segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Aníbal Guerreiro, empresário industrial, escritor e benemérito farense

Aníbal da Cruz Guerreiro, aos 70 anos
Empresário, escritor e jornalista, Aníbal da Cruz Guerreiro, de seu nome completo, nasceu na freguesia da Sé, concelho de Faro, em 1911, e faleceu na mesma cidade a 20-2-1990, com 78 anos de idade.
Frequentou o Liceu de Faro de 1920 a 1927, onde se fez notar pela sua vivacidade e inteligência, colaborando nos jornais estudantis e organizando torneios desportivos. No velho Liceu, que é hoje o edifício da Escola Tomás Cabreira, fez muitas amizades, algumas das quais permaneceram leais até ao fim da vida. Nesse período de juvenil fulgor acalentava a ideia de vir a ser jornalista desportivo, começando então a escrever para alguns órgãos de Lisboa sobre os desafios de futebol aqui disputados pelo Olhanense, pelo Farense e pelo Luzitano de Vila Real.
Não tendo logrado os meios de sobrevivência necessários ao melhor desempenho nos estudos secundários, decidiu pelo trabalho auferir o seu sustento, de forma livre e independente. Enveredou pela vida profissional ligada à indústria de transportes. Como era muito inteligente e perspicaz, decidiu avançar em 1932, com a ajuda doutros sócios fundadores, para a criação da Empresa de Viação Algarve, Ld.ª (E.V.A.). E como necessidade de expansão do negócio, alguns anos depois fundou a Empresa Rodoviária do Sotavento do Algarve. Ambas alcançaram enorme sucesso no sector dos transportes de passageiros e mercadorias, impondo-se entre as melhores do país. Para além disso, criou outras empresas comerciais de pequena dimensão que foi vendendo com o decorrer do tempo. De todas as que fundou ao longo da sua vida mantém-se ainda em laboração a empresa de camionagem, que é uma das maiores do país, e o famoso Hotel Eva, o mais moderno do seu tempo e o importante da cidade de Faro, sendo hoje um dos mais antigos do Algarve.
Caricatura de Francisco
Zambujal
O apelo do jornalismo amador não o largava, pelo que em 1938 fez-se comentador desportivo no semanário farense «Correio do Sul», com uma secção intitulada “Vida Desportiva” na qual dava pormenorizado destaque aos desafios de futebol que se realizavam na província. Isto é notável se tivermos em linha de conta que aquele semanário pelo seu forte pendor cultural, não dava importância ao futebol.
Uma das suas principais paixões era a música, dedicando muito do seu tempo livre à composição e à prática instrumental. Diga-se, em abono da verdade, que era talentoso, mas tinha uma vida profissional muito ocupada, além de que era muito modesto nas suas aspirações artísticas, razão pela qual, apesar de tocar vários instrumentos, nunca chegou a ser conhecido como músico. Em todo o caso, nos Jogos Florais de Tavira, realizados a 31-12-1943, obteve o 1.º prémio na modalidade de “composição musical” com um corridinho do Algarve, cujo júri era presidido pelo famoso maestro da Orquestra Sinfónica Nacional e professor do Conservatório de Lisboa, Eduardo Pavia de Magalhães, o que atesta bem da qualidade da peça vencedora.
Na década de 60, dedicou-se também ao transporte turístico pela província e já como sócio gerente da E.V.A. criou uma carreira diária entre Lisboa e Sevilha, o que sendo notável, para a época, representava também uma grande aposta na implementação do turismo.
Igualmente a Aníbal Guerreiro se ficou devendo a criação de núcleos de apoio social para os trabalhadores da empresa, nomeadamente um refeitório para o pessoal, uma biblioteca e uma Caixa Particular de Auxilio na Doença. Foi sócio fundador e primeiro presidente do Grémio Distrital dos Industriais Hoteleiros e Similares de Faro, que foi a primeira associação de classe dos hoteleiros no Algarve, que por vicissitudes políticas alterou a sua designação para Associação dos Industriais Hoteleiros e Similares do Algarve (AIHSA). Neste sector, Aníbal Guerreiro, tem o seu nome ligado à construção, em 1950, da Estalagem EVA, na vila de Ferreira do Alentejo, e ao Hotel EVA, inaugurado a 1-4-1966, em Faro, e do qual foi administrador até 1974.
