sexta-feira, 17 de julho de 2009

Da extinção à restauração do concelho de Aljezur nos finais do séc. XIX


José Carlos Vilhena Mesquita
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A inserção geográfica do Algarve no extremo sul do território nacional, moldou a mentalidade e suavizou as diferenças sociais entre os seus habitantes, menoscabadas pelo cosmopolitismo emergente do trato mercantil. Apesar das suas privilegiadas condições naturais viabilizarem um promissor desenvolvimento económico, estribado na extracção pesqueira, nas primícias agrícolas e no comércio internacional, não dispunha porém de recursos humanos e muito menos de líderes carismáticos na esfera do poder político que lhe permitissem emancipar-se da sua inexorável condição periférica de reino integrado.
O Algarve sempre foi encarado pelo poder central como uma região perdida nos antípodas do extremo sul – derradeira nesga da cristandade na úbere fronteira mediterrânica e um fantasioso prelúdio da inóspita imensidão africana - que servia de tampão ao quadrilátero nacional. Desde a sua integração no território nacional que tem sido uma terra de oportunidades perdidas, porque de uma vasta e ampla porta se tratava no ordenamento geográfico da civilização europeia.
Ignorar a sua importância geostratégica seria descurar a sua defesa e perdê-lo seria abrir as portas à anexação ibérica. Por isso se cumularam os seus povoadores de privilégios foraleiros, dando-lhes até a dignidade de se fazerem representar nos primeiros bancos das Cortes. Em reconhecimento da sua identidade patriótica, sempre os algarvios se esforçaram para permanecerem no seio da nação. Nos momentos cruciais tiveram a especial acuidade de se baterem ao lado dos partidos que defendiam os supremos interesses da nação. Foi assim na crise de 1383, nas guerras da Restauração, nas invasões napoleónicas, nas lutas liberais e até na implantação da república. Nunca os algarvios deixaram que se pusesse em causa o seu patriotismo, nem invocaram ou alimentaram qualquer pretensão separatista.
A participação do povo algarvio nos principais conflitos políticos em que a nação esteve envolvida, deu-lhe não só a particularidade de granjear prestígio entre os seus compatriotas como, principalmente, de lhe outorgar a dignidade de portugueses. E foi esse orgulho, associado ao seu apreço pela liberdade individual, que lhe deu alento e protagonismo no contexto político-militar da primeira metade do século XIX. O relacionamento mercantil com os empresários britânicos, as tentaculares influências maçónicas e as várias praças de guerra sedeadas no Algarve, colocaram este pequeno e esquecido reino em sintonia com os tumultos sociais e pronunciamentos militares que despontaram na redentora cidade do Porto. Tornou-se sui generis essa participação do Algarve ao lado da cidade Invicta em todo o século XIX. Esse relacionamento manteve-se permanente, imitando-lhe as atitudes e decisões. Assim aconteceu, por exemplo em 1828, quando acorreu a secundar a «Belfastada»; em 1833 quando recebeu as tropas do Duque da Terceira como libertadoras; ou em 1847, quando em plena guerra-civil da Patuleia erigiu uma Junta Governativa em consonância com a sua congénere do Porto.
Mas, tanto ou mais decisivo do que tudo isso terá sido o facto de o Algarve se haver transformado, durante esta conturbada primeira metade do século, num eixo de penetração militar para atacar por via terrestre a capital do reino. O seu posicionamento geostratégico tornou-se, assim, incontestável. Recrudesceu de importância e de interesse no contexto político-económico do país. Doravante seria encarado como um espaço de crucial ambivalência, quer nas relações comerciais mediterrânicas, quer na defesa militar territorial. E terá sido nessa duplicidade de valores, sentimentos e orientações políticas, que o Algarve terá adquirido a sua identidade, consciência e notoriedade. No contexto nacional era, enquanto região periférica, a mais marginal e excluída, devido às dificuldades de comunicação que praticamente só se podiam efectuar por via marítima. Por força do seu isolamento terrestre, viram-se os algarvios na contingência de desenvolverem especiais aptidões para a pesca e navegação mercante, sendo disso resultante não só a sua riqueza como também a sua identidade sociocultural.
