José Carlos Vilhena Mesquita
Não podendo furtar-me ao honroso convite manifestado conjuntamente pela ATAM – Associação dos Técnicos Administrativos Municipais e pela Câmara Municipal de Castro Marim, é com o maior prazer que aqui evoco, ainda que de forma sumária, as origens da imprensa regional algarvia. Assim, e sem mais delongas, saliento que o primeiro jornal editado nesta província veio à luz do prelo em 1833, com a sugestiva designação de «Chronica do Algarve».[1]
Possuía a particularidade de se intitular como órgão oficial das tropas liberais, que acabavam de invadir esta província sob o comando do Duque da Terceira, e de defender o partido constitucionalista liderado pelo Regente D. Pedro, ex-imperador do Brasil. Diga-se de passagem que era mais um órgão que surgia à imagem, e sob a mesma designação, dos seus congéneres que se publicavam nos baluartes legitimistas da Ilha Terceira e da Cidade Invicta. Propunha-se como bissemanário, que se publicaria às quartas e sábados, para noticiar os sucessos militares da invasão do Algarve.
Quando o analisei na Biblioteca Nacional[2] fiquei com algumas dúvidas quanto à sua autenticidade como órgão de informação, visto que não existindo mais nenhum número que demonstre a sua continuidade, fiquei com a sensação de que nasceu e morreu no mesmo instante. Acrescem as dúvidas no facto das suas dimensões serem diminutas e demasiado humildes para os fins a que se propunha, isto é, ser arauto das tropas "libertadoras" da rainha D. Maria II. Por outro lado, em vez de um Editorial político e arrebatador inseria uma simples nota intitulada "Prospecto", na qual anunciava os propósitos da futura «Chronica». Todas estas razões me levaram a recear que este jornal não tivesse passado de uma quimera, que as precárias condições da época tornaram de todo inexequível. [3] Tenho quase a certeza de que as razões que ditaram a sua extinção deverão estar relacionadas com o avanço em direcção a Lisboa das tropas liberais que viriam a tomar a capital, surpreendentemente sem resistência, no memorável dia 24 de Julho de 1833. Ora, precisamente um mês antes haviam desembarcado na praia da Alagoa, junto a Cacela, o que, pela precipitação dos factos (que não vale a pena aqui esmiuçar), nos leva a supor não ter havido tempo nem disponibilidade para dar seguimento à publicação da «Cronica do Algarve».
Perante as dúvidas que acabamos de enunciar, que apesar de tudo não impedem que se aponte o ano de 1833 como raiz cronológica da Imprensa Algarvia, estamos em crer que o primeiro periódico, a poder indubitavelmente usufruir dessa designação, foi «O Popular - Jornal do Algarve», um modesto órgão farense, cujo primeiro número se perdeu irremediavelmente, mas cuja data de origem deve ter sido 10 de Março de 1847. Não é absolutamente fidedigna, pois que cheguei a esta data por aproximação, já que o n.º7 depositado na Biblioteca Nacional está datado de 31-3-1847. É o único que existe ao público.[4] O mais curioso é que, à semelhança da «Chronica» também este foi um jornal militar, surgido no âmago das lutas políticas e da guerra-civil da Patuleia. Aliás, veio a público como arauto da Junta governativa do Algarve, sendo, por isso, uma fonte de insofismável interesse histórico.[5] Aliás, em termos de crescimento periodístico, verificamos uma acentuada curva evolutiva sempre que ocorreram no nosso país crises políticas e sociais, principalmente mudanças de regime ou conflitos armados. Não obstante, e com o decorrer dos tempos, também constatamos que em períodos de acentuado crescimento económico a imprensa é um dos sectores que mais se acentua na vida quotidiana.