Hotel Eva, junto à doca de Faro, inaugurado a 1-4-66
Em 1962 fundou a “Agência de Viagens EVA” e a “EVA rent a car”. Pertenceu como vogal ao Conselho Superior de Transportes Rodoviários, onde se manteve durante vários anos, e aos grupos de estudo e planeamento da Direcção-Geral de Turismo e da Direcção-Geral de Transportes Terrestres, formulando a regulamentação dos Circuitos Turísticos e Agências de Viagens.
Preocupado com a assistência social, desenvolveu acção de assinalável mérito à frente do Instituto D. Francisco Gomes, vulgarmente designado por «Casa dos Rapazes», a cuja direcção pertenceu durante sete anos, mas à qual ficou ligado como benemérito até ao fim da sua vida. Não podemos esquecer que foi Aníbal Guerreiro quem providenciou a obtenção dos meios financeiros que permitiram construir o seu actual magnifico edifício-sede. Para a obtenção desses fundos organizou as «Festas da Cidade de Faro», a cuja comissão promotora presidiu durante vários anos. Foram célebres essas festividades, realizadas por ocasião dos Santos Populares, no Jardim da Alameda. Aqui vinham milhares de pessoas ouvir os artistas mais famosos do país, não sendo rara a presença de Amália Rodrigues e de outros fadistas famosos, assim como de cançonetistas da nova vaga, como António Calvário, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias e o hilariante Max, cantor e entertainer madeirense, que deveria ser considerado como um dos fundadores do “stand-up” em Portugal.
O sucesso das «Festas da Cidade de Faro» não estava só na qualidade do repertório artístico, mas também na vontade popular de contribuir para uma obra de grande benemerência social, como era a “Casa dos Rapazes”, oficialmente designada por Instituto D. Francisco Gomes. O êxito era tal que praticamente aquela instituição vivia do apuramento financeiro das festividades, das quotizações dos sócios beneméritos e de algumas multas de trânsito que o chefe da P.S.P. na cidade mandava reverter a favor dos pobres rapazes. E note-se que daquelas crianças desvalidas se educaram e formaram muitas dezenas de homens válidos, honrados profissionais e não raros empresários de sucesso, que ainda hoje muito enobrecessem a cidade de Faro.
Acresce dizer que o sucesso das «Festas da Cidade» deveu-se não só ao entusiasmo de Aníbal Guerreiro, mas também à protecção e incentivo do Dr. Gordinho Moreira, então presidente da edilidade, que disponibilizava a logística camarária para garantir o conforto e segurança do público. Mas o que mais celebrizou essas festividades foi a criação das famosas Marchas Populares, que eram inspiradas nas de Lisboa, mas que em si constituíam uma manifestação artística e uma clara afirmação do bairrismo farense. Note-se que o desfile de cada marcha era escrutinado por um júri competente que escolhia a vencedora, pela criatividade artística da dança, da música e da beleza da indumentária.
Os poetas locais escreviam as letras das marchas, cabendo talvez o maior número de vitórias ao inspirado major Victor Castela, que foi um dos mais célebres poetas do seu tempo. Além disso tinha um coração de oiro, nunca dizia que não a um pedido das gentes do povo, e era um grande apaixonado pelos Santos Populares. Nessa altura, as Marchas Populares representavam não só os bairros populares da cidade como também das freguesias do concelho. Lembramos por exemplo a participação das Marchas do Alto Rodes, das Pontes de Marchil, do Montenegro e da Bordeira, que ganhou o concurso em Junho de 1962. A Taça do 1.º Prémio das Marchas era um trofeu de primeiríssima honra para os vencedores, havendo ainda hoje alguns desses trofeus nas sedes das juntas de freguesia do concelho.
Sports do Algarve, fundado por A.G.
No campo do jornalismo deveu-se a Aníbal Guerreiro a fundação, em 14-10-1935, do semanário desportivo farense, «Sports do Algarve», que ele próprio dirigiu e financiou até à extinção, em 9-5-1938. Este órgão de imprensa é hoje uma fonte privilegiada para o estudo do desporto e do futebol algarvio nos anos que precederam a II Guerra Mundial. Por outro lado, contém informação sobre desporto escolar e sobre diversas actividades da recém-criada Mocidade Portuguesa. Para além dessa fase inicial de jornalista desportivo, Aníbal Guerreiro dispersou a sua prestimosa colaboração por diversos órgãos da imprensa algarvia, nomeadamente «O Algarve», «Correio do Sul», «Algarve Desportivo» (1987), etc. Escrevia com elegância e erudição, em bom estilo literário, muito correcto e delicado, mesmo quando era preciso ser acintoso na crítica. Na maioria dos seus artigos notava-se a sua paixão algarvia, e no brilho da sua pena ressaltava a preocupação do futuro, muito particularmente no sector emergente do turismo, a que estava ligado e conhecia bem, sobretudo na necessidade de construir novas e modernas infraestruturas, nomeadamente um aeroporto em Faro – como aliás viria a ser realizado em 1965 – de se melhorar a revê viária para Lisboa e Sevilha (estradas e, caminhos de ferro), de se erigirem novos hóteis em todo o litoral algarvio, de se construir o novo porto de Faro-Olhão (o que foi feito), de se criarem escolas para a instrução das modernas técnicas de turismo, à imagem do que acontecia em França e na Suíça. A forma como abordava esses problemas e como elaborava uma estratégia para a sua solução era tão clara que parecia evidente e exequível. Porém, tudo isso esbarrava na realidade (tanto de ontem como de hoje), isto é, na condição socioeconómica do Algarve, enquanto região periférica, para a qual nenhuma razão se tornava óbvia para fazer convergir o investimento público.