Um dos principais problemas socioeconómicos de que enferma o Algarve é resultante da excessiva litoralização na costa sul dos seus recursos humanos e materiais, o que suscitou um progressivo afastamento cultural das gentes do interior e uma vectorialização do sector mercantil nos principais centros urbanos. Daí que a dicotomia entre o litoral e o interior, tão comum no território nacional, tivesse no Algarve uma expressão mais agudizada por se encontrar assente num processo histórico de desenvolvimento geodemográfico. Isto é, a sua economia desenvolveu-se da faixa litoral sul para o interior próximo, formando um hinterland económico relativamente frágil e inexpressivo, quando comparado com outras regiões do litoral norte. A falta de grandes bacias hidrográficas ou de estuários com acentuadas proporções, impediu que aqui despontasse uma burguesia empreendedora e cosmopolita, de diferenciadas culturas, distintos credos e de diversas ideologias.
No Algarve existiram até meados deste século três zonas geográficas de polarização socioeconómica que não correspondem, necessariamente, às tradicionais divisões orográficas da região - litoral, barrocal e serra. A essas zonas ligam-se processos históricos bem definidos no tempo, formando uma espécie de complexo geográfico demo-socioeconómico. Assim, à primeira zona corresponde o período dos Descobrimentos, durante o qual julgamos que a costa vicentina teve a sua época áurea, que se extinguiu por volta do século XVI. A mudança do bispado para Faro e o protagonismo de Tavira no socorro às praças do Norte de África, terão contribuído para a desactivação do Algarve Ocidental, permanecendo apenas a praça de Lagos, enquanto sede dos governadores-gerais, como núcleo de “resistência”. Todavia, o megassismo de 1755 arrasou a cidade, deixando-a privada do seu porto e dos elementares meios de abastecimento, transformando aquela histórica urbe num testemunho de decadência. O segundo período corresponde à centralização do poder político, que outorgou à cidade de Faro o papel de capital administrativa do reino, desviando para a zona Central o protagonismo, que antes pertencera ao pólo barlaventino. O terceiro e último período estão relacionados com o desenvolvimento industrial e as relações económicas mediterrânicas, que desviaram para a zona sotaventina as principais unidades fabris de transformação do pescado. Desde os meados do século passado até aos anos cinquenta assistiu-se ao crescimento das indústrias conserveiras que se estenderam até Portimão. Todo esse incremento se ficou a dever não só à riqueza dos recursos naturais, como ainda ao investimento nos seus meios de exploração e, sobretudo, à reconstrução e reequipamento das estruturas portuárias. A decadência desses recursos e desactivação dessas indústrias suscitou um novo período, desde os anos sessenta até ao declinar do século, relacionado com o sector dos serviços e do turismo
Por conseguinte, digamos que a partir da centralização do Estado e da desaceleração do processo histórico dos Descobrimentos se assiste no Algarve a um lento mas irreversível adormecimento das suas potencialidades autóctones, acentuado pelo assoreamento dos seus estuários fluviais e pela consequente decadência dos seus portos marítimos. A insuficiente e insegura rede de estradas terrestres contribuiu para o cavar do fosso que separava o litoral do interior. Digamos que até ao aparecimento do caminho-de-ferro o Algarve dependeu quase em exclusivo das comunicações marítimas, servindo-se da estrada fluvial do Guadiana como intercâmbio da linha do comboio que se quedava em Beja. Praticamente foi só no nosso século, em 1906, que o Algarve viu concluir a sua ligação ferroviária, entre Portimão e Vila Real de St.º António. O que, mais uma vez apenas beneficiava a faixa litoral, deixando os mais prósperos concelhos do interior, como Loulé, desprovidos do recurso a esses meios de escoamento das suas produções agrícolas e até industriais.
