José Carlos Vilhena Mesquita
Considerada desde há milénios como uma das principais riquezas naturais à flor da Terra, a cortiça deverá ser encarada no seu dualismo pragmático e económico. Assim, para os mais leigos no assunto, compete-nos informar que no nosso país, fundamentalmente na zona a sul do Tejo, produz-se mais de metade da cortiça mundial. A sua qualidade é, insofismavelmente, a melhor do mundo, fazendo deste produto natural a principal mercadoria do nosso comércio externo.
Como curiosidade, refira-se que cerca de metade do volume da cortiça é composto de ar que se encontra alojado em poliedros estanques revestidos de resina, os quais numa casca com 8 cm de espessura poderão cifrar-se em mais de 500 milhões de células. Devido a esta particularidade, a cortiça é indispensável como isolante do som e do calor, sendo, por isso, a sua aplicação múltipla e variada. Além do mais é levíssima, estanque, sem cheiro ou sabor, é elástica, resistente, impermeável e não é tóxica. Cientificamente, a cortiça (quercus suber) não é mais do que a camada suberificada das células protectoras do córtex da árvore e resulta de um meristema secundário que se radica na periferia do caule como se se tratasse da epiderme humana.
A árvore da cortiça é, como todos sabem, o sobreiro, que só começa a produzir a partir dos 20 anos de vida, e o seu habitat natural situa-se nas regiões arenosas, de terrenos profundos e soltos, com altitudes inferiores a mil metros, sob um clima de forte insolação do tipo mediterrâneo continental caracterizado por verões secos e Invernos rigorosos. A zona de implantação do sobreiro estende-se, por conseguinte, pela bacia mediterrânica e, numa escala decrescente, os principais produtores de cortiça são Portugal, Espanha, Argélia, Itália, Tunísia e França.
Produzirmos mais de metade dos valores mundiais
A área total da produção mundial anda à volta dos 2050 milhões de hectares e o rendimento anual é da ordem dos 400 mil toneladas, cujo valor comercial atingiu no ano transacto cerca de 500 milhões de dólares: Especificamente no nosso país, a área de exploração totaliza 656.200 hectares e a produção cifra-se em valores superiores a 200 mil toneladas anuais, o que equivale a dizer que produzimos mais de metade dos valores mundiais.
Refira-se, igualmente, que um sobreiro tem uma longevidade média de 150 anos e que, normalmente, dele não se consegue extrair mais de uma dúzia de «reproduções», se bem que a partir das cinco primeiras “tiradas” a qualidade da cortiça venha a diminuir progressivamente. Em média dum “chaparro” extrai-se pouco mais de uma arroba de cortiça, dum sobreiro cinquentenário obtemos o triplo e dum octogenário mais de 15 arrobas. As árvores descascadas tomam uma cor ferruginosa devido à oxidação dos tecidos em contacto com o ar, iniciando-se imediatamente o processo de recomposição que, por força da natureza, é, apesar disso, bastante lento, visto que só dali a nove anos é que estará em condições de poder sofrer idêntica operação.
A principal aplicação da cortiça situa-se ao nível da indústria rolheira, que absorve 65% de toda a cortiça vendida, senda de primordial qualidade as rolhas de champanhe produzidas nas nossas fábricas de Santa Maria de Lamas. Além disso a cortiça aplica-se na indústria do calçado, na construção civil, na indústria automóvel, nas artes plásticas, na decoração do lar, na caça, na pesca e no desporto em geral. Ultimamente, tomando em consideração a sua baixa combustibilidade, serve para forrar os tubos de ventilação dos submarinos nucleares, para transportar isótopos radioactivos a mais de 800º C, para protecção de naves espaciais e satélites de comunicação e, inclusivamente, foi há bem pouco tempo aplicada cortiça portuguesa como isolante térmico da camada externa da nave espacial «Columbia».
Os preços da arroba baixaram assustadoramente no mercado
Acontece, porém, que um dos problemas que mais afligem os agricultores da serra algarvia é a questão do tratamento e comercialização da cortiça. Fala-se, inclusivamente, de alguns casos em que se verificam situações de pré-ruína, visto que os preços da arroba da cortiça baixaram assustadoramente no mercado, a ponto de atingirem cotações inferiores àquelas que se verificavam em 1980.
Efectivamente, enquanto há dois anos atrás os industriais pagavam 1000$00 por arroba, hoje mostram-se relutantes em oferecer ao produtor 800$00 pela mesma quantidade de matéria-prima. Em contrapartida, os honorários a despender com o aluguer da força de trabalho especializada subiram em flecha, atingindo verbas praticamente incomportáveis. Atendendo a que no Algarve a exploração suberícola se processa nas regiões da serra interior, os custos de extracção da cortiça são substancialmente agravados pelo facto de primeiramente se ter de proceder à decapagem do terreno, que pela sua morfologia se transforma numa faina árdua e onerosa. De facto, para se proceder a tal tarefa é necessário alugar alfaias mecânicas, próprias para o efeito, que cobram ao agricultor entre 1000$00 e 1500$00 escudos à hora. Acontece que a remoção do mato numa propriedade de extensão relativamente pequena nunca custa menos de 20 contos. Saliente-se que esta acção de decapagem do terreno não se processa nos mesmos moldes do Alentejo, onde o solo e plano e árido. Daí podermos afirmar que, à partida, o agricultor algarvio está em desvantagem económica relativamente ao seu vizinho alentejano.
