segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O espírito tertuliano – uma miragem do passado


José Carlos Vilhena Mesquita

Nos primórdios do século passado o país despontava para a curiosidade e o interesse das novas ideias libertárias, que fervilhavam um pouco por toda a Europa. Nas grandes cidades europeias, como Paris, Londres, Roma e Madrid, reuniam-se nos cafés pequenos grupos de artistas e homens de letras, para discutirem ideias e ideologias, novas concepções de ética e de estética, sobretudo novas formas de organização da vida social e económica, tendentes à construção de um mundo mais justo e mais fraterno, erigido sob a luz da liberdade.
Nos antigos Salões e nas Academias reais do setecentismo europeu, incorporaram-se as elites iluministas – numa mesclagem intelectualizada da nobreza com a alta burguesia, tendente ao debate das grandes reformas que inspiraram a formação do estado moderno. Porém, essas instituições culturais foram paulatinamente cedendo lugar aos espaços públicos de reunião mais acessível e popular, de que é principal exemplo o Salão-de-chã, de inspiração burguesa e frequência feminina, e o Café, de origens pequeno-burguesas, onde se reuniam, em democrática convivência, todos os estratos sociais, com especial incidência no empresariado mercantil e industrial.
Na verdade, é ao convívio intelectual e à efervescência das ideias que o Café deve as suas origens, cabendo à cidade universitária de Oxford a glória de ter erigido, em 1650, o primeiro de que existe confirmada memória. Quatro anos depois os mercadores de Marselha fundaram um Café (o segundo com veracidade histórica), para se reunirem e acertarem os seus negócios nos portos mediterrânicos. Seria, contudo, em Paris que, em 1689, abriria o Café Procope, o mais célebre do mundo por nele se reunirem os artistas, os políticos e os intelectuais mais famosos na época das Luzes.
O Café, com o decorrer dos anos, foi perdendo as suas particularidades selectivas e burguesas, mercê da tolerância de novas frequências, suscitada pela exponencial abertura de novos espaços nas cidades portuárias e no interior industrializado. Em boa verdade, o Café evoluiu com o tempo até se tornar numa instituição de equidade social, onde o convívio das classes dominantes se caldeou com o funcionalismo terciário e o operariado industrial. De centro de reunião empresarial, nomeadamente de Bolsa popular do comércio regional, o Café tornar-se-ia num espaço tertuliano das novas ideias políticas e num cenáculo artístico-literário de jovens talentos. Mais do que qualquer outra instituição social, o Café tornar-se-ia num dos símbolos do Liberalismo e da afirmação política da pequena burguesia.
O século XIX, a que muitos historiadores chamaram o século da Burguesia, parece-me que foi também o século dos Cafés, porque neles se aproximaram, em salutar convivência e em acesa discussão de ideias, os representantes dos diversos patamares em que se repartia a sociedade oitocentista. Os cafés, onde todos se sentiam iguais por se sentarem em mesas iguais, tornaram-se locais de reunião periódica para se tomar um simples e popular café, um requintado e burguês cacau, um conhaque ou um brandy, sorver um aromático havano ou uma onça de perfumado tabaco holandês em golfadas de cachimbo canadiano. Nos cafés divulgaram-se as ideologias redentoras do socialismo, do anarquismo e do republicanismo, do associativismo proletário e do sindicalismo, urdiram-se reivindicações operárias, marcaram-se greves e manifestações, congeminaram-se revoluções, escreveram-se romance, versos, canções, e até os grandes manifestos políticos, fundaram-se redacções de jornais, difundiu-se o maçonismo e proclamou-se a utopia dum mundo novo, sem domínio nem pecado.
O café tornou-se no símbolo de uma época, que transitou do liberalismo económico para o demo-liberalismo político. Atravessou os últimos séculos como um areópago da liberdade de reunião e de expressão. Neles se discutiam os comportamentos e as ideias mais avançadas, misturavam-se os sexos, expunham-se quadros de artistas excluídos e experimentavam-se transgressões de toda a ordem. Mas também neles o operário se instruía e divertia, quer lendo os jornais gratuitamente, quer jogando ao bilhar, às cartas, às damas, ao gamão e ao xadrez. Havia um reservado para os jogos de azar, uma espécie de casino dos pobres, e, nalguns casos, a horas mortas, faziam-se sessões de espiritismo. Alguns transformaram-se em cabarés, com espectáculos de música e dança, alternando com actividades menos recomendáveis, descortinando-se nalguns a existência de lupanares clandestinos.
Não obstante, os cafés conservaram-se fiéis às suas originais tradições, como respeitáveis locais de reunião da classe-média, verdadeiros alfobres das ideias libertárias e núcleos de livre discussão das novas concepções estéticas da Arte da Literatura. Alguns, raros, ainda subsistem no nosso país, como o Magestic, a Brasileira e o Nicola. Mas a esmagadora maioria dos Cafés históricos, berços da liberdade e da democracia, desapareceram já, na voragem do capitalismo e na rasoira boçal do imperante neo-liberalismo, a que a globalização deu uma expressão de impiedade cultural e de predominante ignorância.