Não restam pois dúvidas de que o Algarve, à imagem do país se apresentava repartido entre dois perfis: o litoral desenvolvido e próspero, e o interior adormecido e ronceiro. As assimetrias foram-se acentuando ao longo dos tempos a partir do momento em que se descuraram as ligações terrestres, se desactivaram as vias fluviais ou decaíram as comunicações marítimas. O resultado foi por demais evidente. As comunidades humanas não desapareceram, é certo, porém as distâncias que fisicamente separavam o litoral do interior fizeram-nas estiolar numa prostrante monotonia, privando-as do estímulo natural da formação dos mercados. Sem contacto nem mobilidade humana não há economia que se preze. E essa estagnação resultava em absoluto da falta de comunicações e de meios de transporte, fiáveis e seguros. Enquanto nas cidades e vilas do litoral se mantiveram os portos abertos ao comércio externo, verificou-se um acentuado crescimento demográfico e um alastramento da sua malha urbana. Mas quando essas condições ficaram ameaçadas de assoreamento, como foi o caso de Tavira, ou destruídas por razões anómalas, como foi o caso do terramoto de 1755 que arruinou o porto de Lagos, depressa sobrevieram a essas populações os anos da decadência económica e o espectro da recessão cultural. Apesar de nos exemplos citados essa situação ter sido paulatinamente ultrapassada por força das medidas conjunturais de recuperação económica, o certo é que nas vilas e cidades do interior cada vez mais se acentuaram as distâncias pela desarticulação e insuficiência das vias de comunicação terrestre, quase sempre sem a largueza necessária à circulação de veículos pesados. Não esqueçamos que até ao dealbar do nosso século as estradas no Algarve rural ou interiorizado eram, na maior parte dos casos, simples carreiros que não serviam tão pouco para a circulação das diligências. Daí que o interior serrenho fosse cada vez mais pobre, com fortes tendências para o ermamento.
Nesta conformidade, o século XIX - marcado pelas lutas políticas que opuseram liberais a absolutistas, ensanguentado por duas guerras-civis e muita instabilidade governativa - ficou assinalado na nossa História como um período de oportunidades adiadas, quando comparado com a prosperidade económica e o progresso técnico dos países do eixo europeu. O centralismo absolutista deu lugar ao estadismo centralista, operando-se mudanças pouco significativas no ronceirismo do Portugal interiorizado, a que certos snobes da capital passaram a designar por saloiísmo ou provincianismo. Ou seja, o atraso cultural, de que o poder central era o único responsável, passava a ter nome. Na realidade pouca coisa mudou. Apesar da prosperidade da década de setenta, suscitada pela construção da rede ferroviária durante o período do Fontismo, pouco se fez pela província. No Algarve não se verificaram grandes investimentos, bem pelo contrário, durante as crises económicas que se sucederam ao Fontismo e suscitaram o desemprego das massas produtivas, houve indícios de fome quase generalizada, que foi atenuada com o recurso a programas de ocupação laboral dos quais resultou a construção de uma linha de comboio fictícia, cujos railes eram de madeira.
Nesta difícil gestão das desigualdades socioeconómicas e das notórias assimetrias regionais acentuava-se a falta de um processo de industrialização nas localidades afastadas dos centros político-administrativos do litoral. Mas sem estrada não havia Indústria nem sequer Comércio, apesar do aturado processo de animação do mercado interno através da criação de novas feiras. Apesar da criação da Sociedade Agrícola, em 1850, e de um Banco Rural na década de setenta, toda a agricultura do interior algarvio estava condenada ao fracasso por falta de estradas que proporcionassem a abertura de um mercado pelo menos à escala regional. São disso exemplo os concelhos de Alcoutim, Monchique, Silves, Aljezur e até Loulé, pois que as freguesias do barrocal e serra não tinham meios de comunicação que lhes permitissem escoar as suas produções. Portanto, não restam dúvidas que o crescimento económico algarvio se processava a duas velocidades diferentes, conforme a situação geográfica dos concelhos.

