José Carlos Vilhena Mesquita
A cidade de Faro, que no princípio deste século sofria da letárgica pacatez provinciana a que desde há séculos nos habituara o centralismo político, teve a ousadia de acolher favoravelmente a descabelada genialidade do movimento futurista liderado por Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá Carneiro. Importará acrescentar que em Portugal o arauto desse movimento foi a revista Orpheu, cuja publicação causou grande sensação nos meios culturais e gerou uma linha de ruptura na esclerosada escola romântica e uma via de progresso na aurora simbolista.
Decorria o tempo da I Guerra Mundial, uma espécie de marco miliário que assinala o início deste século e que no nosso país, legitima e consolida a implantação da República. No Algarve soprava uma ligeira agitação social em torno da carestia de vida, do açambarcamento de víveres de primeira necessidade, do desemprego e das restrições emigratórias. Apenas o movimento sindical operário, nos sectores corticeiro e conserveiro dava sinais da sua força, organizando comícios, manifestações de rua e greves. Eram tempos agitados a que a imprensa prestava a melhor atenção. Inspirados nos valores sócio-políticos do recém instituído regime republicano, surgiam novos títulos, enquanto outros se realinhavam entre as novas tendências, repartindo-se por ideários revolucionários do tipo republicano democrata-agnóstico, socialista ou anarquista.
Entre os órgãos que, sem descurarem a propaganda republicana, aliavam a informação política à formação intelectual dos seus leitores, situava-se «O Heraldo», um semanário fundado em Tavira pelo Dr. João Pedro de Sousa, mas que em 1912 viera para Faro, pela mão do pintor Carlos Augusto Lyster Franco, figura cimeira da cultura algarvia deste século. Nessa altura o Dr. Pedro de Sousa fora eleito deputado, pelo que vendeu não só título como o parque gráfico do jornal ao pintor Lyster Franco, prestigiado docente do Liceu de Faro, que impregnou naquele órgão um cariz fundamentalmente literário, sem porém amordaçar a sua anterior inspiração política, expressamente conotada com o Partido Democrático de Afonso Costa. Com uma periodicidade bissemanal, a sua vocação cultural foi amortecendo as naturais adversidades político-partidárias, conquistando progressivamente o público farense, sobretudo as damas da melhor sociedade, admiradoras da florentina figura de “galante uomo” que Lyster Franco soubera conquistar e impor no seio da burguesia citadina.
Apoio do «Heraldo»
O seu culto pela poesia demonstrou-o nos cinco anos (1912-1917) em que dirigiu «O Heraldo», dando a mão a muitos jovens sequiosos de afirmação no restritivo mundo das letras de então. Foi, aliás, nesse órgão, mais propriamente na secção «Gente Nova», que surgiram alguns poetas, que mais tarde o país haveria de consagrar. E a verdade é que Lyster Franco foi um dos primeiros que em 1915 se deixou atrair pelo movimento do «Orpheu», então ainda fugaz e incipiente. Os dois números da revista guardou-os até à morte, como duas relíquias sagradas que o seu filho, o Dr. Mário Lyster Franco, conservou religiosamente. Tive a feliz experiência de os ver na sua “Algarviana” como peças bibliófilas de primeira grandeza, até pelo facto de estarem autografados por Fernando Pessoa e Almada Negreiros.
O movimento artístico-cultural, a que se convencionou chamar Modernismo, prendeu a sua dupla sensibilidade de artista e homem de letras. Por isso, a secção de poesia do seu jornal, anteriormente designada por «Gente Nova», foi sugestivamente alterada para «Futurismo». Esta mudança não significava uma adulteração de rumo, mas antes uma identificação ou realinhamento cultural com a realidade vigente. Com efeito a poesia da secção «Gente Nova» era nitidamente futurista, pelo que a mudança de designação era justa e natural. Nascia, assim, na edição de 4 de Fevereiro de 1917, uma página inteiramente dedicada ao Futurismo que, infelizmente, encerraria com o próprio Heraldo a 26 de Agosto do mesmo ano, para jamais se ouvir falar no Algarve dessa «literatura de manicómio astral».
