José Carlos Vilhena Mesquita
1. O enquadramento geográfico de Portugal, fronteiro ao oceano, distendido ao longo duma extensa costa marítima recortada por numerosas enseadas e abundantes estuários, apresentava-se, todavia, espartilhado nas terras do interior raiano pela poderosa vizinhança das monarquias espanholas.
Nesta complexa moldura geográfico-política se devem procurar entender as razões que impeliram este povo para a única porta que a natureza lhe franqueara: o mar.
Assim se compreende e relaciona a concentração populacional na faixa costeira, a formação dos principais burgos junto aos portos marítimos, o crescimento das actividades económicas – com especial destaque para as trocas comerciais com a Europa Central e Mediterrânica – correlacionando-se com tudo isto o incremento da actividade marítima, quer pesqueira quer mercante. Uma nação virada para o mar é tendencialmente um alfobre de marinheiros. Por isso, a opção atlântica, levada a cabo pela dinastia de Aviz no séc. XV, relacionava-se, antes de mais, com a secular actividade das gentes ribeirinhas na pesca de alto mar.
Um território definitivamente embutido na faixa ocidental da Península, tendo por únicas fronteiras naturais, de Norte a Sul, os rios Minho e Guadiana, consciente da sua vocação marítima e cioso da sua unidade nacional desde a «crise de 1383-1385» – da qual emergira uma burguesia empreendedora e enraizada nas relações económicas externas – estava, portanto, disposto a encarar e dar seguimento a um projecto expansionista, quer dos seus domínios geográficos quer dos seus interesses político-económicos.
Razões específicas terão estado na base desse empreendimento. Vejamos, em síntese, as principais componentes do processo histórico que envolveu a saga dos Descobrimentos.
Na opinião do maior matemático português do séc. XVI, Pedro Nunes, as descobertas marítimas não foram obra do acaso e muito menos do prazer da aventura. Muito pelo contrário, foram o resultado de um risco calculado com assento no trinómio conhecimento-aplicação-reformulação, embasado no desenvolvimento científico e tecnológico da época.
Com efeito, a invenção do leme central, a introdução da bússola e a utilização de portulanos facilitou a substituição da tradicional navegação de cabotagem, dando lugar ao afastamento da linha do horizonte e às viagens de longo curso. O incremento da construção naval, o emprego da vela triangular ou latina e o aperfeiçoamento da caravela de três mastros, possibilitaram não só o aumento da tonelagem média das embarcações, como ainda lhes introduziram uma grande mobilidade de manobra, o que veio facilitar a navegação à bolina.
As relações, mantidas desde longa data, com a cultura islâmica e judaica contribuíram para o desenvolvimento científico nos reinos cristãos do Sul da Península, especialmente nos domínios da Astronomia e da Matemática. À Espanha hebraico-muçulmana se ficou a dever o aperfeiçoamento do astrolábio, a aplicação náutica das tábuas toledanas, os Libros del Saber de Astronomia, mandados compilar por Afonso X, e o Libro del Conoscimento, escrito nos meados do séc. XIV, sendo estas duas obras de primordial importância para o conhecimento geográfico da Europa e da África.
Mas não devemos atribuir as principais responsabilidades ao envolvimento da ciência e da técnica no memorável sucesso dos Descobrimentos. Também neste caso a motivação humana, nos seus mais variados prismas psico-socioeconómicos, imprimiu-lhe um papel preponderante e decisivo. De uma forma sintetizada apontemos alguns desses estímulos, que não só incentivaram a descoberta de novos mundos, como ainda protagonizaram uma diáspora à escala universal da cultura portuguesa.
Assim, no dealbar do séc. XV, as intrínsecas contradições da sociedade portuguesa, suscitadas pela emergência de diversos factores de desagregação da sociedade medieval, favoreciam o aparecimento de um projecto expansionista, desde que nele pudessem saciar os seus interesses de classe. Para o Povo, a opção ultramarina não representava um simples movimento emigratório, mas, pelo contrário, uma fuga ao sistema feudal/senhorial, opressivo e classista, de cuja libertação se perspectivava, desde logo, uma vida melhor.
