quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Agricultura, valor e conceito no Antigo Regime

As colheitas, iluminura medieval
A terra, enquanto bem e rendimento, esteve sempre exposta e indefesa, ao sabor dos ventos políticos, das estruturas económicas e da concorrência dos mercados. Mas, ao cabo e ao resto, o que sempre se teve na consideração de verdadeiro e imutável foi a primazia, generosidade, afeição e imortalidade da agricultura, como expressão natural e garantia de permanência do homem à face da terra. A ligação, ou melhor, a umbilical dependência do homem com a terra, criou fortes laços de identificação com a natureza e o meio ambiente que lhe está adstrito. Não resistimos à tentação de aqui transcrever uma definição deste objecto, pela mão de um pensador anónimo, que mais não traduz do que o sentimento político económico do novo espírito fisiocrático, que anunciava a aurora liberal:
«A terra he depozitaria de todas as matérias não somente proprias para satisfazer as necessidades fisicas, a que os homens são pella sua natureza sujeitos, mas tãobem daquellas que a Commodidade e o Luxo inventarão, e a Agricultura he a Arte e o meio para se procurarem todas estas materias». E logo o nosso desconhecido «economista» avança para a definição do objecto da Agricultura: «(...) o seu effeito he dar occupação a huma parte dos homens de cada Paiz; e a sua perfeição consiste em prover a maior quantidade possível das materias proprias para satisfazer as necessidades dos homens reaes ou de oppinião». Mas não deixa de elucidar que a produção agrícola deve estar em consonância com o comércio, servindo de pedra angular na animação do próprio mercado. Porém, reserva ao Estado a obrigação de não só apoiar as culturas locais como, sobretudo, de incentivar as produções de maior interesse nacional, que, aliás, enuncia: trigo, frutas, gados, bosques, ferro, couros, lãs, azeites, linho, vinhos e seda. Precisamente por esta ordem, misturando a agricultura com a silvicultura ou a pastorícia com a indústria, como se tudo fosse comum e acostumado ao lavor das gentes.  Logicamente, a conjugação dos dois sectores (agrícola e industrial) constituiria a chave que abriria as portas do sucesso económico. Atente-se mais uma vez nas suas palavras: «Os povos que tem unicamente contemplado a cultura das terras relativamente á propria subsistencia, tem sempre vivido no receio de Carestias; e o que mais he elles a tem frequentissimamente experimentado: mas aquelles Povos que tem considerado a dita cultura como hum objecto de Commercio tem gozado de huma abundancia assaz copioza e inconstante para o proprio sustento e para suprir com o sobejo as necessidades de outros Povos».[1]
A ceifa do trigo, pintura inglesa do século XIX
Não obstante todos os valores sentimentais de que se reveste o assunto, não se pode, nunca, perder de vista o sentido económico da agricultura, a imponderabilidade dos elementos naturais e o árduo esforço, quantas vezes inglório, do trabalhador agrícola. É, principalmente, nesse sentido, de rendimento, valor e lucro que temos de encarar o problema. Quer na óptica do Estado, quer nos interesses do proprietário, o que sempre esteve em jogo foi o aumento da produção, o abastecimento dos mercados e o preço dos géneros, tudo isto girando numa «equilibrada» esfera de valias e conveniências.
Estamos, por conseguinte, frente à evolução natural das coisas, pela conjugação do factor tempo com o aumento dos contactos e conhecimentos entre os povos, do que resultou uma melhor resposta para a satisfação das necessidades e um substancial incremento dos seus rendimentos, mercê da abertura de novos mercados. O aumento das populações fez disparar o consumo e com isto forçar a passagem de uma agricultura de subsistência para uma agricultura «comercial» ou de mercado.

[1] B.N.L., Reservados, códice 11260, «Notícia Geral do Commercio», fls. 8vº-9.


Sem comentários:

Enviar um comentário