Marinetti e o Movimento Futurista
Em boa verdade, identifica-se o Futurismo com o Modernismo, o que, na verdade, não corresponde ao espírito que destrinça os dois movimentos literários, havendo, no entanto, a considerar que o Futurismo marca o início de uma época que haveria de perdurar até ao movimento da «Presença». As origens deste movimento estético-literário, remontam à Itália, mais precisamente a Milão, onde o poeta Marinetti reuniu à sua volta um grupo de pintores, poetas e músicos, interessados em romper com a velha estrutura clássica que dominava as instituições culturais. Eram, na sua generalidade, jovens que se autodenominavam por futuristas, tendo o seu primeiro «Manifesto» causado enorme escândalo nos meios artísticos, ao ser publicado a 20 de Fevereiro de 1909 no jornal parisiense «Le Figaro». As pretensões deste grupo de poetas-pintores eram simples mas demolidoras: esquecer o passado e criar um futuro sem raízes conhecidas; desprezo pelos museus, academias e mestres; extinguir o tradicionalismo e tudo quanto é clássico; amar a velocidade, a liberdade, o perigo, a violência e a máquina; sobretudo prezar a originalidade. Na poesia tudo isto se traduzia num verso livre, sem métrica e sem musicalidade, procurando explorar a inquietação, a insatisfação, o ocultismo, a astrologia e o metapsiquismo. Estávamos, portanto, em presença de uma declaração de guerra ao idealismo romântico.
O Futurismo Português
No nosso país o movimento impulsionado por Marinetti teve repercussões por volta de 1915, altura em que Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho dão à estampa o primeiro número da revista «Orpheu». Mas os principais mentores da iniciativa foram, contudo, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, que, aliás, já se apresentavam à frente dos seus destinos no segundo e último número da revista. Curiosamente Fernando Pessoa esconde-se por detrás de um heterónimo, Álvaro de Campos, e assina então porventura a obra-prima do futurismo português repartida pela «Ode Marítima» e pela «Ode Triunfal». São dois poemas magistrais, de rara beleza, plenos de fulgor e movimento a atestar o extraordinário talento do seu criador. A Mário de Sá-Carneiro ficou-se a dever a criação do poema «Manicure», que ele próprio classificaria de “semifuturista com intenção de blague” nos moldes perfeitamente modernistas.[1] Infelizmente a estranha personalidade sado-masoquista deste poeta inconstante levá-lo-ia ao suicídio, precisamente um ano após o início do movimento do «Orpheu». As circunstâncias de ordem financeira, a adversidade que a opinião pública lhes demonstrava, ao apodá-los de mistificadores e alienados, o suicídio de Sá-Carneiro, são tudo razões que grosso modo justificam a extinção da revista, muito embora esta houvesse iniciado a publicação do número três, sem nunca o ter concluído.
O Futurismo no Algarve
O bom acolhimento prestado ao movimento futurista na página literária do bissemanário farense «O Heraldo» ficou a dever-se ao pintor Carlos Augusto Lyster Franco. Acompanharam-no nessa ingrata tarefa dois talentosos jovens, de quem muito haveria a esperar no campo das artes e das letras. Referimo-nos a Carlos Porfírio, pintor futurista de inegável talento, e a Mário Lyster Franco, autor de numerosos trabalhos sobre a cultura algarvia e de uma obra monumental conhecida por Algarviana, que mais não é do que um dicionário bibliográfico, cuja edição iniciada em 1982 nunca mais foi retomada.[2]
Curiosamente, Carlos Porfírio, após o encerramento de «O Heraldo», irá dirigir a revista «Portugal Futurista», cuja carreira literária não teve o impacte desejado, e daí ter morrido à nascença. Apesar de tudo, foi uma tentativa, inglória como todas as outras, num país republicano profundamente castiço, religioso e romântico. Tudo quanto fosse inovador, bizarro e anti-saudosista, causava aberração numa sociedade tradicionalista, sentimental e sebastianista, que, apesar do esforço de Afonso Costa, permanecia intrinsecamente clerical. Por isso, estes movimentos artístico-literários, como o Futurismo, pouco eco obtinham na província, geralmente assoberbada pela batina clerical, que nestas “coisas de moços”, ainda por cima esquisitos no falar e no vestir, viam presságios do inferno.
