quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Uma Histórias das Arábias


J. C. Vilhena Mesquita

Com a chancela da AJEA Edições publicou-se há anos atrás um livro com o sugestivo título de Zunzuns 26 Histórias das Arábias. Trata-se de uma interessantíssima compilação de pequenas crónicas, ordenadas alfabeticamente, sobre os temas mais díspares e em larga medida relacionados com o desempenho profissional do autor por terras do Oriente. Por estranho que pareça este é o seu livro de estreia. Mas por humildade e modéstia preferiu o anonimato, usando o pseudónimo de Hamin Viei. Resguarda-se, desse modo, o talento de um algarvio, natural de Aljezur, cuja formação em engenharia o levaria a desenvolver intensa actividade por terras de África, nas areias do Sahara e nos míticos recônditos do Médio Oriente.
O livro compõe-se de vinte e seis pequenas histórias decorridas em várias partes do mundo e termina com um estudo, mais especulativo do que científico, sobre as origens de Aljezur, estabelecendo para o efeito algumas comparações da sua toponímia com possíveis étimos da língua árabe. Mas o que torna este livro verdadeiramente imperdível são as “Histórias das Arábias”, um autêntico acepipe literário, sobretudo para os apreciadores do humorismo britânico, visto ser inspiradamente britânico o estilo literário de que estão imbuídas essas brevíssimas crónicas. E no Algarve não conheço ninguém com quem se possa comparar (senão talvez em parte com Carlos Abreu), pois que se trata de uma espécie de apontamentos de viagens, temperados num humor muito subtil e aceradamente crítico. Por outro lado, as comparações culturais e os remoques políticos, além de espirituosos são duma clarividência notável.
A forma como Hamin Viei brinca com os absurdos babélicos, as confusões fonéticas e os equívocos linguísticos, ou com os dilemas políticos duma África dilacerada pelo tribalismo, com os choques culturais entre europeus e árabes, com o racismo e a pobreza, ou a emigração e a exploração humana, merece do leitor uma reflexão atenta e criteriosa sobre problemas de tão difícil, senão impossível, solução. Estas histórias que o autor ordenou de uma forma temática, começaram por ser apenas anotações ou breves memorandos, que foi exarando a esmo numa espécie de Diário de viagem. Tinham não só um forte exotismo literário como também um intenso brilho de humor e de crítica social. Ouçamos as suas justificações: «As histórias desta edição eram, a princípio, notas escritas apensas ao diário da minha missão no Sahara. Li-as e reli-as, mas cedo descobri que diziam respeito a outra realidade pela qual muitos se começaram a interessar. (...) Ao trabalhar as minhas notas, senti a necessidade de as ordenar por forma agradável e suave. A forma abecedaria como elas são apresentadas, nasceu por mero acaso. Os títulos foram criados a partir dos textos. Os espelhos de cada história foram uma necessidade criada para comparação de realidades. Outros retoques vieram a seguir... ao virar uma página... (uma página de vida...).»
Os amigos mais próximos partilharam da leitura desses apontamentos de viagens e ficaram surpreendidos, não só com o estilo irónico como também com a sua qualidade literária. Em geral a opinião convergia para o aconselhamento da sua edição em livro. Urgia partilhar com o público as sardónicas mensagens que o autor dirigia à navegação política europeia, sobre as relações internacionais com o Norte de África e os países da bacia mediterrânica, aqui tão perto, mas infelizmente tão descuradamente ignorados. Alguns desses amigos foram mais convincentes do que outros. Por isso mereceram ser destacados no livro e merecem também ser aqui referenciados. São eles o Dr. Joaquim José Magalhães dos Santos, o Eng.º Carlos Abreu (já falecido), o artista Tolentino de Lagos e a Dr.ª Ester Fernandes, que prefacia a obra com palavras de apreço e simpatia. Deste grupo importa salientar Tolentino de Lagos que assina os magníficos desenhos que acompanham o livro. E que talento e graça irradia daqueles bonecos que emprestam um toque “cartoonístico” às humoradas crónicas de Hamim Viei.
Para os leitores interessados devo acrescentar que além do estilo “very british” do autor, do seu imperdível sarcasmo político, importa também realçar os conhecimentos que se podem extrair deste livro para comparar a cultura árabe com a ocidental, concluindo-se que as diferenças não são tão acentuadas que justifiquem a separação, o alheamento e até o ódio com que nos encaramos mutuamente. O feitiço do deserto, a sua quietude e placidez, deixa fortes marcas no espírito civilizadamente agitado e stressante do homem europeu. Ali a vida parece ter o ritmo sideral das estrelas, submetida a um sol impiedoso onde se esquentam ideias, fervilham crenças e se luta arduamente pela sobrevivência. Fermenta naquele mítico deserto um mundo de vida, por vezes imperceptível e geralmente incompatível com certas mentalidades. E, porém, foi ali que Hamin Viei se sentiu mais perto de Deus, numa ascese existencial, que lhe revelou o intrínseco valor das coisas simples da vida, sentindo diferenças, barreiras, desigualdades, abusos e injustiças, que espelham a ambição dos homens e os defeitos das civilizações erguidas sob o estandarte dum dogmatismo religioso ou duma bandeira ideológica desumanizante.
As reflexões que a paz do deserto suscita no cidadão europeu, deformado pelas exigências da produtividade capitalista, estão bem patentes neste livro, cujo autor soube construir página a página com laivos de humor, graça e ironia. Certamente algumas delas motivariam um sorriso amarelo aos nossos políticos envolvidos nas relações internacionais com o Médio Oriente. Só um espírito prático e muito perspicaz como o de Hamin Viei seria capaz de retratar de forma tão mordaz e clarividente os choques culturais motivados pela chamada cooperação ocidental. São os interesses do petróleo e dos grandes empreendimentos de engenharia civil que movem a atracção ocidental e levam a mão-de-obra especializada para as profundezas do deserto sahariano.
O autor deste livro é um engenheiro de conceituada experiência técnica, que esteve ao serviço de várias empresas multinacionais responsáveis pela construção de equipamentos sociais de grande envergadura. A solidão experimentada nas areias saharianas ficou bem patente neste livro, mas a sua inspiração literária prende-se com as saudades do seu Algarve distante. Por isso não prescindo, para concluir, de transcrever as palavras com que o autor abre este livro, as quais me parecem lapidares para explicarem o feitiço do deserto e a profilaxia mental de que, por vezes, se pode revestir a própria solidão: «Os ruídos da Civilização nunca me deixaram pensar; mas longe deles, no coração do Sahara, onde a única realidade era eu e o Deserto... (eu, senhor do Mundo, e o Mundo de mim) vim a descobrir, nas profundezas da sua solidão e quietude, quanto útil ele me foi. Pena é que outros não possam lá chegar...»

2 comentários:

  1. Merece uma 2.ª e 3.ª edição.

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