Para a classe Eclesiástica, a evangelização e a conquista de terras aos infiéis era uma forma de expandir a Cristandade e de servir os desígnios de Deus.
Para a Nobreza, o serviço do Rei na guerra representava largas vantagens e recompensas, quer na outorga de títulos nobiliárquicos, quer na doação de senhorios, capitanias, tenças e diversos tipos de sinecuras ou rendas, que já escasseavam no território nacional.
Para a Burguesia a expansão perspectivava-se no aumento do tráfico mercantil e com isto a obtenção de avultados lucros.
Por fim, para o Rei constituía um motivo de reconhecimento internacional e de prestígio perante o Papado – uma espécie de superestrutura do poder político europeu -, sem esquecer a aquisição de novas fontes de receita para o depauperado erário régio.
As motivações económicas são concomitantes às razões classistas que acabamos de enunciar. Com efeito, sabemos que a conquista das praças africanas e a epopeia dos Descobrimentos estava intimamente relacionada com a necessidade do metal aurífero para a amoedação, cujas minas situadas algures a Sul do Sahara deveriam ser presa cobiçada pelos cristãos. Também a carência de trigo na Europa, face à abundância nos celeiros marroquinos, provocava a sede de conquista dos cavaleiros e mercadores portugueses. Os próprios escravos, cuja procura no mercado europeu era crescente, tornavam a sua captura nas terras africanas como um dos negócios mais prósperos e rentáveis dos empresários cristãos. Para além disso, outras mercadorias e produtos de considerável valor comercial atraiam os interesses dos conquistadores e navegadores portugueses, como por exemplo o açúcar, os materiais corantes, as gomas e lacas, os couros, as peles, etc.
Por tudo isto, a expansão territorial-marítima reflectia, ab inicio, um movimento de caracter nacional, marcado por uma profunda esperança de ressurgimento económico do Estado Português no quadro político de uma Europa, ainda mal refeita das calamidades epidémicas e beligerantes que devastaram as suas fronteiras durante o séc. XIV.
Deste modo se compreende que um projecto tão aventureiro quanto perigoso – como foi o da Expansão – se tivesse desenvolvido de uma forma lenta, mas progressiva, ao sabor dos interesses económicos de entidades privadas – de que foi exemplo o Infante D. Henrique – ou dos interesses gerais da nação, como aconteceu com D. João II, monarca educado nos valores políticos do Renascentismo, a cuja acção se ficou a dever o verdadeiro sucesso dos Descobrimentos Portugueses.
2. Na verdade, os Descobrimentos Portugueses, como processo histórico, repartem-se no tempo por duas fases distintas, ainda que sucedâneas, inspiradas em objectivos diferentes, embora concomitantes. A explicação desta divisão cronológica é, contudo, um pouco subjectiva, sem deixar, porém, de ser funcional. E a razão dos seus objectivos relaciona-se com projectos personalizados e políticos diferenciados, ainda que, repito, com finalidades conjuntas ou correlacionadas.
Assim, a primeira fase corresponde ao período Henriquino, que medeia entre 1415, data da conquista de Ceuta, e 1460, ano em que faleceu o Infante. A segunda fase, corresponde ao período Joanino, cujas balizas cronológicas se podem estabelecer entre 1482, data da expedição ao Rio Congo, e o ano de 1500, em que se descobriu o Brasil. No fundo, esta periodização dos Descobrimentos, além de convencional e subjectiva (pela personalização que se lhe atribui) corresponde, praticamente, a quadros conjunturais, que revelam a desagregação da sociedade medieval e a emergência do espírito renascentista, traduzido num enfraquecimento da aristocracia tradicional e na centralização do poder real.