Efectivamente, «O Heraldo» de Lyster Franco praticava um jornalismo responsável, sério e rigoroso, defendendo os valores culturais do Algarve, sem nunca abdicar da sua profunda e convicta inspiração republicana. Daí o seu apoio ao movimento do «Orpheu», materializado inclusivamente na colaboração prestada por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Saliente-se que Mário de Sá-Carneiro foi o primeiro a colaborar nas colunas do «Heraldo» com um texto em prosa intitulado «Além», que ainda hoje se conserva praticamente desconhecido.[3] Seguiu-se-lhe Fernando Pessoa com o poema "A Casa Branca, Nau Preta", assinada pelo seu punho e que estranhamente aparecerá nas poesias completas de Álvaro de Campos, que, como se sabe, é um dos heterónimos do autor da Mensagem. Tudo leva a crer, que este poema foi ditado com o coração em Tavira, cidade que visitou na juventude e à qual o poeta estava ligado por laços familiares, o que provavelmente explica a ideia de fazer “nascer” Álvaro de Campos como Engenheiro Naval oriundo desta cidade algarvia. Por fim, a Almada Negreiros pertence o poema “Litoral”, dedicado ao pintor futurista de efémera existência, o genial Amadeu de Sousa Cardoso.
Torna-se curioso acrescentar que, quando Almada Negreiros enviou este poema à redacção do «Heraldo», aparecia um verso que dizia textualmente o seguinte: “A lua a mijar na cisterna”. Perante o facto, e adivinhando o escândalo que isto poderia suscitar num meio pequeno e conservador como Faro, o pintor Lyster Franco recusou-se a publicar o poema intitulado “Belfast” que continha o citado verso.[4] Porém, o seu filho Mário alvitrou a ideia de em vez da palavra mijar se publicasse antes miar, o que, de certo modo, solucionaria o problema do jornal perante o autor e o público. Realmente para o poeta a alteração poderia ser justificável como simples gralha tipográfica, e para o público não passaria de uma bizarrice futurista, pois que a Lua jamais poderia mijar ou miar numa cisterna. Tudo isso seria um absurdo, portanto, ao público tanto servia de uma forma como de outra, se bem que a primeira pudesse ferir o nome do jornal, que era dirigido por um homem impoluto e de elevadas responsabilidades sociais.
A cidade de Faro, que no princípio deste século sofria da letárgica pacatez provinciana a que desde há séculos nos habituara o centralismo político, teve a ousadia de acolher favoravelmente a descabelada genialidade do movimento futurista liderado por Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá Carneiro. Importará acrescentar que em Portugal o arauto desse movimento foi a revista Orpheu, cuja publicação causou grande sensação nos meios culturais e gerou uma linha de ruptura na esclerosada escola romântica e uma via de progresso na aurora simbolista.
Decorria o tempo da I Guerra Mundial, uma espécie de marco miliário que assinala o início deste século e que no nosso país, legitima e consolida a implantação da República. No Algarve soprava uma ligeira agitação social em torno da carestia de vida, do açambarcamento de víveres de primeira necessidade, do desemprego e das restrições emigratórias. Apenas o movimento sindical operário, nos sectores corticeiro e conserveiro dava sinais da sua força, organizando comícios, manifestações de rua e greves. Eram tempos agitados a que a imprensa prestava a melhor atenção. Inspirados nos valores sócio-políticos do recém instituído regime republicano, surgiam novos títulos, enquanto outros se realinhavam entre as novas tendências, repartindo-se por ideários revolucionários do tipo republicano democrata-agnóstico, socialista ou anarquista.
Entre os órgãos que, sem descurarem a propaganda republicana, aliavam a informação política à formação intelectual dos seus leitores, situava-se «O Heraldo», um semanário fundado em Tavira pelo Dr. João Pedro de Sousa, mas que em 1912 viera para Faro, pela mão do pintor Carlos Augusto Lyster Franco, figura cimeira da cultura algarvia deste século. Nessa altura o Dr. Pedro de Sousa fora eleito deputado, pelo que vendeu não só título como o parque gráfico do jornal ao pintor Lyster Franco, prestigiado docente do Liceu de Faro, que impregnou naquele órgão um cariz fundamentalmente literário, sem porém amordaçar a sua anterior inspiração política, expressamente conotada com o Partido Democrático de Afonso Costa. Com uma periodicidade bissemanal, a sua vocação cultural foi amortecendo as naturais adversidades político-partidárias, conquistando progressivamente o público farense, sobretudo as damas da melhor sociedade, admiradoras da florentina figura de “galante uomo” que Lyster Franco soubera conquistar e impor no seio da burguesia citadina.