Nos últimos decénios do século passado surgiram novos cafés, mais pequenos e mais simples, consentâneos com a sociedade em que vivemos, apressada, frenética e instável, por isso mesmo mais individualista e menos convivente. O Café Hélice, na Avenida 5 de Outubro, é um exemplo dos cafés da nova vaga. Pela sua despretensiosa aparência estética e sóbrio conforto, depressa se tornou num ponto de encontro a cujas mesas se costumam acolher cidadãos da classe média, que moram ou trabalham nas imediações, especialmente professores e estudantes, funcionários públicos, bancários, engenheiros, advogados, empresários, enfim, toda uma panóplia social ilustrativa dos tempos hodiernos.
Entre os seus frequentadores diários distinguia-se o eng.º Tito Olívio, morador num prédio fronteiro, que não raras vezes ali se reunia, no final do dia, com professores e outros cidadãos, interessados em discutir e reflectir sobre os problemas da cultura, da arte, do património histórico, e sobretudo da literatura, sendo que a alguns era a poesia que os atraía ao convívio. Tudo terá começado em Maio de 1997, quando Tito Olívio pensou, juntamente com Fonseca Domingos e Diamantino Barriga, que eram os mais assíduos, em reunirem-se semanalmente com outros poetas para analisarem o que cada um produzia, fazendo críticas construtivas, ajudando a melhorar as deficiências de estrutura formal ou de construção semântica, que não raras vezes os impediam de concluir com ilustração e beleza os seus poemas. Depressa o grupo cresceu, não só em quantidade como também em qualidade intelectual e em diversidade artística. Aos três poetas fundadores juntaram-se prosadores, jornalistas, ensaístas, músicos, pintores e até cantores, numa espécie de sociedade de autores da cultura farense. Enquanto uns iam ficando, marcando presença assídua e semanal, outros só esporadicamente voltavam para obter um conselho, uma crítica, uma ajuda pontual para remover dúvidas estéticas ou deficiências formais na construção das suas composições líricas.
Em torno de uma “bica”, de um chá ou de um galão com torradas, surgiu um salutar convívio entre homens e mulheres cultores de Orfeu, de diferentes idades e níveis de instrução, desenvolvendo pretextos para a reflexão intelectual sobre a dimensão estética da vida. Formou-se assim uma espécie de cenáculo, no qual pontifica ainda hoje a figura de Tito Olívio, não pelo seu natural protagonismo intelectual, mas muito especialmente pela sua bondade, pela sua generosidade e, sobretudo, pela sua disponibilidade para incentivar os poetas e para implementar iniciativas que promovem e divulgam as obras daqueles que ainda não obtiveram o justo reconhecimento do público. O grupo, cada vez mais numeroso, carecia de algo que o identificasse, que lhe desse nome, porque nascido à luz da liberdade rejeitava a formulação de estatutos ou de vínculos que o prendesse à sociedade civil e à organização política. A única regra a que aqueles tertulianos se comprometeram obedecer é a da tolerância, e do respeito mútuo no direito à diferença, tanto nas divergências políticas como nos credos religiosos.
A vida é um círculo em perpétuo movimento, cuja aceleração depende da vontade moral e da criatividade intelectual. Daí a ideia de adoptar a Hélice, que decora e dá o nome ao próprio café, como símbolo e designação mais apropriada para aquele grupo de poetas, de prosadores e artistas. Quando em Janeiro de 1998 nasceu a AJEA – Associação de Jornalistas e Escritores Algarvios, logo se lhe juntaram os fundadores da Tertúlia Hélice, cujo grupo passou a constituir-se numa espécie de núcleo dinamizador das actividades daquela agremiação no seio da sociedade farense.
Lembro aqui, a título de curiosidade, alguns dos autores com quem convivi a partir de 1998, quando tive o privilégio de me juntar à Tertúlia Hélice. Desde logo os que já desapareceram, todos talentosos poetas, como o genial Fonseca Domingos, o irreverente Vivaldo Beldade, a meiga e carinhosa Quina Faleiro e o apaixonado Hélder Azevedo - espírito notável de artista, poeta e prosador, cuja vida dava um romance. Mas outros que os acompanharam ou que lhes seguiram as pisadas, permanecem estoicamente na Tertúlia Hélice, tercendo armas pelo desenvolvimento da cultura algarvia. Destaco o Manuel Cardoso, poeta, músico e cronista, na sua escrita barroca, ilustrada, cuidada e perfeccionista, revela-se a nobreza do seu cavalheirismo e do seu raro polimento social. O Diamantino Barriga, poeta e quadrista de inspiração naturalista, generoso, fraterno e de bondosíssimo coração, uma alma de eleição já hoje difícil de encontrar na nossa sociedade. Igualmente bondosa é a Romana Rosa, poetisa de invulgar criatividade, que escreveu em prosa e verso belos livros para as crianças, procurando sempre incutir no espírito dos jovens a mesma generosa fraternidade com que ela sempre pautou a sua vida. A poetisa Manuela Odete, sempre atenta às questões ambientais e à solidariedade social, temas em que se tem inspirado para a composição dos seus belos sonetos. O mesmo acontece com a Célia Roque, mulher sofredora, castigada pelos desgostos da vida, que procurou na poesia o acolhedor refúgio para as suas mágoas. A Lília Bárbara cuja obra poética tem escapado aos elogios da crítica, mas que é sem favor um dos mais seguros valores da literatura algarvia. O mesmo acontece com o Ferradeira de Brito, poeta, dramaturgo, letrista e compositor, de quem há pouco apresentei 20 livros de uma assentada, atingindo certamente um recorde digno de figurar nos anais do Guiness.
