sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Algarve precisa de mais museus que falem do seu histórico passado


José Carlos Vilhena Mesquita

A província do Algarve, expoente máximo do turismo nacional, não pode, infelizmente, orgulhar-se de possuir muitos e variados museus, pese embora o seu passado histórico se encontre vincadamente perpetuado nos inúmeros testemunhos arqueológicos deixados pelos povos oriundos das grandes civilizações mediterrânicas.
Saliente-se que a museologia no Algarve nasce, por via de regra, da iniciativa particular e fundamenta-se na doação de colecções pertencentes a comprovincianos obviamente dotados de marcante espírito científico e altruístico. O primeiro exemplo partiu do arqueólogo Estácio da Veiga que em vão pretendeu criar o Museu Arqueológico do Algarve, com sede em Faro. No entanto, grande parte do espólio recolhido aquando das escavações que efectuara para a Carta Arqueológica do Algarve (1878-1883) foi recuperado por Monsenhor Joaquim Maria Pereira Botto, que, a 4 de Março de 1894, fundou na capital desta província o «Museu Archeologico e Lapidar Infante D. Henrique» designação essa que ainda hoje conserva.
Em Lagos, idêntica iniciativa se ficou a dever ao José Formosinho, que nesta cidade erigiu o que pode considerar-se, sem exagero, o segundo melhor museu em todo o Algarve.
Quanto a Vila Real de Santo António, beneficiou da oferta feita, pelo genial xilogravurista Manuel Cabanas, que foi deputado à Assembleia Constituinte, de uma. valiosa colecção de gravuras esculpidas pelo seu punho. Mais recentemente em Moncarapacho, o rev. P. Isidoro Domingos da Silva, sacerdote da mais elevada formação eclesiástica, e o Dr. José Fernandes Mascarenhas, escritor e investigador de reconhecido mérito, ofereceram à sua paróquia duas notáveis colecções, uma de Arte Sacra e outra de Arqueologia, capazes de fazer inveja a qualquer museu do nosso país.
Oficialmente, no Algarve apenas estas localidades possuem um museu de que possam orgulhar-se, com especial destaque para Faro onde podem ainda ser visitados os museus Etnográfico, Marítimo e Antonino.

Museu de Moncarapacho, a concretização de um sonho já antigo

Desta vez, porém, falaremos apenas do Museu Paroquial de Moncarapacho, inaugurado há pouco mais de um ano.
Fundada em 19 de Junho de 1471, pelo então bispo de Silves, D. João de Melo, a freguesia de Moncarapacho possui vestígios de ocupação muito remota, pois nela foram postos a descoberto vários testemunhos pré-históricos, como é o caso de cilindros totémicos de configuração antropomórfica; ídolos neo-eneolíticos e inúmeros artefactos pertencentes a povos metalúrgicos do período neolítico. Posteriormente, ali deixaram assinalada a sua passagem Romanos, Visigodos e Árabes, todos eles representados nas galerias do museu.
Muito embora a ideia da fundação deste museu fosse uma velha aspiração da freguesia, o certo é que foi necessário aguardar pelas comemorações do seu quinto centenário para, definitiva e oficialmente, se encarar com optimismo a concretização deste justo e merecido sonho. Como atrás referi, a iniciativa partiu de dois beneméritos, o padre Isidoro Domingos da Silva e o Dr. José Fernandes Mascarenhas, o primeiro detentor da riquíssima colecção de arte sacra (a que atrás aludi), e o segundo de um não menos notável espólio arqueológico. Refira-se que ambas as colecções foram avaliadas em milhares de contos aquando da inauguração no ano passado, no dia 12 de Julho, do museu que pode assim considerar-se um dos mais importantes museus paroquiais do País.
Por estranho que pareça, desde o lançamento da primeira pedra, que marcou o início da construção do edifício, em Setembro de 1971, até à sua inauguração em Julho de 1981., foram dez anos de canseiras e impedimentos diversos que quase fizeram perigar a sua. Concretização, não fosse a vontade indómita dos seus beneméritos fundadores.
O edifício, modesto de proporções mas sóbrio de linhas, encontra-se adstrito à secular Capela de Santo Cristo onde, segundo reza. a história, muitos prodígios e milagres se registaram ao longo dos últimos cinco séculos.