Apoio do «Heraldo»
O seu culto pela poesia demonstrou-o nos cinco anos (1912-1917) em que dirigiu «O Heraldo», dando a mão a muitos jovens sequiosos de afirmação no restritivo mundo das letras de então. Foi, aliás, nesse órgão, mais propriamente na secção «Gente Nova», que surgiram alguns poetas, que mais tarde o país haveria de consagrar. E a verdade é que Lyster Franco foi um dos primeiros que em 1915 se deixou atrair pelo movimento do «Orpheu», então ainda fugaz e incipiente. Os dois números da revista guardou-os até à morte, como duas relíquias sagradas que o seu filho, o Dr. Mário Lyster Franco, conservou religiosamente. Tive a feliz experiência de os ver na sua “Algarviana” como peças bibliófilas de primeira grandeza, até pelo facto de estarem autografados por Fernando Pessoa e Almada Negreiros.
O movimento artístico-cultural, a que se convencionou chamar Modernismo, prendeu a sua dupla sensibilidade de artista e homem de letras. Por isso, a secção de poesia do seu jornal, anteriormente designada por «Gente Nova», foi sugestivamente alterada para «Futurismo». Esta mudança não significava uma adulteração de rumo, mas antes uma identificação ou realinhamento cultural com a realidade vigente. Com efeito a poesia da secção «Gente Nova» era nitidamente futurista, pelo que a mudança de designação era justa e natural. Nascia, assim, na edição de 4 de Fevereiro de 1917, uma página inteiramente dedicada ao Futurismo que, infelizmente, encerraria com o próprio Heraldo a 26 de Agosto do mesmo ano, para jamais se ouvir falar no Algarve dessa «literatura de manicómio astral».
Marinetti e o Movimento Futurista
Em boa verdade, identifica-se o Futurismo com o Modernismo, o que, na verdade, não corresponde ao espírito que destrinça os dois movimentos literários, havendo, no entanto, a considerar que o Futurismo marca o início de uma época que haveria de perdurar até ao movimento da «Presença». As origens deste movimento estético-literário, remontam à Itália, mais precisamente a Milão, onde o poeta Marinetti reuniu à sua volta um grupo de pintores, poetas e músicos, interessados em romper com a velha estrutura clássica que dominava as instituições culturais. Eram, na sua generalidade, jovens que se autodenominavam por futuristas, tendo o seu primeiro «Manifesto» causado enorme escândalo nos meios artísticos, ao ser publicado a 20 de Fevereiro de 1909 no jornal parisiense «Le Figaro». As pretensões deste grupo de poetas-pintores eram simples mas demolidoras: esquecer o passado e criar um futuro sem raízes conhecidas; desprezo pelos museus, academias e mestres; extinguir o tradicionalismo e tudo quanto é clássico; amar a velocidade, a liberdade, o perigo, a violência e a máquina; sobretudo prezar a originalidade. Na poesia tudo isto se traduzia num verso livre, sem métrica e sem musicalidade, procurando explorar a inquietação, a insatisfação, o ocultismo, a astrologia e o metapsiquismo. Estávamos, portanto, em presença de uma declaração de guerra ao idealismo romântico.
