quinta-feira, 2 de julho de 2009

«O Algarve» - Um século de História e de intervenção cultural


José Carlos Vilhena Mesquita *

São raríssimas as instituições que se orgulham de alcançar a glorificante patine de um século de existência, atravessando, incólumes às intempéries económicas e aos cataclismos sociais, a vigésima centúria da nossa era, certamente a mais marcante do ponto de vista tecnológico, mas também a mais inconstante, instável e mortífera em toda a História da Humanidade. Por isso, o semanário farense «O Algarve» está redobradamente de parabéns, não só pela obra informativa e cultural, desenvolvida ao longo de cem longos anos, como ainda pela sua enérgica capacidade de resistência, de abnegação e de perseverança para ultrapassar todos os escolhos que se antepuseram no fragoso caminho do seu sucesso.
Quando «O Algarve» abriu portas, em 29-3-1908, o país sofria ainda as ondas de choque do Regicídio, um acto tresloucado da Maçonaria, que enlutou a pátria e desonrou o país a nível internacional. Nessa altura, o Dr. Artur Águedo de Miranda e o seu amigo Luís Pimentel Mascarenhas – o primeiro um conceituado advogado da praça farense, e o segundo um prestigiado empresário fabril e estimado professor do Liceu de Faro – ambos oriundos do «Algarve e Alemtejo» arauto do Partido Progressista no Algarve que se extinguira em 1906, decidiram criar pela primeira vez um órgão de imprensa totalmente apartidário, ainda que não isento de um forte espírito crítico. Colocando-se à margem dos partidos acabaria, porém, na semana seguinte à revolução do «5 de Outubro», por se identificar como “Semanário Republicano”.
Apesar de nas suas origens ter advogado os interesses regionais de uma forma acrisolada e veemente, contra os privilégios instalados, a prepotência dos empresários regionais, a corrupção política e o caciquismo partidário, o certo é que após a instauração da República tomou posições e perfilhou ideias que desencadeariam acesas polémicas com algumas figuras do Partido Democrático e até com os seus congéneres locais, nomeadamente o «Districto de Faro» e o «Heraldo», os mais notáveis e melhor colaborados órgãos da imprensa algarvia no período da transição de século e de regime. A guerra de 1914-18 trouxe graves dificuldades económicas, perfeitamente visíveis na carestia de vida e na falta de abastecimentos, nomeadamente de papel, o que contribuiu para a extinção de vários jornais. Curiosamente «O Algarve» resistiu a tudo, tornando-se num órgão de referência regional sem ligações partidárias, o que lhe garantiu uma sobrevivência quase incólume às perseguições políticas e às rivalidades com «A Voz do Sul», de Silves, o melhor órgão da imprensa algarvia na primeira metade do século passado.
Durante a democracia republicana, distinguiram-se na suas colunas algumas figuras notáveis da intelectualidade algarvia, como Rodrigues Davim, Salazar Moscoso, João Rodrigues Aragão, José Vieira Branco, Bernardo de Passos, Ludovico de Menezes, e tantos outros.
No início da década de vinte (8-2-1920), por morte de Luís Mascarenhas, ascendeu ao leme de «O Algarve» a figura carismática de José Ferreira da Silva, um homem escrupuloso e muito zeloso dos interesses do jornal, que não sendo jornalista, nem tendo habilidade para escrever, manteve sempre em actividade o semanário, cuja periodicidade apenas se alterou uma única vez devido a uma greve dos correios. Tinha um aspecto frágil e pequeno no porte físico, mas caracterizava-se pelo seu feitio difícil, por vezes irascível, que se exacerbava no relacionamento com as pessoas, sobretudo quando se repercutia nos interesses do jornal ou no funcionamento da sua tipografia. Por isso o vulgo cognominava-o de “Silvinha marau”. Como não tinha talento para escrever chegou a aproveitar-se da prosa escorreita e assídua de José Fontoura da Silveira, um dos principais colaboradores do jornal que assinava simplesmente J.F.S., para dar a entender ao vulgo que era da sua autoria, visto que a sigla correspondia exactamente ao seu nome.