O exemplo de Aljezur

No caso de Aljezur, que agora nos interessa analisar, é precisamente a falta de estradas de ligação ao litoral que está no cerne do seu enquistado desenvolvimento económico. Muito embora os seus habitantes tivessem plena consciência dos prejuízos causados pela falta de comunicações com os concelhos limítrofes, nomeadamente com Lagos, o certo é que o poder central nunca deu a mínima importância à solução do problema. E com o decorrer dos tempos foram-se acentuando as carências socioeconómicas do concelho, devido ao assoreamento do rio que servia de estrada fluvial para a comunicação com a vila, à decadência e ruína do seu porto marítimo 1 e às consequentes insuficiências daí resultantes no intercâmbio cultural das suas gentes. Repare-se que a partir do início do séc. XVI, que marca o terminus do processo histórico dos Descobrimentos, já a zona vicentina apresentava claros sinais de decadência. O pólo de atracção económico-administrativa no contexto regional desviara-se para a zona centro. A costa vicentina, de Lagos ao Promontório subindo até à foz do rio de Aljezur, tinha passado à história. A realidade tornara-se outra, tinha a ver com as «pescarias ricas» e o comércio com o Norte de África. A costa atlântica tornara-se numa rota de passagem para Lisboa. E do Algarve até à capital não havia portos com interesse comercial que justificassem uma escala intermédia, à excepção de Setúbal. Se assim não fosse o porto de Aljezur nunca teria sido desactivado.
A verdade, nua e crua, é que a vila de Aljezur, no contexto económico algarvio, de pouco valia. Muito embora se situasse na orla costeira o certo é que não fazia parte do hinterland de Lagos, devido à falta de comunicações, quer terrestres quer marítimas. Não esqueçamos que para chegar à costa sul os barcos aljezurenses teriam que dobrar o cabo de Sagres, cujo regime de “nortada” que soprava durante quase todo o ano não facilitava a tarefa às frágeis embarcações da época. Por isso, Aljezur pertencia ao Algarve interior, pobre e esquecido. Aliás já o próprio D. Dinis, que lhe havia dado foral em 12-11-1280, se apercebera da sua parca importância económica no contexto regional, pois que a escambou, isto é trocou-a, juntamente com outras terras, em 1298, pela vila de Almada, que pertencia à Ordem de Santiago. Não obstante a antiguidade e interesse histórico daquela vila algarvia, isto indicia um claro depreciamento do poder central que, infelizmente, se repetiria ao longo dos séculos e só não se verifica hoje devido à profissionalização dos funcionários públicos e às compensações financeiras dos cargos políticos.
Apesar de D. Manuel I, aquando da outorga do “Foral Novo” datado de 20-8-1504, ter atribuído a Aljezur o epíteto de Honrada, o certo é que nela não se reconhece a existência de famílias nobres, nem de significativos eventos que justificassem a sensatez de tal qualificativo. Em todo o caso, chamou-se-lhe Nobre e Honrada, o que deve ser motivo de orgulho para todos os aljezurenses. A essa época remonta seguramente a fundação da Misericórdia, que apesar de humilde erigiu templo e hospital, sendo hoje considerada como uma das mais antigas do Algarve.
Mas sejam quais forem os argumentos que usemos para dourar a vetustez deste burgo, não podemos escamotear o facto de nunca ter sido grande, rico ou próspero. A principal razão da letargia económica em que se encontrava mergulhado o concelho de Aljezur era a inexistência de vias de comunicação que ligassem aquela vila à costa sul, principalmente a Lagos e Portimão, que eram os centros urbanos de maior desenvolvimento na zona barlaventina. Sem a abertura dessa estrada o concelho estaria condenado a uma espécie de ostracismo económico e sociocultural. A Câmara tinha plena consciência do problema e insistia com o poder central na sua resolução. Por isso, aproveitando em 1828 o ensejo de felicitar D. Miguel pelo seu regresso ao Reino solicitou-lhe que usando da sua real protecção lhes mandasse construir as estradas para Lagos e Portimão. Nesse ofício afirmava que o custo da obra não iria além de um conto de reis «que he moderada despeza comparada com o grande beneficio que rezulta de ser o unico tranzito por onde se podem conduzir Artelharias e carruagens quando persizão circular desta parte para todo o Algarve». Cansados de tantas petições e despesas em aparatos burocráticos de que não obtinham solução, lavraram o seguinte desabafo: «Corte V.A.R. o pescoso á serpente demoradora que tem engulido os Santos Papeis já informados com tanto dinheiro inutilmente gasto só em aparatos».2 Trata-se de uma forma de expressão muito própria da gente simples, mas que serve para ilustrar a triste realidade em que se achava aquele laborioso povo.