O Futurismo Português
No nosso país o movimento impulsionado por Marinetti teve repercussões por volta de 1915, altura em que Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho dão à estampa o primeiro número da revista «Orpheu». Mas os principais mentores da iniciativa foram, contudo, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, que, aliás, já se apresentavam à frente dos seus destinos no segundo e último número da revista. Curiosamente Fernando Pessoa esconde-se por detrás de um heterónimo, Álvaro de Campos, e assina então porventura a obra-prima do futurismo português repartida pela «Ode Marítima» e pela «Ode Triunfal». São dois poemas magistrais, de rara beleza, plenos de fulgor e movimento a atestar o extraordinário talento do seu criador. A Mário de Sá-Carneiro ficou-se a dever a criação do poema «Manicure», que ele próprio classificaria de “semifuturista com intenção de blague” nos moldes perfeitamente modernistas.[1] Infelizmente a estranha personalidade sado-masoquista deste poeta inconstante levá-lo-ia ao suicídio, precisamente um ano após o início do movimento do «Orpheu». As circunstâncias de ordem financeira, a adversidade que a opinião pública lhes demonstrava, ao apodá-los de mistificadores e alienados, o suicídio de Sá-Carneiro, são tudo razões que grosso modo justificam a extinção da revista, muito embora esta houvesse iniciado a publicação do número três, sem nunca o ter concluído.
O Futurismo no Algarve
O bom acolhimento prestado ao movimento futurista na página literária do bissemanário farense «O Heraldo» ficou a dever-se ao pintor Carlos Augusto Lyster Franco. Acompanharam-no nessa ingrata tarefa dois talentosos jovens, de quem muito haveria a esperar no campo das artes e das letras. Referimo-nos a Carlos Porfírio, pintor futurista de inegável talento, e a Mário Lyster Franco, autor de numerosos trabalhos sobre a cultura algarvia e de uma obra monumental conhecida por Algarviana, que mais não é do que um dicionário bibliográfico, cuja edição iniciada em 1982 nunca mais foi retomada.[2]
Curiosamente, Carlos Porfírio, após o encerramento de «O Heraldo», irá dirigir a revista «Portugal Futurista», cuja carreira literária não teve o impacte desejado, e daí ter morrido à nascença. Apesar de tudo, foi uma tentativa, inglória como todas as outras, num país republicano profundamente castiço, religioso e romântico. Tudo quanto fosse inovador, bizarro e anti-saudosista, causava aberração numa sociedade tradicionalista, sentimental e sebastianista, que, apesar do esforço de Afonso Costa, permanecia intrinsecamente clerical. Por isso, estes movimentos artístico-literários, como o Futurismo, pouco eco obtinham na província, geralmente assoberbada pela batina clerical, que nestas “coisas de moços”, ainda por cima esquisitos no falar e no vestir, viam presságios do inferno.
Efectivamente, «O Heraldo» de Lyster Franco praticava um jornalismo responsável, sério e rigoroso, defendendo os valores culturais do Algarve, sem nunca abdicar da sua profunda e convicta inspiração republicana. Daí o seu apoio ao movimento do «Orpheu», materializado inclusivamente na colaboração prestada por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Saliente-se que Mário de Sá-Carneiro foi o primeiro a colaborar nas colunas do «Heraldo» com um texto em prosa intitulado «Além», que ainda hoje se conserva praticamente desconhecido.[3] Seguiu-se-lhe Fernando Pessoa com o poema "A Casa Branca, Nau Preta", assinada pelo seu punho e que estranhamente aparecerá nas poesias completas de Álvaro de Campos, que, como se sabe, é um dos heterónimos do autor da Mensagem. Tudo leva a crer, que este poema foi ditado com o coração em Tavira, cidade que visitou na juventude e à qual o poeta estava ligado por laços familiares, o que provavelmente explica a ideia de fazer “nascer” Álvaro de Campos como Engenheiro Naval oriundo desta cidade algarvia. Por fim, a Almada Negreiros pertence o poema “Litoral”, dedicado ao pintor futurista de efémera existência, o genial Amadeu de Sousa Cardoso.
Torna-se curioso acrescentar que, quando Almada Negreiros enviou este poema à redacção do «Heraldo», aparecia um verso que dizia textualmente o seguinte: “A lua a mijar na cisterna”. Perante o facto, e adivinhando o escândalo que isto poderia suscitar num meio pequeno e conservador como Faro, o pintor Lyster Franco recusou-se a publicar o poema intitulado “Belfast” que continha o citado verso.[4] Porém, o seu filho Mário alvitrou a ideia de em vez da palavra mijar se publicasse antes miar, o que, de certo modo, solucionaria o problema do jornal perante o autor e o público. Realmente para o poeta a alteração poderia ser justificável como simples gralha tipográfica, e para o público não passaria de uma bizarrice futurista, pois que a Lua jamais poderia mijar ou miar numa cisterna. Tudo isso seria um absurdo, portanto, ao público tanto servia de uma forma como de outra, se bem que a primeira pudesse ferir o nome do jornal, que era dirigido por um homem impoluto e de elevadas responsabilidades sociais.