Entre as poetisas da Tertúlia, merece destaque especial a Glória Duarte Marreiros, detentora de vasta obra poética, muito elogiada pela crítica e justamente asseverada pelos galardões literários que tem arrebatado nos últimos anos. Os sonetos da Glória são verdadeiras sinfonias de expressividade poética, em que a paixão e a mágoa se juntam num sincero amplexo de sentimentos e emoções. Entre as frequentadoras mais assíduas, distingue-se não só pelos seus dotes de inteligência e de fecunda originalidade literária, como ainda pelo seu maternal carinho, a Ilda Costa. Uma verdadeira dama, há muito aposentada das suas funções de criativa da alta moda parisiense, dedicando-se hoje à pintura e, sobretudo, à poesia, com invulgar e engenhoso talento, cabendo-me a honra de ter prefaciado o seu livro de estreia. Outra das figuras que inicialmente marcava posição distinta no seio da tertúlia era a Manuela Saraiva, senhora muito educada, de belos traços femininos, com laivos de uma nobreza genuína, que veio para Faro quando a transportadora aérea nacional aqui abriu os seus escritórios. Tinha sempre a palavra certa para a crítica mais sincera e exigente, por vezes com uma mordacidade desarmante. Por fim, a Maria Margarida, a nossa eloquente diseuse, senhora do mais fino quilate social, professora aposentada, possuidora duma prodigiosa capacidade de memorização, o que lhe permite decorar e declamar um poema em poucos minutos. A sua elegante presença física, associada à mais moderna indumentária parisiense, faz dela proeminente figura nos recitais de poesia promovidos pela AJEA, onde consegue arrebatar do pública as mais estrondosas ovações.
Entre os mais recentes frequentadores da Tertúlia Hélice merecem especial destaque o Francisco Alexandre, o François Blanc e o Telmoro. O primeiro é professor e poeta, muito inteligente, bastante culto e perseverante estudioso das civilizações clássicas, autêntico exegeta das profecias e do misticismo bíblico, que discute e analisa com a mais persuasiva eloquência. O segundo é um médico francês, muito culto e generoso, verdadeiro andarilho do mundo latino-americano, dedicando-se à investigação criterioso da medicina andina. Apaixonado pela cultura lusíada, que estudou com profundidade e rigor científico, aqui veio aportar, escolhendo o Algarve e a cidade de Tavira como reduto natural para a sua inspiração poética. Possui vasta obra literária, consagrada internacionalmente pela crítica da especialidade. Por fim, um destaque muito pafrticular para o poeta Telmoro, espírito dos mais criativos e talentosos que conheço no Algarve, um verdadeiro humanista à imagem do seu Mestre e mentor literário, Tito Olívio, que o lançou no mundo das letras algarvias. É dos raros poetas que compõe em várias línguas, espanhol, italiano, francês e inglês, um autêntico poliglota, que escreve e canta as suas próprias canções. Alguns dos seus poemas foram musicados, cantados e editados em dois CDs por Alberto Carlos, um artista que também frequentou a Terlúlia Hélice até atingir a merecida consagração, sendo hoje considerado como um dos mais distintos e requisitados cantores das casas de fados sedeadas no Algarve.
Não querendo esquecer-me de ninguém, aqui presto também a minha homenagem à Rosinda Vargues e ao Luciano, seu marido, ela cantora, ele compositor e instrumentista, que têm participado na apresentação de livros editados pela AJEA, cantado belíssimas canções com poemas de Tito Olívio, de Telmoro, de Ferradeira e Brito e até de Vitória Rodama, que é a mais recente e promissora poetisa da Tertúlia.
Para terminar, impõe-se acrescentar que considero esta Antologia como uma breve amostra do talento poético e da qualidade literária dos seus intervenientes. Convém frisar, entre muitos outros aspectos reveladores da sua genuína criatividade poética, que quase todos eles têm obra publicada em letra de forma, sendo certo que alguns possuem vários prémios que atestam o reconhecimento público das suas obras. No seio deste diversificado grupo de poetas, prosadores e artistas, justifica-se que, em nome de todos, aqui deixe uma palavra de apreço e de muita gratidão para com o poeta Tito Olívio, alma-mater da Tertúlia Hélice e da maioria das actividades culturais realizadas pela AJEA, da qual é, sem favor nem exagero, a principal figura. A sua natural generosidade tem-no levado a erguer aos ombros muitos poetas que, pela sua gigantesca sombra, nunca veriam brilhar a luz do sol. A publicação desta Antologia é mais uma prova da sua capacidade de iniciativa e da sua dedicação fraternal a todos quantos frequentam a Tertúlia Hélice.
Como os últimos são os primeiros, termino com uma menção de gratidão para com a Vitória Rodama, a cuja abnegação e espírito de iniciativa se deve o patrocínio financeiro desta Antologia.

