J. C. Vilhena Mesquita
Neste espírito «algarviista» – que todos me reconhecem, mas que só me tem granjeado dissabores e inimigos – tenho vindo a reunir, ao longo dos anos, um imenso acervo documental sobre o Algarve. São os meus «papéis velhos» ou, como já alguém lhes chamou, a minha "Torre do Tombo". Os amigos e sobretudo os meus alunos sabem do que se trata.
Neles exumei um artigo, de Vasco da Gama Fernandes, publicado na «República», de 21-3-1960, intitulado "Algarve". Duas razoes me levaram de imediato a pensar na sua reedição.
A primeira remonta aos primórdios dos anos 80, quando ao lado do Prof. Adelino da Palma Carlos conheci pela primeira vez esse causídico de tão vigorosa têmpera. Tinha um porte altivo, rosto comprido, olhos fundos, voz oraculina, mãos esguias estrangulando sucessivos cigarros. "Este é como eu, um livre-pensador. Algo idealista, por vezes, muito inocente..." – dizia Palma Carlos. "Mandou o ...[não digo quem] à merda e saiu do partido. Está velho..., diziam os novos adesivos do PS."
O Dr. Vasco da Gama Fernandes, riu-se das palavras do amigo e retorquiu: "Foi por isso que a Lurdes Pintassilgo me mandou para o Museu". Referia-se à sua nomeação para director do Museu da República e da Resistência. A conversa foi azeda e muito acintosa para algumas das actuais figuras políticas. Guardei-a na memória e dela também extratei algumas notas para a Algarviana, que então, como agora, ambicionava publicar. Recordo-me que a um deles chamava-lhe "o Inquisidor mor", por, em nome do partido, fazer uso de informadores e provocar intrigas entre certas individualidades de grande prestígio político. Não digo nomes, mas agora percebo como foi que alguns "cinzentões" conseguiram subir na vida política.
Guardo na lembrança desse encontro a ironia do Prof. Palma Carlos e os seus dotes de contador de episódios picarescos. Páginas de memórias nem sempre passíveis de publicação.
"A vida miudinha de um homem às vezes é uma piolheira. Mas isso não invalida que ele seja um homem grande... percebe?" Claro, respondi com aquele ar tolerante que o Dr. Vasco da Gama adoptara como lema, quase epitáfio de uma vida quixotescamente dedicada à complacência das ideias e à liberdade de opinião.
"Acima de tudo, e antes de mais, sou um tolerante – dizia ele. A juventude possui a generosidade da tolerância. A propósito, quando eclodiu em Paris a revolução de Maio eu fui lá para me pôr a par dos ideais da juventude. Nem imagina o que aquilo foi."
Imagino sim – retorqui com orgulho –, também lá estive, em Julho de 68, na companhia de meu irmão, estudante da Sorbone, e também ele um "soixante-huitarde".
A partir daqui tomou as rédeas da conversa e ilustrou-a com gestos amplos, numa mimética de sentidos que lhe engrandeciam a palavra. Quem ali falava era o Tribuno do Povo, seguro, confiante, imune. Mas aquela possante figura irradiava uma fulgurante sensibilidade, que se reflectia na defesa dos valores da emancipação humana: trabalho, honra e liberdade.
A conversa é como as cerejas, pega-se num assunto...
Naturalmente o Algarve veio à baila. Lembro-me do ar estupefacto do Prof. Palma Carlos ao ouvir-me falar das suas tropelias de infância no Largo da Palmeira e no Jardim da Alameda, em Faro, como se eu tivesse feito parte da "trupe dos Lampiões", à qual pertencera nos princípios deste século. Foi uma espécie de provocação – no bom sentido – à qual ripostou com várias outras revelações de carácter memoralista e de inegável interesse regionalista. Porém o seu desalento era profundo. Sentia-se ostracisado pelo Algarve, e não encontrei argumentos que me permitissem demonstrar-lhe o contrário.
Nessa altura, o Dr. Vasco da Gama Fernandes referiu-se ao Algarve e aos algarvios que conhecera nos anos 60. Uma fiada de nomes, alguns oficiais do mesmo ofício: os Drs. Neves Anacleto, Rita da Palma, Júlio Carrapato, Lyster Franco. Não lhe ouvi uma referência depreciativa para qualquer deles. Eram todos "homens grandes".
As suas palavras eram duma clarividência quase profética. Com eloquência teceu a caracterização do povo algarvio, nos seus anseios e limitações, enfatizando a riqueza do mar e a benignidade da terra, como principais agentes modeladores de um psiquismo cultural que considerava ímpar no nosso país.
Revelou-me então que havia escrito 20 anos antes um artigo sobre esse "país do sol", que dera à estampa no jornal «República». Prometeu enviar-mo, o que cumpriu pouco depois.