Ao longo da ditadura salazarista, e apesar da apertada vigilância da censura, nunca «O Algarve» deixou de cumprir a sua missão e de manter a sua periodicidade, até que a morte surpreendeu Ferreira da Silva em 22-1-1949. Sucedeu-lhe o filho, Artur Serrão e Silva, mais condescendente do que o pai, mas menos activo e perseverante, cujo espírito afável e pacífico não trouxe melhores resultados para o sucesso da empresa, um pesado fardo herdado em tempos de visível recessão. Viveu as décadas seguintes sob a constante preocupação de manter o jornal em actividade, lutando contra todas as adversidades económicas e políticas. A tal ponto que chegou mesmo a vender os bens familiares (as terras de Gambelas) para manter o jornal aberto e a tipografia em funcionamento. Na redacção de «O Algarve» passou os melhores anos da sua vida, onde conviveu com alguns dos mais assíduos colaboradores e grandes figuras da cultura algarvia, nomeadamente os poetas Cândido Guerreiro, Emiliano da Costa e Vítor Castela, o pintor Carlos Lyster Franco, os historiadores Honorato Santos, Pinheiro e Rosa, Antero Nobre, Marcos Algarve, Fernandes Lopes, e tantos outros, como o Prof. Joaquim Magalhães, Manuel Caetano de Sousa, Clara Neves, Rocheta Cassiano e António Augusto Santos. Vicissitudes várias tornaram a paginação, e até a periodicidade do jornal, algo irregular. Mas a tudo o pobre do Serrão e Silva tentava acorrer e solucionar, tantas vezes com a cedência da sua própria vontade, e talvez até com a submissão das suas ideias. A partir do momento em que assumira a direcção do jornal, era já bastante visível a concorrência com a «Folha do Domingo» e sobretudo com o «Correio do Sul», este sem dúvida o melhor órgão de Faro e o de maior intensidade cultural na história da imprensa algarvia.
A revolução do «25 de Abril» acolheu-a nas suas colunas com grande euforia, e tudo parecia indicar melhores perspectivas de sucesso para o jornal. Todavia, a falta de confiança dos investidores na regeneração do tecido empresarial e no sistema económico não se fez com a necessária celeridade, provocando um incontrolável processo inflacionário de que resultou o aumento dos custos de produção na edição do jornal, que a determinada altura já só se publicava quando era possível. Quando em 20-11-1980 o coração de Artur Serrão e Silva soçobrou ao desgaste da vida, o «Algarve» estava praticamente moribundo, o que aliás também se passava com muitos órgãos da imprensa regional.
Foi em Dezembro, perante um estado de choque e de quase extinção, que surgiu o João Lopes Martins, que, em boa verdade, não só assegurou a continuidade do jornal, como ainda lhe proporcionou uma qualidade gráfica e jornalística nunca antes atingida. Para assegurar essa qualidade mandou imprimir o jornal na Gráfica Almondina, em Torres Vedras, para onde seguia todas semanas de automóvel, desgastando nesse esforço a sua parca saúde. A qualidade jornalística evidenciou-se na renovação do corpo redactorial, concitando nas suas colunas um naipe de colaboradores de grande valia, mesclando os consagrados, como o Dr. Joaquim Magalhães e o João Leal, com os jovens como eu, o Luís Pereira, o Adérito Vaz e outros, cujos nomes agora não me ocorrem. Foi, quanto a mim a melhor fase do «Algarve» que se prolongou por vinte anos, primeiro sob a direcção do Dr. Joaquim Magalhães, a que sucederia o Dr. Libertário Viegas, e depois o João Leal, até que o Lopes Martins tomou nas mãos o leme daquele que foi na década de oitenta um dos melhores jornais da imprensa regional portuguesa. Infelizmente também a morte o levou de surpresa nos meados da década de noventa, deixando no filho mais velho – o Zézé, como carinhosamente o tratávamos – a incumbência de não deixar morrer o «Algarve», tal como lhe havia suplicado o saudoso Dr. Armando Rocheta Cassiano quando no Cemitério da Esperança se despediu do féretro do seu amigo Serrão e Silva.
Nos últimos anos essa súplica bairrista tem-se cumprido, sabemos todos que com muitas dificuldades e grande coragem, porque são cada vez mais íngremes e fragosos os caminhos da imprensa regional, não só no Algarve como em todo o país. E a prova está no facto de uma região rica, evoluída e de renome internacional, como é o Algarve, ter apenas seis semanários com capacidade económica para se manterem em actividade na próxima década.
Resta-me acrescentar que tenho saudades do tempo em que a imprensa regional tinha um forte cariz formativo e cultural, espírito esse que hoje é cada vez mais descurado por submissão aos interesses económicos que são o maléfico suporte de um jornalismo submisso, sem alma nem pujança.
Neste 1º centenário de «O Algarve», para além de congratular os seus actuais promotores, resta-me afirmar que sinto o maior orgulho em ter sido o autor da primeira separata editada pelo jornal, e de ter convivido de perto com muitos dos seus colaboradores, alguns dos quais são hoje incontornáveis referências na cultura algarvia.


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* Presidente da Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve

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