No primeiro caso, a figura do Infante D. Henrique espelha o poder feudal/senhorial do Duque incontestado, poderoso, rico e beato. Mas, simultaneamente, revela-se como um modelo de instrução, talento, interesse científico e generosidade na protecção dos seus fiéis servidores. O perfil mental do Infante integra-se, nitidamente, no arquétipo do senhor feudal, muito distante da caracterização renascentista, que se identifica na razão crítica e intervencionista do homem moderno – essas, sim, as características do seu irmão D. Pedro, que enquanto Regente protegeu e patrocinou o projecto das descobertas em detrimento das conquistas marroquinas. Senão vejamos.
O Infante D. Henrique foi Duque de Viseu, senhor de Ceuta, governador perpétuo do Algarve e grão-mestre da Ordem de Cristo. Tudo junto proporcionava-lhe um rendimento económico bastante significativo, ao que acresciam os proventos monopolistas no Algarve relacionados com as indústrias de moagem, tinturaria, saboaria e da pesca do atum, corvina, coral e sardinha, sem esquecer o negócio do tráfico de escravos – de que ainda existe em Lagos o respectivo mercado. Significa esta malha de interesses e rendimentos que o Infante D. Henrique foi uma espécie de empresário das descobertas, que tinha por móbil o lucro resultante do arrendamento das terras africanas e, sobretudo, o tráfico de escravos.
Os homens são como são e os interesses particulares dos intervenientes da História não devem ser mascarados ou confundidos com falsos altruísmos e supostas benemerências.
Como homem do seu tempo, cavaleiro feudal e defensor do cristianismo, empregou a maior parte da sua vida e do seu esforço nas campanhas de Marrocos e Granada, cumprindo um plano de conquista militar, progressiva e sistemática do Norte de África. A guerra aos infiéis era prioritária, residindo nesse espírito de cruzada o principal objectivo da sua vida. E assim se manteve até à morte, imbuído do espírito militarista e expansionista da Cristandade, mais preocupado com a conquista do infiel solo marroquino do que com os Descobrimentos. Por isso, as viagens marítimas correspondem a um período tardio na vida do Infante D. Henrique, que delas se serviu não só para expandir a Fé nos gentios de África, como principalmente para aumentar o seu património e os rendimentos que estafava nas campanhas marroquinas. Mais como empresário do que como organizador se deverá, pois, entender a figura do Infante D. Henrique no contexto dos Descobrimentos Portugueses.
Pelo contrário, se deve entender o papel do Rei D. João II.
No âmbito do seu reinado, a iniciativa particular/empresarial cedeu o lugar à planificação de um movimento estruturado, conduzido pela coroa, submetido à vontade do Estado e objectivado no estabelecimento de uma rota marítima com o continente asiático. A diferença com o período Henriquino reside agora na concentração de esforços a nível nacional, facilitado pela desagregação da ordem senhorial e substituída pela centralização dos poderes na figura real.
Até 1460 as velas portuguesas tinham alcançado o Golfo da Guiné. Mas nos dois decénios seguintes a política ultramarina foi superada pelos interesses expansionistas no Norte de África e pelas aspirações ao trono de Espanha por parte de D. Afonso V. A política externa do monarca português, tanto na intervenção militar em Espanha (batalha de Toro, 1476) como na relação diplomática com Luís XI de França, resultou no fracasso que provocaria a ascensão ao poder do príncipe D. João, de 1477 a 1481, sagrando-se neste último ano Rei de Portugal. A guerra com Castela (1474-79) reactivou as pretensões de Isabel, «a Católica», numa intervenção atlântica, desafiando com isso os interesses monopolistas da coroa portuguesa. Com a assinatura do Tratado de Alcáçovas, em 1479, estabeleceu-se a paz entre os reinos vizinhos e a renúncia portuguesa à coroa castelhana. Por força desse acordo os portugueses entregaram as Canárias, renunciando os castelhanos a quaisquer pretensões nos domínios atlânticos para sul daquele arquipélago.