Os salários subiram e a cotação da cortiça baixou
Quanto à contratação de mão-de-obra experimentada na arte de descascar o sobreiro, é preciso reconhecer que a sua taxa inflacionista cresceu na razão inversa dos preços que a matéria-prima atinge no mercado. E isto porque enquanto os salários subiram a cotação da cortiça baixou. Assim, nos dias que correm, um “tirador” de cortiça não ganha menos de 2000$00 por dia. A sua função, sendo a mais especializada, baseia-se numa técnica ancestral, transmitida de pais para filhos, que consiste no rigoroso manejo do machado, cuja afiada lâmina penetra, com precisão milimétrica, até ao tecido interior da árvore sem lhe provocar a mais pequena beliscadura.
Aliás, diga-se de passagem, que uma leve incisão no tronco interno provocaria a formação de nódulos que prejudicariam extraordinariamente a futura qualidade da cortiça. Por outro lado, um bom “tirador” é capaz de num dia extrair 360 kg de matéria-prima sem ferir uma única árvore. Daí resulta naturalmente a justificação para a possível exorbitância do seu vencimento.
Após a contratação do “tirador” é preciso proceder de igual modo com o “ajuntador”, cuja função se resume simplesmente ao amontoar das pranchas e canudos da cortiça em local apropriado à sua expedição. Só por isso ele ganha entre 1500$00 e 2000$00 por dia. Por outro lado, como normalmente os sobreiros se estendem por terrenos bastante acidentados, não é possível a utilização de veículos motorizados para o transporte da cortiça, pelo que se terá de colmatar esta dificuldade através da contratação do “homem da besta”. Ora, acontece que o aluguer do homem e da mula anda à volta dos 2500$00 diários. É curioso que ao animal são incorporadas cangalhas laterais que permitem a sustentação da matéria-prima. Normalmente aguenta com algumas centenas de quilos empilhados de forma especial, semelhante a uma abóbada formada por inúmeros canos de cortiça. Só através desta operação é possível descer os íngremes cerros da recôndita serra algarvia. Por vezes, a vários quilómetros de distância, aguarda a sua chegada o motorista, que por seu turno transfere a matéria-prima para os respectivos centros industriais de transformação. Para cumprir essa tarefa o camionista cobra cerca de 15$00 por arroba, fora as despesas da quilometragem que serão cobrados conforme a distância a que se situam as devidas indústrias.
As razões da preocupante baixa dos preços
No apuramento final das despesas de extracção, verifica-se que cada arroba de cortiça custa em média ao produtor cerca de 300$00. Se em 1980 o preço da arroba esteve no mercado a 1000$00, logicamente este ano, atendendo às aludidas despesas, deveria atingir os 1300$00. Mas, por incrível que pareça, oscila entre os 750$00 e os 900$00, o que equivale a dizer que o seu preço real, deduzidos os custos de extracção, é de 500$00.
Agora pergunta-se: a que se deve esta baixa dos preços? Muito naturalmente à inadmissível facilidade de importação da cortiça espanhola que, devido à sua exploração mecanizada, ao câmbio e, sobretudo, à inferior qualidade da mesma, permite atingir no mercado um preço bastante inferior ao vigente no nosso país. Porém, o pior de tudo isto é que esta cortiça, pretensamente portuguesa, é exportada para os nossos clientes do norte da Europa, que ao aperceberem-se da sua inferior qualidade acabarão por perder a confiança na nossa matéria-prima. Em contrapartida, quem ganha com isso é a Espanha, que só exporta para os países da CEE a cortiça de melhor qualidade, equilibrando com isso o seu preço menos competitivo.
Nesta conformidade, o país é duplamente prejudicado, não só internamente como no estrangeiro. Por essa razão, os agricultores do Algarve, na sua maioria, não tem mandado descascar os sobreiros, por não compensarem os preços no mercado, deixando ficar nas árvores a cortiça por mais um ou dois anos à espera de melhores dias, ou seja de melhores preços. Porém, esta disposição de vender a cortiça com 10 ou 11 anos é lesiva ao País, pois são mais dois anos que se perdem na produção, se bem que se melhore na qualidade do produto. Todavia, se os preços se mantiverem mais ou menos a este nível, a qualidade continuará a ser prejudicada pela oferta, o que em boa verdade trará a ruína a muitas casas agrícolas. Cremos mesmo que, por este andar, a cultura do sobreiro, protegida superiormente desde 1310, aquando do reinado de D. Dinis, tem tendência a ser abandonada, senão mesmo substituída por outra mais rentável.
À espera de medidas enérgicas e moralizadoras
Urge, portanto, que o Governo tome medidas enérgicas para atalhar a este estado de coisas que, obviamente, não só prejudicam quem moireja nos campos como, inclusivamente, agravam a economia do País que corre o risco de ver a sua cortiça rejeitada futuramente nos mercados internacionais.
Refira-se que o deputado pelo círculo de Beja, Dr. António Chagas, considerado especialista na matéria, expôs este problema na Assembleia da República, onde a questão mereceu da parte de alguns membros do Governo, entre eles o ministro da Agricultura e Pescas, Dr. Basílio Horta, a mais viva repulsa, a ponto de responsabilizar os industriais pela situação existente no Alentejo e no Algarve. Recorde-se que nos concelhos de São Brás de Alportel, Loulé e Tavira, nomeadamente nas regiões da Cova da Muda, Vale de Luís Netos, Estragamantens e Cachopo, produz-se a mais qualificada cortiça de toda a província do Algarve.
Ficamos, assim, a aguardar a publicação de legislação competente que permita o escoamento da produção interna e proíba os abusos oportunistas dos industriais corticeiros, que na mira de chorudos lucros prejudicam enormemente a economia nacional.
(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 18-08-1982)
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