A segunda razão que me levou a pensar na sua reedição prende-se com as qualidades de observador e de analista esclarecido do autor. Considero-o um documento de grande utilidade para a história do turismo algarvio. Repare-se que estávamos no início da década de 60, um período de grandes perturbações políticas, marcado pela guerra colonial, greves académicas, assassinato do General Humberto Delgado, sucessão de Marcelo Caetano ao moribundo ditador Oliveira Salazar...
Mas os tão saudosos, quanto conturbados, anos 60 assinalaram também os primeiros investimentos no turismo algarvio e o arranque de grandes empreendimentos, como os de Vilamoura e Torralta. Por isso, considero notável a sua profetização do turismo como principal sector de desenvolvimento socioeconómico do Algarve.
As palavras com que Vasco da Gama Fernandes fundamenta as potencialidades do Algarve para o incremento do turismo, constituem o cerne desta brilhante peça jornalística. Contudo, nela transparece também a saudade da infância passada em Cabo Verde, de onde era natural, sugerida pela intensa luminosidade solar e águas calmas das nossas praias.
Mas a sua perspicácia de observador reveste-se, por vezes, de um profundo analismo sociológico. Demonstram-no afirmações tão modelares quanto aquela em que alude à singularidade do povo algarvio, numa espécie de simbiose entre o homem e o mar: "O mar imenso, nas suas complexidades e nos seus atractivos, modelou uma psique que não encontra semelhança noutro ponto do país. Vivendo, primordialmente, dele, o algarvio parece trazer na alma o alvoroço das tempestades e a quietude moirisca dos crepúsculos. É um ser àparte na comunidade portuguesa."
Essa singularidade do povo algarvio evidenciava-se também no dramático fenómeno da emigração e das alterações culturais (enculturação) a que se submetiam os portugueses além fronteiras: "...quando regressa, embora com modificações na sua maneira de ser é sempre o mesmo algarvio, individualista e orgulhoso, habituado à fartura e à pobreza, mas de espinha direita e alma lavada."
Por tudo isto, não só pela clarividência como pela qualidade estilística do texto, justifica-se, aqui e agora, a sua reedição. Mas se não for essa uma razão suficiente, pelo menos que o seja uma razão necessária para homenagear a memória de um homem que, com coragem e sacrifício, lutou pela instauração da liberdade e da democracia, que hoje todos desfrutamos.
Neste espírito «algarviista» – que todos me reconhecem, mas que só me tem granjeado dissabores e inimigos – tenho vindo a reunir, ao longo dos anos, um imenso acervo documental sobre o Algarve. São os meus «papéis velhos» ou, como já alguém lhes chamou, a minha "Torre do Tombo". Os amigos e sobretudo os meus alunos sabem do que se trata.
Neles exumei um artigo, de Vasco da Gama Fernandes, publicado na «República», de 21-3-1960, intitulado "Algarve". Duas razoes me levaram de imediato a pensar na sua reedição.
A primeira remonta aos primórdios dos anos 80, quando ao lado do Prof. Adelino da Palma Carlos conheci pela primeira vez esse causídico de tão vigorosa têmpera. Tinha um porte altivo, rosto comprido, olhos fundos, voz oraculina, mãos esguias estrangulando sucessivos cigarros. "Este é como eu, um livre-pensador. Algo idealista, por vezes, muito inocente..." – dizia Palma Carlos. "Mandou o ...[não digo quem] à merda e saiu do partido. Está velho..., diziam os novos adesivos do PS."
O Dr. Vasco da Gama Fernandes, riu-se das palavras do amigo e retorquiu: "Foi por isso que a Lurdes Pintassilgo me mandou para o Museu". Referia-se à sua nomeação para director do Museu da República e da Resistência. A conversa foi azeda e muito acintosa para algumas das actuais figuras políticas. Guardei-a na memória e dela também extratei algumas notas para a Algarviana, que então, como agora, ambicionava publicar. Recordo-me que a um deles chamava-lhe "o Inquisidor mor", por, em nome do partido, fazer uso de informadores e provocar intrigas entre certas individualidades de grande prestígio político. Não digo nomes, mas agora percebo como foi que alguns "cinzentões" conseguiram subir na vida política.
Guardo na lembrança desse encontro a ironia do Prof. Palma Carlos e os seus dotes de contador de episódios picarescos. Páginas de memórias nem sempre passíveis de publicação.
"A vida miudinha de um homem às vezes é uma piolheira. Mas isso não invalida que ele seja um homem grande... percebe?" Claro, respondi com aquele ar tolerante que o Dr. Vasco da Gama adoptara como lema, quase epitáfio de uma vida quixotescamente dedicada à complacência das ideias e à liberdade de opinião.
