Venho hoje a terreiro lembrar a figura de um poeta olhanense, hoje absolutamente esquecido, diria antes, injustamente ignorado. E acreditem que foi no seu tempo um homem de talento invulgar, um espírito livre e um inconformista rebelde...
As características açoteias de Olhão, por Artur Pastor |
Creio que a determinada altura da sua vida se sentiu desenraizado, desfasado, do tempo, da sociedade e da mentalidade que não o soube acolher nem compreender. Chama-se João Rico, mas foi sempre desprovido de quaisquer riquezas materiais, que aliás não procurou obter, porque a isso não lhe davam tréguas as musas, nem a ambição da posse material dos prazeres fúteis. Foi sempre prisioneiro do seu génio de poeta sonhador.
Viveu num tempo em que o sonho não comandava a vida, e quem sonhava com outros mundos, mais perfeitos e justos do que este - em que apenas lutamos para não morrer de fome - era tido por lunático, fantasista e louco. Não admira, pois, que a ignorância do vulgo tivesse dele escarnecido e desprezasse as suas palavras, os seus pensamentos e atitudes. Tudo isso porque o João Rico, era apenas um pobre diabo, que incompreensivelmente optara por seguir caminho na margem esquerda do rio, no sentido contrário ao da vulgaridade conformista. Morreu pobre e abandonado.
Para os que nunca souberam quem foi o poeta João Rico, aqui vos deixo, em traço largo e mal vincado, um breve esboço biográfico.
João Rico foi um inspirado poeta e publicista algarvio, nasceu na madrugada do dia 3 de Março de 1892, no sítio de Brancanes, freguesia de Quelfes, no concelho de Olhão. Era filho de João Martins Rico, pedreiro de profissão, e de sua mulher Ana de Jesus, doméstica, ambos naturais da referida freguesia e sítio de Brancanes. Era neto paterno de Domingos Martins Rico e Maria do Rosário, e materno de João de Sousa Neto e Maria dos Santos. Foi seu padrinho de baptismo o avô paterno, também pedreiro de profissão, e madrinha Maria do Carmo, casada com António de Sousa Gago.
Estudou no Liceu de Faro, onde se revelaria um jovem de talento e de grandes recursos intelectuais, partindo depois para a capital a fim de seguir a vida militar, chegando a atingir o posto de oficial do exército. Quando se implantou a República aderiu com entusiasmo ao novo regime, empenhando a pena e o talento na divulgação dos valores morais e dos objectivos de progresso social, cultural e económico, que o governo se propunha empreender para elevar a fasquia do desenvolvimento e do fomento industrial na pátria lusa. Tudo idílicas quimeras que sustentou com a mais sólida convicção, como se a simples mudança de regime constituísse a panaceia de todos os males, de que há séculos enfermava a nossa pobre nação. Quando tinha apenas 22 anos de idade, carreava na alma e no coração muitas desilusões e desgostos que lhe serviram de inspiração para escrever o seu primeiro livro de poesia, com o sugestivo título de Lembrança e Dores, dado à estampa em Lisboa, na tipografia «Sousa e Gonçalves», no ano de 1914. A sua estreia literária, ainda que precoce, evidenciava já o seu raro talento de inspirado e criativo poeta, que não passou desapercebido nas colunas dos jornais da época, nomeadamente no «Século» e na «Ilustração Portuguesa», que lhe publicou o retrato e teceu rasgados elogios ao livro de versos que acabava de publicar.
Após persistentes conversações políticas, levadas a cabo pelo nosso prestigiado embaixador em Londres, Manuel Teixeira Gomes, consegui-se pela persuasão diplomática convencer o velho aliado militar britânico a consentir a participação de Portugal, naquela que augurava ser a guerra de todas as guerras. O governo rejubilava de euforia, porque com a participação no conflito europeu caía de vez o perigo da contra-revolução monárquica vir um dia a contar com o apoio britânico, para a restauração do trono bragantino.
Tal como aconteceu com milhares de outros jovens, João Rico foi incorporado no CEP - Corpo Expedicionário Português, que depois da instrução e treino de combate, realizada na planície alentejana, seguiu para França a bordo dos navios estrangeiros da chamada Tríplice Entente - a aliança
militar formada pelas super-potências europeias, o Reino Unido, a França e
Rússia . Pouco antes de partir, vemo-lo em 1916 ao lado do major Mateus Moreno no elenco da revista «Alma Nova», fundada em Faro em 20-9-1914, mas que dois anos depois assentava arraiais na capital, onde chegou a ter um naipe colaboradores do melhor que então campeava na imprensa portuguesa. Era na secção do «Teatro e Cinema» que João Rico assentara a sua banca de redactor, assinando os artigos de crítica teatral simplesmente com as iniciais do seu nome. Simples e modesto, era assim, na imprensa como na vida.