Desde sempre ligado ao sector da cultura, Aníbal Guerreiro pertenceu aos corpos directivos do Conservatório Regional de Música do Algarve, e, no que toca ao fomento desportivo, foi presidente do Sporting Clube Farense, e durante vários anos presidiu à Assembleia Geral do clube. Também foi presidente da Associação de Futebol de Faro, cuja designação localista conseguiu alterar para Associação de Futebol do Algarve.
Primeira excursão turística da EVA, em 1934
Diga-se de passagem, que Aníbal Guerreiro tinha a paixão da música e tocava inclusivamente alguns instrumentos por intuição natural, pois julgo que nunca chegou verdadeiramente a receber lições de solfejo. Em todo o caso, esse amor pela música terá sido o principal motivo que o levou a encarar com tanto fervor a fundação do Conservatório Regional de Música do Algarve, cabendo-lhe a honra de ter conseguido convencer as autoridades a consentirem na sua fundação. Segundo creio foi também dele a ideia de convidar a artista Maria Campina e outros músicos, como o Diamantino Piloto, para ensinarem naquele estabelecimento.
Nos últimos anos de vida colaborava com bastante intensidade na imprensa regional, especialmente no semanário farense «O Algarve», onde manteve a secção «Crónicas Algarvias», que tiveram numerosa audiência não só pela sua elevação sociopolítica como principalmente pela sua qualidade literária. Pouco antes de falecer, publicou em Novembro de 1989 livro as suas apreciadas «Crónicas Algarvias», que saiu a público com o título Esboços de um Algarve Menor. Assisti ao lançamento do livro no Hotel Eva, recebendo da sua mão um exemplar com uma bonita dedicatória e pelo Natal, como era costume, recebia sempre em minha casa uma tarte de amêndoa, que era o seu “foro natalício”, como ele gostava de dizer, em retribuição da minha colaboração na revisão do seu primeiro livro sobre a História da Camionagem. Depois disso encontrávamo-nos pontualmente num ou dois momentos de carácter cultural, até que a notícia da sua morte me colheu de surpresa.
A Câmara Municipal de Faro, em reconhecimento dos bons serviços prestados à cidade, e como forma de gratidão pelas suas acções de benemerência pública, atribuiu-lhe as medalhas de Mérito Municipal (grau prata), em 1982, depois reconfirmada, mas no grau ouro, em 1986. Por sua vez, a Secretaria de Estado do Turismo atribui-lhe a medalha, no grau prata, de Mérito Turístico, pela sua visão precoce e inovadora em prol do desenvolvimento no sector dos transportes, do investimento hoteleiro e do turismo em geral.
Dedicatória de Aníbal Guerreiro
Como escritor e profundo conhecedor do sector do turismo e dos transportes no Algarve, publicou as seguintes obras:
História da Camionagem Algarvia (de passageiros) 1925-1975 (da origem à nacionalização), edição do autor, Faro, 1983; Turismo, Estradas e os problemas, presentes, no Algarve, ed. do autor, Faro, 1984; Esboços de um Algarve menor, edição do Instituto D. Francisco Gomes, Faro, 1989. Publicou também um opúsculo muito interessante, destinado como oferta natalícia aos amigos, intitulado Natal dos Benditos Desditosos, ed. do autor, 1985.
Para terminar, resta-me acrescentar que como elemento da Comissão de Toponímia de Faro, tive a honra de atribuir o nome de Aníbal da Cruz Guerreiro à avenida que vai desde a rotunda da Biblioteca Municipal até desembocar na estrada do Moinho da Palmeira.

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