O fim da aventura futurista no Algarve
Muito embora não tenha sido efectivamente «O Heraldo» o primeiro e único jornal a apoiar o movimento futurista [5], o certo é que foi, sem dúvida, o único a manter publicamente uma secção literária intitulada «Futurismo» e a contar com a colaboração dos três vultos mais destacados do «Orpheu».
Não devemos esquecer que o director de «O Heraldo» e o seu “braço direito” Carlos Porfírio, eram artistas plásticos e, por isso, não permaneceram insensíveis a esta onda que do estrangeiro trazia uma nova mensagem estético-literária. Marinetti pretendia através da publicação do seu «Manifesto» incentivar o «culto do instável, do indefinido, do inefável, a que se prende a subestimação do épico em relação ao lírico ou “poesia pura”; vontade duma literatura sem literatura; ódio às coisas claras ou acabadas; gosto da vertigem e do absurdo; exaltação do primitivismo em todas as suas manifestações, arte infantil, arte dos loucos, escrita automática, mera expansão do inconsciente, descidas ao abismo do sonho».[6]
Não sabemos se seriam esses os propósitos do “grupo futurista de Faro”, mas o que é certo é que se manteve acordado e sensível a esta onda de renovação estética, que como todos os movimentos literários, e à semelhança de qualquer moda, teve a sua época própria, até que inevitavelmente passou à história. Em todo o caso, convém acrescentar que o futurismo foi um movimento artístico que transcorreu o país numa altura em que o novo regime republicano ensaiava os primeiros passos, e, talvez por isso, não lhe tenham prestado a atenção merecida.
Foi uma plêiade de “novos”, como lhe chamou a misteriosa Misse Edith[7] ao “grupo do Heraldo”, que aqui perpetuou o ideário do «Orpheu», escudando a sua timidez numa capa de pseudónimos, alguns dos quais hoje indecifráveis. Já agora, aqui ficam os que se puderam apurar como indubitáveis: o pintor Carlos Lyster Franco assinava Kernok, Carlos Porfírio era o Nesso, Mário Lyster Franco, com apenas quinze anos, era o Fontanes, João Rosado assinava Horácio ou Ó Rácio, Raul Marques Carneiro era o A. de Queiroz, António do Nascimento era o Naissance e o prof. José Nunes de Sousa foi o único que nunca ocultou a sua verdadeira identidade, não usando por isso pseudónimo. Os outros, que são ainda assim bastantes, dormem o sono dos ignorados, uma espécie de soldados desconhecidos.
Efectivamente, deveu-se a Carlos Porfírio todo o entusiasmo futurista do “grupo do Heraldo”. Nado e finado em Faro (1895-1970), Carlos Porfírio foi um talentoso pintor, cujas obras poderão ainda ser apreciadas no Museu de Etnografia desta cidade, do qual, aliás, foi fundador e director. Os seus estudos, nas artes plásticas fundamentou-os em Paris, onde permaneceu até à Grande Guerra, filiando-se inclusivamente na família da célebre escritora Simone de Beauvoir, que aqui ao Algarve o vinha visitar. Era amigo íntimo de Almada Negreiros, de Santa Rita Pintor e de Mário de Sá-Carneiro, tendo-lhe pertencido a direcção da revista Portugal Futurista. Após o seu desaparecimento praticamente caiu no esquecimento, embora recentemente, e só aquando do seu centenário, o Dr. Emmanuel Correia lhe tenha dedicado vários artigos e um livro em vias de ser editado. Do “grupo do Heraldo” o último a desaparecer foi o Dr. Mário Lyster Franco, que durante quarenta anos dirigiu o semanário «Correio do Sul» e iniciou uma obra ímpar como o é a Algarviana, infelizmente interrompida no 1.º volume em 1982. A maioria destas informações colhi-as pessoalmente junto dele, embora também tivesse a oportunidade de consultar a colecção de «O Heraldo» na Biblioteca Nacional.