Descarga da pesca no porto de Olhão (Artur Pastor) |
Sem desesperar, aceitou depois uma via-sacra por diversas repartições públicas, às quais não se conseguia adaptar. O seu talento e espírito rebelde era contrário ao ronceirismo em que viviam os “mangas-de-alpaca”, onde lhe faltava o ar da liberdade de pensamento, onde se sentia naufragar entre os papéis oficiais e as fastidiosas burocracias.
Para sublimar as frustrações da sua vida enfastiante dedicava-se nas horas vagas a escrever, colaborando nos jornais e mesmo publicando livros que lhe deram efémera glória e admiração social. «Melancholia», assim se designava a primeira obra que deu à estampa em 1917, apadrinhada pelo consagrado poeta Gomes Leal, para a qual escreveu um belíssimo prefácio em verso. Apropriado título para um livro de poesia que ressumava as acostumadas mágoas, a natural tristeza e abatimento muito peculiar dos nossos vates. E, na verdade, a poesia resulta, por vezes, na expiação das nossas frustrações e da nossa deprimente infelicidade. Por isso se escreve tanta poesia em Portugal. Não somos um país de poetas, mas antes um país pobre, infeliz e deprimente.
Seguiram-se outras obras de João Rico, como «Fogo nas Cinzas», uma novela singular, com alguns capítulos em que as personagens dialogam em verso, editado em 1931. Seguiram-se outros livros de versos, como «Sonetos e Sonetilhos», editado em 1939 pelo seu próprio bolso, a exemplo dos que se seguiram, como foi o caso de «Rimanceiro», publicado em 1941, «O Enviado», designado como uma espécie de poema didáctico, saído em 1944, cujo exagerado preço de venda ao público, 50$00, era absolutamente proibitivo. É claro que o público não podia aderir a tão desproporcionado valor. Mas a intenção de João Rico era precisamente a de chamar a atenção do público para o valor da poesia, que em seu entender era a mais sublime expressão do génio humano. Por isso o seu livro deveria pagar-se caro, como forma de justificação do seu valor intrínseco. É claro que tudo não passava de uma manobra publicitária, ou como hoje se diz, de um golpe de marketing, para conferir ao poeta a projecção literária que verdadeiramente não possuía. Acrescentava ainda, na página de abertura, que o autor reservava os seus direitos autorais de tradução ou adaptação ao teatro nos seguintes termos: “Esta obra só poderá ser representada em teatro lírico ou declamativo, em qualquer adaptação, com a colaboração e autorização do Autor, em sua vida, e, bem assim, direitos de tradução”. Nunca se tinha visto nada semelhante num livro de poesia, e passo o exagero, que era muito intencional, causou um certo escândalo na opinião pública, a ousadia e presunção do autor, que não passava de um ilustre desconhecido.
Pescador de Olhão, foto de Artur Pastor |
A crítica é que não achou piada nem ao preço nem à presunção do poeta, passando ao lado do intrínseco valor do grosso volume, que ficou ignorado e adormecido no longo sono em que ainda permanece. O desgosto do poeta foi inexorável. Desiludido pela incompreensão do público e da crítica, sentindo-se ridicularizado pelos seus altos padrões de exigência, desistiu de escrever e refugiou-se numa letargia degradante e humilhante para um talento que parecia bafejado para mais altos e largos voos. Mergulhou, pois, numa deprimente agonia, marcada por uma desgastante e aviltante miséria, dedicando-se à boémia e ao álcool que lhe minaram as frágeis carnes de antigo soldado enamorado pelas musas, que cobardemente o abandonaram num dos mais difíceis transes da sua malograda existência.
O seu último livro, intitulado «Astrologia», publicado em 1947, foi uma espécie de canto do cisne, de um dos muitos poetas que o nosso país rejeitou pelo simples facto de não beneficiado da protecção dos críticos literários, submissos e estipendiados por ideologia e partidos, quando não por veladas maçonarias que incensam e glorificam os soezes eleitos do patrocinato político.
João Rico viria a falecer na freguesia do Campo Grande, concelho de Lisboa, a 26 de Dezembro de 1951, com 59 anos de idade.
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