José Carlos Vilhena Mesquita
Ninguém sabe, ao certo, quando e onde se manifestou, publicamente e pela
primeira vez, no Algarve a popular Arte de Talma. Suspeitamos que as artes
cénicas, herdadas da colonização islâmica nunca se extinguiram no
Algarve-Andaluz. E pelo menos desde o séc. XV subsistem inequívocas referências
a certas representações jubilosas de carácter teatral, em honra de visitações
régias ou de comitivas militares, que tinham por destino a conquista e
manutenção das praças do Norte de África.
O assunto da primazia e ancestralidade do teatro no Algarve já mereceu
a minha atenção em trabalho da especialidade (História do Teatro Lethes). Mas o
que agora me traz a terreiro é dar a conhecer a existência em 1827 de uma casa
de Teatro em Faro, com uma companhia residente denominada «Sociedade do Teatro
Harmonia». As provas encontrei-as, há anos, no Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, na secção da Intendência Geral da Polícia, onde me deparei com um ofício
do Sargento-mor das Ordenanças de Faro, o conhecido João Carlos de Mello Lobo
Freire Pantoja, no qual informa que no teatro da cidade de Faro se representou
a 30 de Dezembro de 1827 pela «Sociedade do Teatro Armonia (sic) um Entremez
intitulado O Alardo na Aldêa» no qual
se fazia «o mais manifesto e decidido escarneo da Coorporação de Ordenanças ou
3ª Linha do Exercito».
Convém explicar, que um
Entremez é uma pequena composição dramática, de carácter jocoso e burlesco, mas
de recorte moral, cujos actores encarnam figuras locais em flagrantes da vida
real, que o público assistente conhece da sua vivência quotidiana. Em boa
verdade é aquilo que antigamente se designava por farsa, cujas origens
entroncam no teatro vicentino. O único senão é que o Entremez tem um alcance
localista, desprovido de expressão nacional, sendo por isso considerado em
teatro como uma peça menor. Representava-se nas grandes salas nacionais para entretenimento
do público, antes das grandes peças ou no intervalo das mesmas.
Por outro lado, extrai-se
deste ofício um pormenor muito importante, que é o da existência em 1827 de uma
sala de espectáculos em Faro, com artistas locais, denominada «Sociedade do
Teatro Harmonia». Por conseguinte existia na cidade, talvez desde o princípio
da centúria, um equipamento vocacionado para a cultura, certamente para acolher
representações cénicas e musicais. Em reforço dessa hipótese, impõe-se lembrar
que em 1808, quando o Algarve se libertou do jugo napoleónico, publicou-se no
ano seguinte uma peça de teatro intitulada «Restauração dos Algarves, ou Heroes de Faro e
Olhão, Drama Historico em Tres Actos», da autoria de Luís de Sequeira Oliva, que foi certamente levada à cena
em Faro.
Curioso é também o facto do sargento-mor, Freire Pantoja, acrescentar no
seu ofício, que o texto original do citado Entremez não refere o ano em que foi
publicado, nem a tipografia em que foi impresso, o que o levava a suspeitar
tratar-se de uma publicação clandestina. E se assim fosse tornava-se num caso
de averiguação policial. Mas o que mais lhe desagradava era o facto de “serem
os Theatros estabelecidos para servirem de Escholla onde os Povos aprendão as
máximas bases da politica, da moral, do amor da Patria, do valor do zello e da
fidelidade com que devem servir os Soberanos”.[1]
Este ofício é muito curioso e demonstra a importância e consideração em que
se tinham as ordenanças de Faro. O Intendente Geral da Polícia despachou que,
embora o sargento-mor tivesse razão, não dava quaisquer providências porque a
peça já não estava em representação.
Todavia, encontrei um outro ofício do mesmo sargento-mor, Freire Pantoja,
no qual refere que na noite de 18 de Fevereiro de 1828 voltou à cena o referido
Entremez, solicitando que desta vez fossem tomadas medidas enérgicas. Face à
reincidência o Intendente despachou que se mandassem proibir as representações.[2]
Suponho que o que mais
preocupava o sargento-mor, Freire Pantoja, era o facto desta peça cómico-satírica,
intitulada «Alardo na Aldeia», revelar uma inspiração contra-revolucionária de
apoio às pretensões absolutistas propaladas pelo partido miguelista, que clandestinamente
movia todas as sua influências, internas e externas, para voltar ao poder, como
efectivamente aconteceria em 1828. Também o título do próprio Entremez,
continha uma implícita crítica política e social às tropas de 3ª linha, as
chamadas Ordenanças, pois que «Alardo» significava por um lado a revista anual
das tropas, mas por outro lado, Alarde traduzia uma forma de gabarolice ou de
fanfarrice, própria de quem se vangloria sem razão que o justifique. E esse era
o espírito popular das Ordenanças, constituídas por antigos soldados em idade
avançada, cuja missão consistia na defesa das populações locais, não só em caso
de agressão militar, como ainda perante uma calamidade pública, nomeadamente
cheias, terramotos, incêndios, surtos epidémicos, etc. Mas, na verdade, o seu valor
militar era quase nulo, pois todos sabiam que não estavam preparados, nem
equipados, para em caso de ataque enfrentarem as tropas inimigas.
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