A economia do concelho era fundamentalmente agrária e os contactos externos demasiado inconstantes para se poder assegurar uma actividade mercantil. A produção cerealífera, a que se juntavam leguminosas e algum vinho, não eram suficientes, em quantidade e qualidade, para suscitar a atenção do mercado. Basta dizer que aquando do inquérito pombalino de 1758 foi claramente afirmado que não tinha feira nem correio.3 No entanto, por Portaria Régia de 17-3-1828 foi outorgada a Aljezur uma Feira Franca nos dias 25 e 26 de Setembro de cada ano, na qual as mercadorias de maior transacção parecem ter sido as fazendas, os cereais e gados.4 Vê-se, assim, que antes do séc. XIX Aljezur não dispunha de meios que justificassem a realização de uma feira, o que parece demonstrar a existência de uma economia deficitária e praticamente de subsistência.
Por outro lado, a sua costa marítima, ainda que rica e abundante em espécies de qualidade piscícola, não motivava o desenvolvimento da indústria pesqueira. A falta de salinas, de onde se extraísse o sal necessário à conservação e exportação do pescado, impossibilitava a manutenção dessa indústria, razão pela qual nunca se fundaria um Compromisso Marítimo. Esse era, aliás, o primeiro sintoma de unidade e afirmação das comunidades marítimas. Por isso, causa uma certa estranheza que num concelho litoralizado como é o de Aljezur, com cerca de 40 Km de costa, nunca tivesse despontado uma forte comunidade piscatória. O que existiam eram pequenas “praias”, ou seja, diminutos aglomerados de pescadores. Fora dessa economia tudo era episódico.
A escassez populacional é disso um forte indício. Repare-se que em 1732 Aljezur somava 833 habitantes, em 1756 crescia para 934, em 1788 atingia 1375, mas em 1802 baixa para 1287, em 1828 sobe para 1735, atingindo aqui o seu pico demográfico, sendo talvez por isso que nessa data se realizou a sua Feira Franca; em 1835 baixou para 1644, em 1836 caiu para 1233 (certamente devido aos devastadores efeitos do surto epidémico da cólera-morbo) e em 1837 subiu para 1591. Mas o que importa aqui reter é a comparação demográfica com outras sedes de concelho. Assim, verificamos que abaixo de Aljezur se situava apenas Vila do Bispo, cuja população nas datas acima referidas, variou entre os 536 e os 856 habitantes. Em mais nenhuma sede de concelho se conhecem índices populacionais tão baixos. Nem sequer em Alcoutim que oscilou entre os 1018 habitantes em 1732 e os 3182 em 1837.5 E este seria talvez o concelho mais comparável com Aljezur, visto considerar-se do interior e situar-se no extremo oriental da província, a uma latitude ligeiramente superior. Em todo o caso, se tomarmos em consideração a variação da população, entre 1758 e 1911, veremos que em termos de crescimento demográfico a vila de Aljezur é a 24.ª localidade do Algarve, visto que entre essas datas o índice cresce em 1854 habitantes, o que é bastante significativo.6 Actualmente a população da vila tem aumentado de uma forma bastante acentuada, sendo disso exemplo a forma como a malha urbana se tem desenvolvido para o lado oriental da vila, seguindo as directrizes do Bispo D. Francisco Gomes do Avelar que em 10-9-1809 ali consagrou a N.ª S.ª de Alva a nova Igreja Matriz. Nessa altura, aquele ilustre prelado julgou que estaria a criar uma «Aldeia Nova», mas esse desiderato só viria a consumar-se nos nossos dias, transcorrido mais de um século após a sagração do tempo. Provou-se que sendo um homem de vistas largas era certamente um espírito bastante esclarecido e inovador para o seu tempo, não havendo na prelazia algarvia quem se lhe possa comparar.