Como as pratas algarvias «viajaram» até Baiona

A ancestral ermida, cuja construção remonta ao ano de 1632, encontra-se esplendorosamente revestida de azulejos policromos datados de 1663, provenientes de Lisboa, possivelmente de uma das 12 mais importantes olarias que na cidade então existiam.
Por altura das invasões francesas, os soldados de Junot, como represália pela derrota sofrida junto à ponte de Quelfes, assaltaram a indefesa freguesia de Moncarapacho não escapando ao saque os valiosos objectos e alfaias de culto existentes na vetusta Capela de Santo Cristo. A maior parte do espólio, criminosamente obtido, pode apreciar-se, ainda hoje, em alguns museus da França, nomeadamente no de Baiona, que não esconde inclusivamente a proveniência moncarapachense das suas peças de prata.
Enfim... coisas da História que, por tristes e ignóbeis, nos escusamos de recordar. Seja como for, na sua idoneidade e no barroquismo da sua talha, a capela de Santo Cristo não poderia ter melhor aproveitamento do que aquele que o povo de Moncarapacho lhe acaba de dar, ao transformá-la em Museu.
Mas penetremos no edifício. este núcleo museológico divide-se em dois grandes sectores: o da Arqueologia e o da Arte Sacra. O primeiro encontra-se instalado no pavimento inferior do edifício e compõe-se sobretudo de artefactos paleolíticos, de cerâmica calcolítica e de várias peças epigráficas, heráldicas e numismáticas pertencentes às épocas da ocupação romana e árabe. Assumem particular destaque um enorme vaso árabe destinado a ablações religiosas, várias lápides epigráficas islâmicas que o Dr. Garcia Domingues tem estado a decifrar, dezenas de ânforas romanas e tubas árabes, alguns; cipos sepulcrais e marcos miliários; com especial destaque para aquele que o Dr. José Fernandes Mascarenhas identificou como sendo o que assinalava a estrada de Ossónoba a Balsa. Além de tudo isto, podem ainda observa-se inúmeras peças de inegável valor museológico, como uma colecção de lucernas, algumas cornijas arquitectónicas, capitéis coríntios de belo talhe, um túmulo romano em perfeito estado de conservação, lápides; taças, pratos e múltiplas peças de cerâmica provenientes da estação arqueológica romana de Alfanxina, situada nos arredores da freguesia de Moncarapacho.

