terça-feira, 14 de maio de 2024

A iliteracia intelectual – um paradoxo da modernidade

Neste último Natal de 2023 decidi fazer um teste sobre a nossa iliteracia intelectual, com base na retoma de uma tradição muito antiga na cultura ocidental. O teste foi muito simples e não teve outro propósito senão o de avaliar a capacidade de domínio da escrita manual, do respeito pelas tradições e das relações sociais afetivas. O teste era apenas qualitativo, e consistiu no envio de postais de Natal, através do correio, aos amigos que considero intelectualmente evoluídos, emotivos e sentimentais. O que deles aguardava era uma retribuição semelhante, e pela mesma via, tal como fazíamos no passado, ainda recente. Essa liberdade de pensar, de criar e de agilizar a escrita, perdeu-se nos anos noventa com a imperialização da informática e da telecomunicação. A máquina subjugou-nos ao ponto de já nem sabermos exteriorizar a liberdade através dos sentimentos, porque deixamos, sob a falsa ideia do progresso, que a Inteligência Artificial nos substituísse, não só no simples ato de produzir, como também no de pensar e sentir.
Grav. 1 - Primeiro postal ilustrado, Londres, 1843

Quem me está a ler já percebeu que em epígrafe existe um contrassenso: a iliteracia é uma defetividade dos potenciais analfabetos. Devo, por isso, esclarecer que, pessoalmente, entendo que quem sabe ler e escrever, mas é insensível à leitura e à escrita, não deixa de ser analfabeto. No velho princípio aforístico de que se perde o que se não usa.
Como os postais natalícios são uma tradição muito comum na nossa cultura, fácil se torna comprovar a desativação da mensagem manuscrita, o que dentro da arqueologia dos sentidos representa a perda da mão, como objeto da escrita e da transmissão dos afetos, da sensibilidade, da amizade e sobretudo do Saber.
Significa isto que a epistolografia – uma área que foi no passado uma fonte da história biográfica – está morta, na generalidade dos casos, apenas subsistindo ao escasso nível das mentes mais idosas, e, talvez por isso, mais infoexcluídas. A iliteracia digital é atualmente considerada como uma espécie de analfabetismo moderno. Ou seja, inverteu-se o ónus da culpa. Ignorante e desatualizado é aquele que não trabalha com os iPhones de última geração ou o que não tira o melhor rendimento dos tablets e Notebooks (computadores portáteis).
Grav.2 Postal de Natal, Londres 1848, Willi am Maw Egly
O teste do postal de Natal

O exercício prático do meu teste de aferição sobre a atual iliteracia intelectual consistiu no envio de 33 postais ilustrados, à moda antiga, isto é, à inglesa, uma face impressa e outra escrita. A razão deste teste prende-se com a revolução digital que facilitou a comunicação encurtou distâncias e originou a globalização, não só da economia e dos mercados financeiros, como também da educação e da cultura, notando-se, todavia, um abaixamento intelectual ao nível do primeiro mundo. As novas tecnologias incrementaram o alcance e desenvolvimento da ciência, mas diminuíram a concentração, o esforço e o sacrifício da pesquisa por parte dos mais jovens, sobretudo dos estudantes. Nos adultos notou-se a perda da leitura e do uso da escrita manual. A sociedade, na sua hierarquização por grupos socioprofissionais, nivelou-se por baixo, perdendo qualidade e exigência devido à substituição do trabalho, ainda que especializado, pela máquina e pela Inteligência Artificial. E isso vê-se claramente na perda das tradições, nos usos e costumes etnográficos e na antropologia cultural, que vem perdendo os seus padrões naturais em prol de uma homogeneização assintomática da civilização ocidental.
Só as elites parecem reservar para si as tradições do passado, no sentido de salvaguardarem as suas raízes e os seus valores morais. Assistimos hoje a uma inversão na cultura ocidental, cujas tradições têm sido paulatinamente caldeadas noutras oriundas de diferentes quadrantes do mundo.
Grav. 3 - Laura Costa, «Chegada dos Pastores»

