás desfilam as três altezas reais com as respectivas oferendas de ouro, incenso e mirra, que se fazem acompanhar pelos seus pajens e pelo numeroso público presente. Após percorrerem as ruas da povoação dirigem-se à aldeia de Ribeiva de Frades, de onde regressam a Tentúgal para confraternizarem em simultâneo com o povo de ambas as localidades.
No fundo, trata-se de um cortejo de carácter religioso, mas nem por isso menos importante do ponto de vista etnográfico, que merece ser preservado e minuciosamente estudado.
Autos entremezes e vilancicos
A origem dos autos de Natal perde-se no tempo e crê-se que as primeiras representações deste género teatral foram impulsionadas pela própria Igreja para melhor divulgar as suas doutrinas. Em Portugal, o dramaturgo que maiores êxitos alcançou foi Gil Vicente, sendo ainda hoje as suas peças muito apreciadas e procuradas pelo público. Muitos destes autos tem um carácter estritamente popular e por esse país fora ainda se representam anualmente. Recorde-se, por exemplo, em terras de Viana o Auto de Floripes, felizmente já estudado por especialistas, e que constitui um verdadeiro atractivo turístico nesta quadra natalícia.
Infelizmente, os grupos de teatro amador espalhados, por esse país fora, não costumam aproveitar esta fonte de inesgotável riqueza etnográfica, para darem a conhecer a nossa juventude algumas das tradições mais genuínas do nosso povo.
Quanto aos entremezes, que eram curtas representações teatrais de espírito jocoso ou burlesco, são vulgarmente designadas por farsas, género que Gil Vicente igualmente cultivou no decurso da sua obra. Presentemente, os entremezes raramente os representam.
Finalmente, os vilancicos são madrigais que se cantavam nas igrejas por ocasião do Natal e dos Santos Populares, mas que hoje caíram totalmente no esquecimento e poucas são as localidades em que ainda se conservam.
Enfim, de um modo geral, procurando ser breve e sucinto, penso que sobre as tradições do Natal português muito mais haverá que dizer se bem que cairíamos no aprofundamento das questões levantadas o que só contribuiria para a saturação do leitor.
(artigo publicado no matutino «Diário de Notícias» em 24-12-1982)
CARo Profº
ResponderEliminarVou seguindo o seu trabalho com muito interesse e por vezes faz-me levantar algumas questões.
PArece que está documentado que a Igreja Catolica Romana transferiu a data do nascimento de Jesus Cristo, o salvador, para o 25 de Dezembro, e na Biblia não aparece nenhuma referencia ao Natal !
A 25 de Dezembro, na tradição Babilónica, comemora-se o nascimento de Nimrod, que na tradição Igipcia, têm o nome de Osiris. Aquele que veio para dominar o mundo através do caos e da destruição.
Será que a Igreja Católica venera o paganismo BAbilónico e é por isso que aparece a figura do Pai Natal a oferecer presentes através da chaminé, coisa que não aparece descrito na Biblia em nenhuma parte ?
cumprimentos
V Xelim
Tá a ver como sabe!!!!!!!!!!
EliminarOlá Victor
ResponderEliminarMais uma vez obrigado por acompanhar o meu blog, o que, dado os escassíssimos comentários, receio que seja um dos três ou quatro que por aqui param quase diariamente.
Em relação à sua pergunta creio que tudo o que acaba de afirmar deve ser pura coincidência, pois confesso não ser capaz de lhe responder com absoluta certeza à sua dúvida.
A data do Natal foi estabelecida pela Igreja cristã, muitos séculos depois do sagrado nascimento de Cristo. E isso deveu-se em larga medida ao estabelecimento do novo calendário, o que obrigou o Papa a mandar fazer novos cálculos por especialistas cronólogos, que concluiram ser o dia 25 de Dezembro o mais provável para a celebração da Natividade.
Quanto ao Pai Natal, correndo num trenó puxado por renas nórdicas, a penetrar pela chaminé para oferecer prendas às crianças, posso dizer-lhe que é uma tradição mais recente, mas igualmente antiga, propalada pela Igreja Ortodoxa, em honra de São Nicolau, que foi um bispo muito generoso com as crianças. O cristianismo com o decorrer dos tempos aculturou-o, e até adoptou a sua mensagem. Pena foi que a Coca-Cola lhe tivesse dado o semblante e a imagem que todos hoje conhecemos, especialmente as crianças, que quase o veneram. De S. Nicolau só é verosímil a roupagem vermelha.
Relativamente ao paganismo babilónico e à coincidência da data de 25 de Dezembro, creio que em nada se coadunam com o nascimento de Cristo, nem tão pouco me parece que tenha havido qualquer intenção, por parte da Igreja cristã, de estabelecer a mais pequena relação entre o nascimento de Nimrod e o de Cristo. A colagem do Osiris parece-me absolutamente impensável e até de mau gosto. É claro que se quisermos forçar a nota podemos sempre especular que o S. Pedro ou que a ideia do Juízo Final, tem algumas parecências com Osíris e com o seu tétrico julgamento dos mortos.
Mas isso são especulações que alguns ficcionistas poderão adoptar para fazer um romance das religiões, papel que não me cabe, nem de perto nem de longe.
Volte sempre ao convívio deste blog.
Um grande abraço do Vilhena Mesquita