Valioso presépio do séc. XVIII é peça de interesse nacional

No andar superior está reunida a colecção de arte doada pelo rev.º P.e Isidoro Domingos da Silva, merecendo especial referência um valioso presépio napolitano considerado de interesse nacional, datado do século XVIII, presumivelmente anterior à escola de Machado de Castro, e que pertenceu ao magnata da indústria conserveira, Júdice Fialho. Refira-se que só existe um presépio semelhante no Museu de São Paulo, no Brasil, coevo deste e possivelmente importado da mesma origem por algum português emigrado em terras de Vera Cruz.
O prior Isidoro da Silva adquiriu este presépio a uma freira que se encontrava no orfanato de Santa Isabel, em Faro, e que, atendendo ao confrangedor estado de degradação em que a peça se encontrava, preferiu vendê-la a quem se propunha restaurá-la e conservá-la num museu. Posteriormente, seguiu para o Museu de Arte Antiga, onde se procedeu ao seu gracioso restauro. Regressado ao Museu de Moncarapacho, foi logo considerado como peça de interesse público, já que, na Europa, não há notícia de existir nenhum outro que se lhe assemelhe ou equipare em grandeza e majestosidade artística.
Mas não é só este famoso presépio napolitano que merece a nossa visita atenta e demorada ao Museu de Moncarapacho. Outras peças ali existem de incomensurável valor artístico, nomeadamente um valioso calvário lavrado em marfim e pau-santo do século XVI em estilo indo-português; dezenas de imagens sacras, algumas delas com séculos de existência, recolhidas nas imediações do concelho de Olhão; e ainda alfaias, panejamentos e objectos de culto religioso; além de ricas colecções de cálices, custódias e moedas de valor incalculável; peças de mobiliário, com especial destaque para uma bonita arca setecentista do reinado de D. João V; quadros de interesse regional como os assinados por Bernardo Marques e Henrique Pousão; fotocópias de documentos que atestam o heroísmo do povo olhanense frente às tropas invasoras de Junot; animais embalsamados e toda uma série de pequenas peças de interesse não só artístico como etnográfico.
Em suma, um museu repleto de muita coisa valiosa e rara, à mistura com peças, talvez de pouca importância museológica, mas de inegável valor decorativo. Não obstante isso, gostamos francamente da secção de Arqueologia, que nos pareceu bem ordenada se atendermos à exiguidade do espaço a ela destinado. Além disso, não podemos deixar de salientar a imponência que esse deslumbrante presépio napolitano assume no meio do vasto espólio artístico, aqui e ali marchetado por imagens sacras, algumas de sabor popular a atestar a sua ancestralidade.
Para terminar, cumpre-nos assinalar a carência de um funcionário, a tempo inteiro, que sirva de cicerone aos eventuais visitantes, e, especialmente, de um catálogo ou guia interno do Museu, no qual se discrimine a função e importância de cada uma das peças ali expostas. Isto para não falar já da inexistência dos tradicionais postais e diapositivos reproduzindo as peças de maior valor e que, vendendo-se normalmente à entrada dos museus, não só contribuem para a divulgação da cultura e do património local, como contribuem também para a amortização das graves dificuldades financeiras que se vivem em instituições deste género.
Apenas a título de curiosidade, direi ainda que a entrada é grátis.

(artigo publicado no «Diário de Notícias» de 7-09-1982)

5 comentários:

  1. Este blog realmente veio mesmo a calhar.

    Após algum tempo à procura de material publicado sobre o Museu de Moncarapacho estes artigos vieram realmente dar-me muito jeito para completar o meu trabalho de Introdrodução à Museologia.

    Parabéns pela iniciativa, um bom blog.

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  2. Olá Rui Ramos
    Muitíssimo obrigado pelas suas palavras.
    Esses artigos já são antigos, com quase trinta anos. O museu merece uma visita atenta e um estudo série sobre o seu conteúdo museológico, sendo uma das peças mais estranhas o Presépio Napolitano, sobre o qual escrevi um artigo e uma tese que apresentei em 1984? ao Congresso do Algarve.
    Volte sempre que puder aos meus blogues.
    Receba um abraço do Vilhena Mesquita

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  3. Olá Sr.Vilhena Mesquita
    De acordo com o que li dos artigos aqui exposto, o museu não terá mudado muito.
    O presépio é certamente o conjunto mais importante do museu e o melhor apresentado, estando num local de destaque.
    Uma pergunta! Onde poderei ler esse artigo e tese que escreveu? Gostaria de referi-los no meu trabalho sobre o museu, se não houver objecção, claro!

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  4. Depois de procurar várias informações na net sobre este núcleo museológico de moncarapacho, finalmente encontro algo bom em que posso basear para o meu trabalho de Museologia!!!!

    Blog muito interessante!! se há algo que as pessoas precisam é o de conhecer a história, a cultura não só da sua própria cidade, mas também do seu País!

    Uma boa Continuação de um bom Trabalho!
    Evelise Tavares

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  5. Olá Evelise
    Muitíssimo obrigado pelas suas palavras.
    volte sempre ao convivio deste Blogue. Acerca do Presépio Napolitano de Moncarapacho escrevi também um texto que não se encontra nos meus blogues.
    Um abraço do Vilhena Mesquita

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