A extinção do Concelho

Desde a formação da nacionalidade que a base da administração pública incide no concelho, cujas origens remontam ao império visigótico onde o consilium ou o conventus publicus vicinorum, funcionavam como assembleias dos chefes de família e dos religiosos, cuja instrução ajudava a construir com melhor discernimento a vontade geral. As cartas de foral, que mais tarde os monarcas irão atribuir aos seus povoadores, serão uma forma de arrecadação de impostos e de controlo político-administrativo da nação. A organização do Estado-Nação teve pois a sua origem na conglomeração dos concelhos que, por razões geosocioeconómicas e afinidades culturais, se constituíram em unidades, mais ou menos artificiais, a que se resolveu chamar reinos, comarcas, províncias e distritos. Em qualquer uma dessas concepções político-administrativas foi sempre o concelho, na sua ancestral acepção municipalista, que deu o cerne às diversas realidades vigentes, desde a Idade Média até aos nossos dias.
Assim, o antigo reino do Algarve, submetido ao Islão no século VIII por tribos berberes, unificado pelos Almorávidas e alargado ao Sul da Hispânia pelos Almóadas, sofreu apenas duas alterações administrativas dignas de monta. A primeira foi a sua definitiva integração, em 1250, no território nacional; a segunda ocorreu em 1836 com a Reforma Administrativa levada a cabo por Passos Manuel, da qual resultou a transformação do Reino do Algarve em simples distrito de Faro. Assistiu-se, nessa altura, à mais profunda e controversa remodelação da estrutura administrativa da nação.
Com efeito, o antigo ordenamento administrativo tornara-se no decurso dos tempos numa imbricada confusão de concelhos, vilas coutos e honras a que ninguém ousava pôr cobro. Era uma herança da História que só uma revolução das mentalidades, como aquela que resultaria da vitória liberal em 1834, poderia legitimamente alterar. E esse foi um princípio de honra e um compromisso político de que dependeria a própria sobrevivência do regime. Teorizada por José Henriques Nogueira, esboçado por Mouzinho da Silveira mas levada à prática por Manuel da Silva Passos, a Reforma Administrativa exarada no decreto de 6-11-1836 exterminou os coutos da Igreja, as vilas e honras da Nobreza e reduziu a menos de metade os concelhos então existentes. Não vamos perder tempo a dissecar o assunto. Já o fizemos, com desusado pormenor, num trabalho de apurado rigor científico.7 Em todo o caso, para se fazer uma ideia do seu profundo alcance, bastará dizer que dos 816 concelhos então existentes apenas se mantiveram 351, dos quais o Algarve foi uma pseudo-vítima.
Na verdade, dos 17 concelhos que o Algarve possuía apenas se lhe extinguiram quatro, a saber: Alvor, Sagres, Aljezur e Castro Marim. Das suas 68 freguesias reduziram-se-lhe duas: N.ª S.ª do Verde, em Monchique, e S. João da Venda, em Faro, a qual se restabeleceria em 1842 no concelho de Loulé. Portanto, nada de especial. Apenas o caso dos concelhos era mais grave, já que Castro Marim não aceitou a decisão de ser extinto e muito menos de ser integrado no de Vila Real de Santo António, município mais pequeno e mais recente do que o da antiga sede da Ordem de Cristo. Quanto aos outros nada a obstar. Tanto Alvor como Sagres estavam praticamente extintos desde o fim do pombalismo. Os parâmetros utilizados para a sua ab-rogação incidiam na escassez populacional, nas dificuldades de comunicações terrestres e na constituição “unicelular” do tecido concelhio. A celeuma suscitada pelos habitantes de Castro Marim foi tão acesa que a Junta Geral do Distrito de Faro aconselhou o governo central a revogar a decisão inicial.8
Os casos de Sagres e Aljezur não ofereceram grande polémica visto serem pobres, reduzidos em população e não disporem de gente instruída para o exercício dos cargos municipais, razão pela qual foram anexados aos de Vila do Bispo e Monchique, respectivamente. E, de facto, quando o oficial inglês George Landmann, visitou o Algarve durante a Guerra Peninsular, a vila de Aljezur pareceu-lhe pobre e pouco populosa, cujo casario desprovido da alvura da cal se apresentava aos olhos do visitante com um aspecto desolador.9
Curiosamente com Aljezur passou-se algo inusitado, pois que estando previsto fundir-se no concelho de Lagos acabaria por ser anexado a Monchique, o que causava grandes transtornos aos seus moradores. Esse desnorte foi aproveitado pelos aljezurenses para lavrarem uma petição de protesto na qual se queixavam da má contagem dos fogos na vila (que era de 552 e não de 468) e a perda de grande parte da freguesia de Bordeira, que serviu para garantir à de Vila do Bispo os índices estatísticos de sobrevivência como concelho, que eram geralmente inferiores a Aljezur.10 Considerando os transtornos que as cinco léguas de travessia da serra de Monchique causavam aos aljezurenses para irem tratar das suas obrigações fiscais e camarárias, decidiu a Comissão de Estatística [a quem fora entregue a revisão da Reforma Administrativa] restabelecer o concelho de Aljezur, devolvendo-lhe «as freguezias que formavão o território do seu antigo municipio».11 O decreto de 27-9-1837 aceitava a autonomia concelhia de Aljezur e reintegrava-lhe a freguesia de Odeceixe, terminando assim a primeira tentativa frustrada de extinção deste concelho.