Origem histórica do postal de Natal

Já agora convém esclarecer o postal ilustrado de Natal, um dos mais apreciados padrões da cultura cristã ocidental, teve a sua origem histórica em Inglaterra, no ano de 1843, por causa de um simples gesto de cortesia que se transformou numa ideia genial, replicada por sucessivas gerações no mundo inteiro. O postal natalício é, aliás, uma das poucas tradições transversais à humanidade.
Com efeito, Sir Henry Cole, então director do South Kensington Museum, hoje designado como Victoria and Albert Museum, em Londres, costumava escrever na quadra natalícia dezenas de cartas aos familiares e amigos a desejar-lhes Boas Festas. Todavia, em dezembro de 1843, assoberbado de trabalho não se apercebeu que estava encima do Natal. Concluiu que não dispunha de tempo para cumprir as suas acostumadas obrigações de cortesia. Mas, num rebate de genialidade, ocorreu-lhe uma solução, rápida e eficaz. Pediu ao seu amigo, o pintor John Callcott Horsley, que desenhasse e pintasse num pequeno pedaço de cartolina, no tamanho 9x13cm, a sua família reunida à mesa da consoada, a brindar ao familiar ou amigo ausente naquele Natal. Aprovado o desenho foi a correr a uma tipografia onde encomendou dezenas de cópias a cores, com a simples mensagem «Merry Christmas and a Happy New Year to you» [Feliz Natal e um Próspero Ano Novo], deixando o verso em branco para escrever o nome e endereço do destinatário. Impõe-se, porém, salientar que ladeando a feliz cena do brinde, ao centro, com um copo de vinho (talvez do Porto), o artista incluiu duas mensagens de caridade: vestir os andrajosos e alimentar os pobres. [ver gravura 1]
Como na tipografia sobraram alguns postais decidiram colocá-los na montra à venda pelo módico preço de um xelim cada. Venderam-se mais de mil, e só não se imprimiram mais porque já estavam quase encima do dia de Natal. O certo é que dessa edição prínceps apenas se conserva pouco mais do que uma dezena de exemplares, devido ao zelo dos seus destinatários. Por ser uma peça rara e histórica, quando surgem à venda nos leilões de artes e antiguidades costumam ser arrematados por quantias exorbitantes, acima de vinte mil libras.
O gesto de Sir Henry Cole, foi depois imitado por milhares de pessoas, tornando-se numa nova tradição natalícia. A arte da cartofilia natalícia evoluiu com o tempo, em todo o mundo e em diferentes credos religiosos, sendo desde há 180 anos uma das principais tradições culturais do mundo ocidental.
Grav.4 Postal editado pelos CTT, 1943
Adoração do Menino Jesus

A conclusão do teste

O objetivo do meu teste, estribado na simbologia do postal natalício, consistiu na comprovação de que a revolução digital emburreceu as elites e a civilização ocidental, considerada até aqui como a cultura do primeiro mundo. A leitura homogeneizou-se na “googletização” da cultura, e a escrita passou a digitar-se em código SMS, degenerando tudo isto naquilo a que os brasileiros chamam a “celularização” das relações humanas. O conceito de “googletização” significa a necessidade pelo imediato, ou a solução instantânea, mas teve como efeito prático a perda da referência e da vontade da pesquisa, o esforço da descoberta e da construção crítica. O pior de tudo isso foi a habituação à rotina, que quando interrompida ou dificultada degenera na impaciência, e na banalização da violência. Mas, esse fenómeno da violência, posso sociologicamente atribuí-lo à má distribuição da riqueza, o que nos países potencialmente ricos, embora concretamente pobres, como é o caso da Índia, do México ou do Brasil, tornou-se num verdadeiro cancro sociopolítico.
Grav. 5 Postal de Natal por Maria Keil
Não, positivamente não. Para mim o que está a verificar-se é uma perda substancial do conhecimento crítico e da vontade de questionar o Saber. Como resultado prático deste vertiginoso progresso, assistimos à subordinação das gerações jovens, principais vítimas deste hostil processo de estupidificação das massas, através da lei do menor esforço, isto é, quanto menos leres menos sabes escrever, e quanto menos escreveres menos sabes pensar. O resultado final será a sujeição generalizada à opinião veiculada e à ordem transmitida, em oposição à qual carecemos cada vez mais de capacidades mentais, de conhecimento e de reflexão crítica para podermos discordar, debater, contrariar e contestar. A banalização da violência, por estranho que pareça, deu lugar ao conformismo e à pacificação da opinião crítica, inviabilizando ou obstaculizando a contestação racional. Daí vermos que é hoje muito fácil os jovens passarem do imobilismo conformista à radicalização do exclusivismo, do extremismo à exterminação, por não possuírem meios racionalistas de aferição das circunstâncias políticas em que se acham envolvidos.
No ano passado ainda recebi alguns cartões em troca dos que enviei. Mas, este ano, tenho a triste consciência de ter recebido apenas dois cartões de retribuição. Ao invés respondem-me por email ou pelo Messenger. Os mais novos nem respondem, porque não usam sequer o Facebook, mas antes o Instagram e outras redes sociais, que eu não uso para não banalizar o raciocínio mental nem a minha consciência crítica.
A iliteracia que tem vindo a tomar conta da Europa está à vista em tudo, até nos simples postais de Boas Festas.

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