"Acima de tudo, e antes de mais, sou um tolerante – dizia ele. A juventude possui a generosidade da tolerância. A propósito, quando eclodiu em Paris a revolução de Maio eu fui lá para me pôr a par dos ideais da juventude. Nem imagina o que aquilo foi."
Imagino sim – retorqui com orgulho –, também lá estive, em Julho de 68, na companhia de meu irmão, estudante da Sorbone, e também ele um "soixante-huitarde".
A partir daqui tomou as rédeas da conversa e ilustrou-a com gestos amplos, numa mimética de sentidos que lhe engrandeciam a palavra. Quem ali falava era o Tribuno do Povo, seguro, confiante, imune. Mas aquela possante figura irradiava uma fulgurante sensibilidade, que se reflectia na defesa dos valores da emancipação humana: trabalho, honra e liberdade.
A conversa é como as cerejas, pega-se num assunto...
Naturalmente o Algarve veio à baila. Lembro-me do ar estupefacto do Prof. Palma Carlos ao ouvir-me falar das suas tropelias de infância no Largo da Palmeira e no Jardim da Alameda, em Faro, como se eu tivesse feito parte da "trupe dos Lampiões", à qual pertencera nos princípios deste século. Foi uma espécie de provocação – no bom sentido – à qual ripostou com várias outras revelações de carácter memoralista e de inegável interesse regionalista. Porém o seu desalento era profundo. Sentia-se ostracisado pelo Algarve, e não encontrei argumentos que me permitissem demonstrar-lhe o contrário.
Nessa altura, o Dr. Vasco da Gama Fernandes referiu-se ao Algarve e aos algarvios que conhecera nos anos 60. Uma fiada de nomes, alguns oficiais do mesmo ofício: os Drs. Neves Anacleto, Rita da Palma, Júlio Carrapato, Lyster Franco. Não lhe ouvi uma referência depreciativa para qualquer deles. Eram todos "homens grandes".
As suas palavras eram duma clarividência quase profética. Com eloquência teceu a caracterização do povo algarvio, nos seus anseios e limitações, enfatizando a riqueza do mar e a benignidade da terra, como principais agentes modeladores de um psiquismo cultural que considerava ímpar no nosso país.
Revelou-me então que havia escrito 20 anos antes um artigo sobre esse "país do sol", que dera à estampa no jornal «República». Prometeu enviar-mo, o que cumpriu pouco depois.
A segunda razão que me levou a pensar na sua reedição prende-se com as qualidades de observador e de analista esclarecido do autor. Considero-o um documento de grande utilidade para a história do turismo algarvio. Repare-se que estávamos no início da década de 60, um período de grandes perturbações políticas, marcado pela guerra colonial, greves académicas, assassinato do General Humberto Delgado, sucessão de Marcelo Caetano ao moribundo ditador Oliveira Salazar...
Mas os tão saudosos, quanto conturbados, anos 60 assinalaram também os primeiros investimentos no turismo algarvio e o arranque de grandes empreendimentos, como os de Vilamoura e Torralta. Por isso, considero notável a sua profetização do turismo como principal sector de desenvolvimento socioeconómico do Algarve.
As palavras com que Vasco da Gama Fernandes fundamenta as potencialidades do Algarve para o incremento do turismo, constituem o cerne desta brilhante peça jornalística. Contudo, nela transparece também a saudade da infância passada em Cabo Verde, de onde era natural, sugerida pela intensa luminosidade solar e águas calmas das nossas praias.
Mas a sua perspicácia de observador reveste-se, por vezes, de um profundo analismo sociológico. Demonstram-no afirmações tão modelares quanto aquela em que alude à singularidade do povo algarvio, numa espécie de simbiose entre o homem e o mar: "O mar imenso, nas suas complexidades e nos seus atractivos, modelou uma psique que não encontra semelhança noutro ponto do país. Vivendo, primordialmente, dele, o algarvio parece trazer na alma o alvoroço das tempestades e a quietude moirisca dos crepúsculos. É um ser àparte na comunidade portuguesa."
Essa singularidade do povo algarvio evidenciava-se também no dramático fenómeno da emigração e das alterações culturais (enculturação) a que se submetiam os portugueses além fronteiras: "...quando regressa, embora com modificações na sua maneira de ser é sempre o mesmo algarvio, individualista e orgulhoso, habituado à fartura e à pobreza, mas de espinha direita e alma lavada."
Por tudo isto, não só pela clarividência como pela qualidade estilística do texto, justifica-se, aqui e agora, a sua reedição. Mas se não for essa uma razão suficiente, pelo menos que o seja uma razão necessária para homenagear a memória de um homem que, com coragem e sacrifício, lutou pela instauração da liberdade e da democracia, que hoje todos desfrutamos.
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