Muito embora não tenha sido efectivamente «O Heraldo» o primeiro e único jornal a apoiar o movimento futurista [5], o certo é que foi, sem dúvida, o único a manter publicamente uma secção literária intitulada «Futurismo» e a contar com a colaboração dos três vultos mais destacados do «Orpheu».
Não devemos esquecer que o director de «O Heraldo» e o seu “braço direito” Carlos Porfírio, eram artistas plásticos e, por isso, não permaneceram insensíveis a esta onda que do estrangeiro trazia uma nova mensagem estético-literária. Marinetti pretendia através da publicação do seu «Manifesto» incentivar o «culto do instável, do indefinido, do inefável, a que se prende a subestimação do épico em relação ao lírico ou “poesia pura”; vontade duma literatura sem literatura; ódio às coisas claras ou acabadas; gosto da vertigem e do absurdo; exaltação do primitivismo em todas as suas manifestações, arte infantil, arte dos loucos, escrita automática, mera expansão do inconsciente, descidas ao abismo do sonho».[6]
Não sabemos se seriam esses os propósitos do “grupo futurista de Faro”, mas o que é certo é que se manteve acordado e sensível a esta onda de renovação estética, que como todos os movimentos literários, e à semelhança de qualquer moda, teve a sua época própria, até que inevitavelmente passou à história. Em todo o caso, convém acrescentar que o futurismo foi um movimento artístico que transcorreu o país numa altura em que o novo regime republicano ensaiava os primeiros passos, e, talvez por isso, não lhe tenham prestado a atenção merecida.
Foi uma plêiade de “novos”, como lhe chamou a misteriosa Misse Edith[7] ao “grupo do Heraldo”, que aqui perpetuou o ideário do «Orpheu», escudando a sua timidez numa capa de pseudónimos, alguns dos quais hoje indecifráveis. Já agora, aqui ficam os que se puderam apurar como indubitáveis: o pintor Carlos Lyster Franco assinava Kernok, Carlos Porfírio era o Nesso, Mário Lyster Franco, com apenas quinze anos, era o Fontanes, João Rosado assinava Horácio ou Ó Rácio, Raul Marques Carneiro era o A. de Queiroz, António do Nascimento era o Naissance e o prof. José Nunes de Sousa foi o único que nunca ocultou a sua verdadeira identidade, não usando por isso pseudónimo. Os outros, que são ainda assim bastantes, dormem o sono dos ignorados, uma espécie de soldados desconhecidos.
Efectivamente, deveu-se a Carlos Porfírio todo o entusiasmo futurista do “grupo do Heraldo”. Nado e finado em Faro (1895-1970), Carlos Porfírio foi um talentoso pintor, cujas obras poderão ainda ser apreciadas no Museu de Etnografia desta cidade, do qual, aliás, foi fundador e director. Os seus estudos, nas artes plásticas fundamentou-os em Paris, onde permaneceu até à Grande Guerra, filiando-se inclusivamente na família da célebre escritora Simone de Beauvoir, que aqui ao Algarve o vinha visitar. Era amigo íntimo de Almada Negreiros, de Santa Rita Pintor e de Mário de Sá-Carneiro, tendo-lhe pertencido a direcção da revista Portugal Futurista. Após o seu desaparecimento praticamente caiu no esquecimento, embora recentemente, e só aquando do seu centenário, o Dr. Emmanuel Correia lhe tenha dedicado vários artigos e um livro em vias de ser editado. Do “grupo do Heraldo” o último a desaparecer foi o Dr. Mário Lyster Franco, que durante quarenta anos dirigiu o semanário «Correio do Sul» e iniciou uma obra ímpar como o é a Algarviana, infelizmente interrompida no 1.º volume em 1982. A maioria destas informações colhi-as pessoalmente junto dele, embora também tivesse a oportunidade de consultar a colecção de «O Heraldo» na Biblioteca Nacional.
NOTAS
[1] Cf. «Futurismo» in Dicionário da Literatura Portuguesa, dirigido por Jacinto do Prado Coelho, 5 vols., 3.ª ed., Porto, Liv. Figueirinhas, 1978, vol. II, p. 335.