As viagens africanas de Diogo Cão (1482 e 1485) ao rio Congo e ao sul de Angola, prosseguidas por Bartolomeu Dias (1487-88) que dobrou o Cabo da Boa Esperança, permitiram a D. João II acalentar a esperança de chegar à Índia por via marítima. O projecto de ligação transoceânica do Velho Mundo ao continente asiático integrava-se numa política de sigilo imposta pela corte Joanina, em cujo seio se infiltrava a espionagem castelhana e europeia.
Apesar de todos os cuidados e medidas repressivas, corriam notícias desde 1474 sobre a existência de terras para Ocidente das rotas atlânticas. Como exemplo apontavam-se as viagens de João Vaz Corte Real e Álvaro Martins Homem à Gronelândia ou Terra Nova, os quais baptizaram de "Terra dos Bacalhaus". A própria navegação em arco pelo Mar dos Sargaços, nas viagens de retorno a Lisboa – por forma a aproveitar a corrente do Golfo e os ventos favoráveis das Canárias – forçava a derivação para ocidente, sendo provável que alguns pilotos observassem indícios de proximidade a terra. De qualquer modo, as consequentes viagens dos irmãos Corte Real à Terra Nova não só demonstram a precedência portuguesa na descoberta do continente americano em 1474, como ainda fazem suspeitar da existência de um plano para encontrar uma passagem a noroeste para os mares da Índia. Porém, a convicção do fracasso terá desinteressado o Rei D.João II dessa hipotética «Rota Ocidental para a Índia», de que tão convictamente se ufanava Colombo.
A fuga de informação acerca das terras a ocidente e um erro de cálculo sugerido pelo cosmógrafo florentino Paolo del Pozzo Toscanelli – que supunha uma distância de 135º entre Portugal e o Extremo Oriente – terão levado Cristóvão Colombo a empreender a sua primeira viagem à América, em 1492. As Antilhas então descobertas por Colombo ao serviço dos «Reis Católicos», pertenciam à coroa portuguesa, visto se encontrarem para sul do paralelo estabelecido no Tratado de Alcáçovas. Esta circunstância levou o monarca português a celebrar com os Reis Católicos uma nova divisão do Mundo em dois hemisférios demarcados por um meridiano que passava a 370 léguas para oeste das ilhas de Cabo Verde, cabendo à Espanha a parte ocidental e a Portugal a parte oriental. Deste modo as Antilhas e o restante continente americano ficariam na posse de Espanha, à excepção das terras do Brasil, de cuja existência já o rei português deveria ter conhecimento.
A partilha do globo não só apaziguou os ânimos belicistas entre as coroas ibéricas, como afastou a concorrência espanhola dos mares da Índia, que, por força do Tratado de Tordesilhas, se integravam, claramente, nos domínios portugueses. Será a partir desse acordo político que a execução do projecto Joanino terá efectivo sucesso. O Rei D.João II dirigiu os preparativos da viagem, porém morreu antes de assistir à partida da frota que largaria do Tejo a 8-7-1497, sob o comando de Vasco da Gama, o primeiro membro da nobreza a chefiar uma expedição marítima. A descoberta do «Caminho Marítimo para a Índia» consumou-se a 20-5-1498, com a chegada das naus portuguesas ao porto de Calecut. Dois anos depois (22-4-1500), Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil, durante aquela que foi a segunda viagem à Índia. A intervenção do acaso nesta descoberta tem sido refutada pelos historiadores que sustentam o seu conhecimento prévio ainda no reinado de D.João II.
A glória dos principais cometimentos portugueses na epopeia dos Descobrimentos coube a D.Manuel I, senhor do maior império que os homens jamais viram. Porém, manda a verdade que com inteira justiça se destaquem os nomes do Infante D. Henrique, como precursor, e do rei D.João II como organizador e principal impulsionador dos feitos mais notáveis dos Descobrimentos Portugueses.
Não obstante o papel carismático e político que qualquer destas figuras representa na História, julgamos que é ao Povo, humilde e anónimo, que pertence a glória de haver perpectualizado o nome de Portugal pelos cinco continentes do globo terrestre.
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