Prefácio ao livro Antologia Poética da Tertúlia Hélice

3 comentários:

  1. Às 22 e 30 li a crónica e

    Gostava de alinhavar umas notas,

    mas

    começar por onde?

    Pelos cafés (instalações) onde se estudava no meu tempo e onde se estava a tarde inteira por 15 tostões e podíamos ir embora e deixar o dinheiro em cima da mesa?

    Sim, talvez.Mas uma citação apenas.

    Café Central em Almada, anos 60. Estudantes, muitos, Figura central da tertúlia, o Dr. Roma da Fonseca, 90 anos e uma memória fresquíssima.

    Esta história contou ele: Quando, no Terreiro do Paço, quiseram colocar o cavalo de D. José em cima do pedestal, as cordas não davam mais e faltavam dois centímetros para subir.

    Um marinheiro veio e disse: molhem as cordas. E a coisa fez-se.

    Os cafés, esses locais sagrados da cultura.

    Acerca deles, muita coisa a dizer.

    Este artigo do Prof. é um tratado, que podia ter este título: A CULTURA AMA-SE; E UMA CIDADE TAMBÉM.

    Dos autores citados apenas conheci o António Carlos,a Rosinda e o Luciano.

    Tertúlia de poetas, tão lindo que isso é...

    Aí vai um pouco de mim.

    POETA

    É o que fala das coisas belas
    Dando-lhe a tonalidade adequada
    E desse trabalho extrai delas
    Beleza onde antes não estava nada

    Recordar aqui por ser justo o papel do café Martinho, em Lisboa, nos anos da Primeira Republica.

    Ab.

    João Brito Sousa

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  2. Prezado Dr. Brito Sousa
    Mais uma vez o meu muitíssimo obrigado pelas elogiosas palavras que não se cansa de me dedicar. Bem haja, porque o nosso ego também precisa desses afagos.
    O espírito tertuliano tem-se perdido, o que é lamentável. A Tertúlia Hélice lá se vai reunindo às segundas e quartas-feiras das 16,30 às 18 horas, no Café Pastelaria Hélice, situado no último lanço, à esquerda, de quem sobe a Av. 5 de Outubro em Faro. Fica precisamente no local onde antes existia a casa do Dr. Balté, que foi também um reputado médico, e poeta de apreciada inspiração, sendo que a filha, a Prof.ª Doutora Teresa Balté, adquiriu mais prestígio do que o pai, nos areópagos de Orfeu.
    Quanto à sua quadra posso afiançar-lhe está bem pensada e que evidencia uma clareza filosófica muito acima do comum.
    Obrigado e volte sempre.
    Um abraço do Vilhena Mesquita

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  3. Boa tarde
    Curiosamente foi o Doutro Balté que me trouxe ao mundo no ano santo de 1950, numa altura em que havia na cidade um certo romantismo, cidade fechada sobre si mesma, marialva num certo sentido,quase medieval, onde a pobreza grassava, enquanto alguns andavam a cavalo na rua de Santo António.

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