O problema da reforma administrativa nunca foi pacífico e, de certo modo, agudizou-se com a publicação do Código, uma espécie de bandeira do novo regime liberal. Se no Código Administrativo de Passos Manuel, de 1836, os concelhos, como vimos, foram reduzidos para 351, no Código de Costa Cabral, de 1842, cresceram para 381; mas com Rodrigues Sampaio, em 1878, reduziram-se para 290, em 1880 Luciano de Castro não mexeu nos municípios e com João Franco, em 1895, apenas se acrescentou um concelho. Como se constata pela análise dos diversos códigos administrativos, não foi o Algarve objecto de grandes mudanças, pois que desde 1836 se manteve nos 15 concelhos e cerca de 70 freguesias. Porém, não podemos deixar de afirmar que os concelhos algarvios que mais sofreram com as bolandas da reforma administrativa foram Castro Marim, Vila do Bispo e Aljezur. A sua justificação era sempre a mesma: escassez populacional, isolamento geográfico e falta de letrados para a execução do poder autárquico.
No início da década de cinquenta no século passado surgiu a tão esperada estabilidade política, através de um movimento liderado pelo velho general Saldanha, e que a História registaria como o período da “Regeneração”. Em todo o caso quem nessa altura surgiria na ribalta da política como sendo o verdadeiro rosto da reconstrução económica, foi o Eng.º Fontes Pereira de Melo. A sua estratégia política incidiu num plano de ordenamento das vias de comunicação terrestre, estradas e caminho-de-ferro, de forma a potenciar os recursos agrários, desenvolver os mercados regionais e interligar as populações do interior com o litoral. Para isso teve de recorrer a um vasto plano de obras públicas e de fomento agro-industrial, para cuja concretização teve de recorrer aos empréstimos externos. Em certa medida pode dizer-se que a política do governo foi bem sucedida. O sistema, que na imprensa se denominaria por «Fontismo», foi também nos tablóides da época vulgarizado sob a designação de «melhoramentos materiais». O objectivo último era diminuir o atraso “civilizacional” do nosso país em relação à Europa central.
Mas se para o norte vinhateiro essa política foi benéfica, já o mesmo não se pode dizer em relação ao Algarve, onde os melhoramentos incidiram fundamentalmente na abertura de novos troços com as principais cidades do litoral, assim como no alargamento e reestruturação da estrada longitudinal que ainda hoje serve esta província. Todavia, foi nessa altura que surgiram as cliques políticas e o clientelismo partidário, que opôs interesses privados a benefícios gerais. As lutas eleitorais e a corrupção política tornaram-se numa prática corrente. Julgamos que terá sido neste jogo de interesses eleitorais que se terá publicado o decreto de 24-10-1855, mercê do qual se extinguiram os concelhos de Aljezur e de Vila do Bispo, integrando-os no de Lagos. Foi um ano memorável, por assinalar a subida ao trono do rei de D. Pedro V. Mas enquanto o país rejubilava com o novo monarca, o povo do pacato concelho de Aljezur lamentava a sua extinção.
Com efeito, a publicação da lei eleitoral de 30-9-1852 definiu as regras de participação dos cidadãos e a constituição de círculos eleitorais com base no número de fogos, podendo estes eleger um deputado por cada 6500 fogos, bastando-lhe, porém, 4332 para eleger o primeiro da lista de sete candidatos a que tinha direito. Mas com o decorrer da prática política e os interesses do governo fizeram-se várias alterações à lei, especialmente no que concerne ao número e divisão dos círculos eleitorais e ao número de deputados a eleger por cada um deles. Ora, em 1855, a situação demo-económica de Aljezur e Vila do Bispo justificava a sua anexação ao concelho de Lagos, onde o Visconde de Bivar e o partido regenerador tinham forte influência política. Essa operação de cosmética eleitoral serviu para construir em 1859 o círculo eleitoral n.º 152 que beneficiaria o governo do Duque da Terceira.
Foi por razões em tudo muito semelhantes a estas, ou seja, de interesse eleitoral que o decreto de 10-9-1861 fez Aljezur retornar à sua condição de concelho, recebendo de Vila do Bispo a freguesia da Bordeira e mantendo Odeceixe. Porém, não se alteraria a sua situação de quase isolamento em relação aos grandes centros urbanos, nem melhoraria a frágil economia rural ou o escasso crescimento demográfico. A situação voltou a repetir-se com a promulgação do novo Código Administrativo de João Franco, que usando os acostumados argumentos demo-económicos deu azo a que o governo publicasse em 14-8-1895, o decreto que extinguiria novamente os três mais pequenos concelhos do Algarve (Vila do Bispo, Aljezur e Castro Marim). E o decreto eleitoral de 28-3-1895 da autoria do governo de Hintze Ribeiro, reflectia mais uma vez o desrespeito pelo sufrágio e pela representatividade das populações, pois que transformava a anterior centena de círculos eleitorais em apenas vinte e duas circunscrições, das quais o Algarve era a última. Como reacção a esta atitude - que aliás se viria a repetir em 1901 com uma lei eleitoral muito semelhante que a imprensa cognominaria de «ignóbil porcaria» - o Partido Progressista e a oposição republicana recusaram-se a ir às urnas deixando que os regeneradores alcançassem uma retumbante vitória. A Câmara dos Deputados, exclusivamente dos regeneradores, foi chacoteada com o epíteto de «Solar das Barrigas» resistindo pouco mais de um ano aos ataques da imprensa. A lei de 21-5-1896 reintroduziu os círculos uninominais e com eles se reapreciariam as queixas dos extintos concelhos. Coube ao Dr. José Luciano de Castro, chefe do governo progressista, através do decreto de 13 de Janeiro de 1898, restaurar o concelho de Aljezur. Fez-se justiça, e mais uma vez, qual Fénix renascida, a vila de Aljezur retomaria os seus honrosos pergaminhos municipalistas.