[2] Aquando do seu 80.º aniversário publiquei no «Diário de Notícias» de 20-2-1982, um artigo intitulado «Mário Lyster Franco homenagem que tarda», no qual advoguei a urgente publicação da sua Algarviana. Felizmente em Dezembro desse ano consegui publicar o 1.º volume pela Câmara Municipal de Faro, o lamentavelmente e contra a minha vontade não teve seguimento. No mesmo órgão publiquei em 13-9-1984 um artigo sobre a morte do Dr. Mário Lyster Franco, no qual acuso a edilidade farense de não dar deliberadamente seguimento à edição daquela que sempre considerei como a obra-mestra da cultura algarvia.
[3] A colaboração em poesia e prosa inserida na secção «Gente Nova-Futurismo» do bissemanário O Heraldo, foi seleccionada e compilada por Nuno Júdice no livro Poesia Futurista Portuguesa (Faro 1916-1917), Lisboa, Ed. Regra do Jogo, 1981; o texto de Mário de Sá-Carneiro vem inserido na p. 11.
[4] Vide Nuno Júdice, op. cit., p. 132.
[5] Por razões de justiça e submissão à verdade, convém acrescentar que no dia 5 de Agosto de 1909, o Diário dos Açores, de Ponta Delgada, transcreveu nas suas colunas o Manifesto de Marinetti, sendo curiosamente o único jornal português a fazê-lo. Publicaria também pouco depois uma entrevista que Marinetti concedeu ao poeta Luís Francisco Bicudo, que a traduziu para o povo açoreano.
Cf. Dicionário da Literatura Portuguesa, op. cit., vol. II, p. 355.
[6] Jacinto do Prado Coelho, Problemática da História Literária, 2.ª ed., Lisboa, Edições Ática, s/d., p. 250.
[7] Ver Nuno Júdice, op. cit., p. 14.
Os meus parabéns, pela Investigação!
ResponderEliminarAprendi e vou divulgar para que outros possam ter acesso ao Saber.
Obrigado pelo seu simpático comentário.
ResponderEliminarEspero que olte mais vezes ao convívio deste blogue.
boa tarde, estou a fazer o meu trabalho final de curso sobre o jornal «O Heraldo» e deu-me jeito para organizar o trabalho. Esse tal poema de M. sá Carneiro foi publicado no jornal?
ResponderEliminarAndré Luis
Caro André Luís:
ResponderEliminarNa verdade o que Mário Sá Carneiro publicou no «Heraldo» foi um texto, intitulado «Além», que hoje seria considerado uma poesia. O Ramos Rosa escreve poesia dessa maneira.
Pode consultá-lo no jornal ou no livro do Nuno Júdice.
Se quer que lhe diga o Futurismo no Algarve (que foi o único caso fora de Lisboa) teve um rosto: Carlos Porfírio. Foi ele quem se lembrou de criar a secção "Gente Nova" no «Heraldo» e foi a atração pelos novos caminhos da arte que o levaram para Paris, onde se casou com a tia da Simone de Beauvoir.
Aconselho-o a incidir o seu trabalho no Carlos Porfírio que nunca esqueceu o movimento do Orfeu, a tal ponto que viria a dirigir e talvez mesmo a editar a revista «Portugal Futurista».
Se precisar da minha ajuda deverá contactar-me pessoalmente para o email que consta neste blogue.
Cumprimentos do Vilhena Mesquita
Caro J. C. Vilhena Mesquita:
ResponderEliminarDiz-se em vários locais que o Portugal Futurista, dirigido nominalmente por Carlos Filipe Porfírio, o foi realmente por Santa Rita Pintor. Que me sabe dizer sobre isto? Qual foi realmente o papel de Carlos Porfírio?
Também já li algures que Portugal Futurista teria sido editado em Faro. Na própria revista lê-se o seguinte:
Director e fundador: Carlos Filipe Porfirio. Editor: S. Ferreira. Tip. F. Monteiro - Rua do Mundo, 57 - Lisboa. 1917.
Quem é este S. Ferreira?
Obrigado.
José Barreto