Em síntese, são estas as origens da Imprensa Regional Algarvia, que não sendo de excepcional importância precederam, em todo o caso, o vizinho Alentejo, onde cidades como Évora ou Beja apenas dispuseram de órgãos de informação muito mais tardios. Devemos, porém, acrescentar que as origens da Imprensa em Portugal prendem-se à cidade de Évora, visto nela se ter editado em 1628 a Segunda Relaçam Universal do Que Succedeu em Portugal e mais Provinceas do Occidente e Oriente, da autoria de Manuel Severim de Faria. A diferença é que não se tratava de um órgão noticioso, como o vieram a ser os periódicos do séc. XIX, mas antes de uma descrição dos acontecimentos políticos que grassavam no país durante o domínio filipino. Teve a particularidade de ser desafecto ao partido estrangeiro e de com essa postura ter suscitado o aparecimento da Censura.[6]
A evolução da imprensa algarvia, após os exemplos supra-citados, decorreu durante o período «Fontista», acentuando-se progressivamente até aos nossos dias. E nesse sentido importa destacar a zona barlaventina do Algarve, com particular destaque para a cidade de Lagos, que foi, no século passado, um verdadeiro alfobre de intelectuais e brilhantes jornalistas. Pode até dizer-se que ali se fez escola em torno de alguns títulos e do ideário republicano. Impõe-se, neste caso, salientar que a Lagos pertence a honra de ali ter nascido, em 1868, o primeiro jornal republicano desta província, intitulado «O Echo do Algarve», de vida efémera, é certo, mas de grande impacto político na região.[7] Por outro lado, naquela cidade existiu a primeira tipografia privada do Algarve[8], pertença de Francisco Xavier Baptista Xula, liberal e revolucionário que em 1828 se refugiou no estrangeiro para escapar aos torcionários miguelistas.[9] Nela se deu à estampa um órgão intitulado «Verdade Nua», que nunca vimos, mas que temos a plena certeza da sua existência, através de uma acta da Câmara Municipal de Lagos.[10] Aliás, nesse prelo veio a público, exactamente em 1840, um livrinho, hoje raríssimo, sobre as eleições que ali se iriam realizar para o Senado e para o Parlamento.[11] A respeito da «Verdade Nua», praticamente nada se sabe, cabendo ao Dicionário Portugal a primazia duma ligeira referência.[12]
Não terá sido, certamente, por acaso que a cidade de Lagos no século passado acrescentava aos seus nobres pergaminhos históricos o orgulho de possuir um verdadeiro escol de intelectuais ligados à imprensa. Num breve relance aqui se evoca, em jeito de homenagem, a memória de Afonso Cañet de Castro, Jeronymo Bicker Cabral, Joaquim João Serpa, Bartolomeu Salazar Moscoso, Augusto Feio Soares de Azevedo, António Augusto Lobo de Miranda, etc. Mas, apesar dessas tradições, vemos hoje a cidade de Lagos com falta de um semanário, que não retiraria mérito nem desprimor aos seus actuais dois mensários, que se publicam nem sempre com a melhor regularidade. Em todo o caso, pior está o concelho de Vila do Bispo que nunca teve qualquer órgão de informação, lamentando-se que Castro Marim se encontre desprovida de um periódico há cerca de oitenta anos. Felizmente a vila de Alcoutim inaugurou há pouco tempo atrás a imprensa naquele concelho através da publicação do «Jornal do Baixo Guadiana».
Para concluir devemos acrescentar que os quase seiscentos órgãos que compõem a imprensa algarvia desde 1833 até aos nossos dias repartem-se pelos mais variados sectores da actividade humana, sendo na sua maioria órgãos políticos, a par de muitos outros afectos a associações culturais, organizações sindicais, escolas, grupos de teatro, igreja católica e protestante, empresas comerciais, unidades hoteleiras e de turismo, clubes desportivos, municipalistas, recreativos, humorísticos, educativos, estudantis, científicos, comemorativos, publicitários, coleccionistas, mutualistas, partidários, etc. Não obstante a sua índole, por vezes demasiado especializada e restritiva, o certo é que em todos eles se constata um intrínseco propósito de informar, definindo objectivos e discernindo sobre aquilo em que cada um deles se distingue. Ao fim e ao cabo, neles se deixa transparecer que o móbil que a todos une se materializa na vontade de informar e de dignificar a região algarvia.
Mercê de uma aturada e minuciosa análise da imprensa regional algarvia, ficamos cientes da sua sensibilidade às conjunturas políticas e económicas que atravessaram, e afectaram, o nosso país desde os meados do século passado. Os mais prejudicados com as alterações políticas são sempre os órgãos que defendem posições partidárias contrárias ou soluções de regime opostas às que se instalavam. Comprova-o a extinção de vários jornais durante as alterações a que esteve sujeito não só o regime monárquico como o republicano. Uns foram vitimados pelas mudanças governativas ou de sucessão de regime, outros pela ignóbil Censura, ou pela extinção do sistema democrático em 1926. Não deixa de ser curioso que após o «25 de Abril» foi quase insignificante o número de jornais que fecharam portas por incompatibilidade política. Esta constatação não se configurou exclusivamente ao Algarve, mas também a todo o país.
Considerando que o Algarve está hoje quase exclusivamente vocacionado para o Turismo, importa referir, a título de curiosidade, que desde 1918 existem nesta região órgãos de imprensa dedicados à propaganda turística que, por falta de meios ou pelas conjunturas históricas que assolaram a Europa, se extinguiram rapidamente. Assistiu-se, porém, desde os anos oitenta a um recrudescimento deste género jornalístico, imbuído num misto de publicidade e de propaganda das potencialidades naturais da região. A prova desse importante segmento de mercado reside no facto de se editarem actualmente no Algarve quase uma vintena de órgãos impressos em língua estrangeira, sobretudo em inglês e alemão, o que reflecte um crescente aumento dessas comunidades na região. As rádios estrangeiras, ou os noticiários emitidos em inglês nas estações de maior audiência do litoral algarvio, comprovam o vigor da nossa imprensa turística.