NOTAS

(1) Parece admissível a existência de um porto marítimo em Aljezur, pois que em 1684 num inventário da propriedade fundiária do concelho consta que ali teria existido «hum lizeirão de terra sito no combro do rio ou esteiro, onde antigamente era desembarcadouro».
Cf. João Baptista da Silva Lopes, Corografia ou memoria economica, estadistica, e topografica do Reino do Algarve, Lisboa, Academia das Ciências, 1841, p. 203.

(2) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Reino, Autos de Felicitação, Aclamações, Juramentos e outros, maço 9, I série, doc. n.º 106, datado de 16-3-1826, assinado pelo presidente da edilidade, Manoel Marreiros, e firmado de cruz por todos os vereadores, visto serem analfabetos, o que demonstra o atraso cultural dos aljezurenses, em larga medida resultante da marginalização económica daquele concelho.

(3) Este inquérito de 1758, também designado por «Memórias Paroquiais», encontra-se depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e constitui o chamado Dicionário Geográfico, organizado pelo Padre Luiz Cardoso, que nunca se chegou a editar. As «Memórias Paroquiais» relativas ao concelho de Aljezur foram publicadas na revista Espaço Cultural, n.º 5 de Dezembro de 1990, pp. 29-46.

(4) Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral de Comércio, Agricultura e manufacturas, Repartição e Comércio, 3S-2, «Rellaçam das Feiras Francas do Districto de Faro», 1851.

(5) Os índices populacionais aqui utilizados foram extraídos de João Baptista Lopes, op, cit., «Mappa n.º2, comparativo da População do Algarve desde 1732 até 1837».

(6) Cf. Francisco Luiz Pereira de Sousa, O Megasismo de 1.º de Novembro de 1755 em Portugal, Distrito de Faro, Lisboa, 1915, estampa V «Variação da População, maior de 7 anos, de 1758 a 1911 no Algarve».

(7) José Carlos Vilhena Mesquita, O Algarve no processo histórico do liberalismo português, 2 vols., Faro, Universidade do Algarve, 1997.

(8) O Conselho Geral do Distrito de Faro para evitar ódios e desacatos com os habitantes de Vila Real de St.º António, e atendendo «à preponderancia que a maior população de Castromarim tem sobre a de Vila Real, entende que se conservem as cousas no anterior estado, restituindo a Castromarim os seus antigos fóros».
Arquivo Histórico Parlamentar, secção I-II, caixa 450, doc. n.º 210, ofício n.º 78 da Administração Geral do Distrito de Faro, datado de 24-2-1837.

(9) «Aljezur é tão miseravelmente pobre que não merece mais do que uma referência muito breve. A vila parece consistir unicamente numa rua muito íngreme, muito irregularmente construída e muito mal pavimentada. As casas com poucas excepções, têm apenas o andar térreo que, na maioria dos casos nem mesmo é pavimentado. O seu exterior é extremamente triste porque são construídas com pedras de cor escura e muitas delas sem argamassa, visto que a cal é aqui artigo muito raro. Os habitantes, num total de cerca de cem famílias, parecem ser da mais humilde condição.»
George Landmann, Historical, Military and Picturesque Observations on Portugal, 2 vols., Londres, 1818, pp. 136-143, traduzidas e publicadas em Espaço Cultural, n.º 6, Dezembro de 1991, p. 23.

(10) A.H.P. secção I-II, caixa 206, doc. n.º 91, Petição-Abaixo Assinado dos moradores de Aljezur, s/d.

(11) A.H.P. secção I-II, caixa 450, doc. n.º 205, 17.º Distrito, Faro, reorganização do concelho de Aljezur, acta da Comissão de Estatística, datada de 1-7-1837.

* Professor da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, publicado na Al-Rihana, Revista Cultural do Município de Aljezur, n.º 1, 2004.

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