A grande diferença que encontramos na imprensa regional, do passado para o presente, prende-se sobretudo ao foro tecnológico. Hoje os jornais têm melhor apresentação, são mais ilustrados, possuem melhor papel e imprimem-se a cores, fruto dos novos recursos da moderna tipografia. Porém, ao contrário do passado, raramente possuem um parque gráfico autónomo e não dispõem de recursos humanos especializados. São menos criativos e pouco opinativos, raramente críticos e demasiado subservientes ao poder. Não têm colaboradores de prestígio intelectual e fazem-se geralmente depender dos apoios publicitários das autarquias. Em suma, os actuais órgãos da imprensa algarvia são demasiado dóceis para se poderem assemelhar aos seus congéneres do passado.
NOTAS
[1] Não enjeito a honra, nem o orgulho, de ter sido o primeiro historiador a descobrir e a analisar ao pormenor este órgão inaugural da Imprensa Regional do Algarve. Devo ainda acrescentar que em 15 de Julho de 1983 realizei no antigo Círculo Cultural do Algarve uma Conferência-Colóquio intitulada "Os 150 Anos da Imprensa Algarvia", por ser precisamente nesse dia que se comemorava aquela efeméride.
[2] B.N.L., Secção dos Periódicos, J.2585 V.
[3] Veja-se a este propósito a minha comunicação ao 3.º Congresso Nacional sobre o Algarve intitulada «Chronica do Algarve terá sido o primeiro Jornal Algarvio ?», in, Livro das Comunicações, 2 vols., s/l, Racal Clube de Silves, 1984, pp. 135-146.
[4] Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção dos Periódicos, J.2458 (25) V.
[5] Vem a talhe de foice acrescentar que o primitivo arquivo desta Junta Governativa do Algarve foi vendido em Leilão, presumo que em 1966, a uma Universidade americana. O Professor que o adquiriu faleceu no ano seguinte e o arquivo está ainda encaixotado e por inventariar.
[6] Vide José Timóteo da Silva Bastos, História da Censura Intelectual em Portugal (Ensaio sobre a compreensão do pensamento português, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926.
[7] Vide José Carlos Vilhena Mesquita, História da Imprensa do Algarve, 2 vols., Faro, Ed. Comissão de Coordenação da Região do Algarve, 1988-1989, vol. I, pp. 583-585.
[8] Não está, obviamente, aqui em causa a primazia do prelo hebraico de Samuel Gacon, sediado em Faro, que em 1487 deu à estampa, o Pentateuco, incunábulo de espécie única, cimélio inaugural da imprensa portuguesa e verdadeira jóia da cultura judaica, posta a recato na British Library.
[9] Cf. José Carlos Vilhena Mesquita, Liberalismo e Anti-Liberalismo no Algarve (1826-1828) - Subsídios para o seu estudo, 2 vols., policopiado, Faro, Universidade do Algarve, 1988, vol.I p. 303.
[10] Vide O Livro das Sessões da Vereação, acta de 19 de Maio de 1840, na qual se agradece a António Marques de Mendonça Ramos a edição do Jornal A Verdade Nua. Acrescente-se que Mendonça Ramos foi um prestigiado jurisconsulto lacobrigense, que pelas suas ideias liberais foi preso e pronunciado na devassa de 1828.
José Carlos Vilhena Mesquita, História da Imprensa do Algarve, op. cit., vol. I, p. 651-652.
[11] Esse livrinho de apenas 14 páginas, impresso na Typographia de F.X. Baptista, sita na Rua de St.ª Maria n.º 131, tem por título Actas que Conteem As Despoziçoens Tomadas pela Comissão do Circulo de Lagos para dirigirem as Eleiçoens para Senadores, e Deputados ás Cortes que se devião reunir em Lisboa no anno de 1840. É uma fonte de primordial importância para se perceber como se organizavam as eleições nos círculos eleitorais do Algarve, quem a elas podia concorrer e quem nelas tinha direito de voto, já que se tratava de um sufrágio censitário e não universalista como se verifica actualmente.
[12] Cf. Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, Portugal, Diccionario historico, chorografico, heraldico, biographico, bibliographico, numismatico e artistico, 7 vols., Lisboa, João Romano Torres Edts., 1904-1915, em cujo artigo sobre «Lagos», e no parágrafo dedicado à imprensa, se refere a edição da «Verdade Nua» no ano de 1840.
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