sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Sagres e Tavira felicitam D. Miguel pelo regresso ao reino – mas não coincidem nas manifestações de júbilo

Quando em 1828 o infante D. Miguel regressou do exílio em Londres a Portugal, o país, principalmente Lisboa, preparou-se para o receber numa verdadeira onda de histeria nacional, montada pela máquina da propaganda realista, aliás muito bem orquestrada, nomeadamente nas ruas, onde o povoléu cantava a célebre modinha «O rei Chegou», ao mesmo tempo que brandia o cacete nos costados dos liberais. Quem desse uma resposta errada ao fatídico interrogatório do quem manda, quem governa, quem reina, era certo e sabido que levava uma monumental zurzidela de cacete, da qual a muito custo sairia vivo. 
 Estampa alegórica ao feliz regresso
 do Augustíssimo Senhor D. Miguel
 a estes Reinos, desenho de Mau-
rício José do Carmo Sendim,
Lisboa, 1790-1870
Para dar uma imagem de júbilo nacional, pelo regresso do bem-amado restaurador do absolutismo, as autoridades recém-nomeadas requereram aos três estados através das suas representações locais, nomeadamente das instituições militares, religiosas e, sobretudo, das autarquias municipais, dessem provas, por escrito, do seu regozijo pelo feliz retorno do anjo redentor da pátria, o infante D. Miguel. 
Nasceram assim os «Autos de Felicitação, de Aclamação e Juramentos», que numa onda avassaladora alastrou-se a todo o país numa demonstração oficial subjugação ao regime absolutista. Na generalidade dos casos constata-se que esses “autos” eram exarados pelas autarquias com palavras e sentimentos de sincera devoção ao regime. Todavia, também conheço outros casos em que os autos revelam uma certa frieza, um discreto júbilo e, diria até, um certo distanciamento ao restabelecimento do regime e ao retorno do infante ao reino. Em Tavira a forma parcimoniosa dos termos com que o município redigiu o «auto de juramento de fidelidade» revela uma contida alegria, uma secura de sentimentos, diria até que uma velada indiferença sobre o retorno ao passado. Para que o nosso leitor possa aquilatar o calor da satisfação tavirense, aqui fica a transcrição do documento: 
Edifício da Câmara de Tavira, com as arcadas antigas

«Serenissimo Senhor 
A Camara da cidade de Tavira, e os Ministros da sua Comarca têm a honra de felicitar a Vossa Alteza pelo seu feliz regresso a estes Reinos. A Providencia Divina hade conservar a vida de Vossa Alteza na Regência dos mesmos, para fazer a prosperidade dos Portuguezes, que sempre merecerão a beneficencia de seus Soberanos pela obediência, respeito, e fidelidade, que lhes consagrão. Digne-se pois Vossa Alteza aceitar a pureza dos nossos votos, com a affabilidade propria de seu generozo Coração. 
Deos Guarde a Precioza Vida de Vossa Alteza por dilatados annos. Tavira, em Camara de 12 de Março de 1828. 
O Corregedor da Comarca – Simão Antonio de Liz Lemos e Souza; O Provedor da Comarca do Algarve – José Antonio d’Almeida; O Juiz de Fora Presidente da Camara – JoaquimAntonio da Costa Sobrinho; O Primeiro Vereador – Sebastião Fernandes Estacio; O Segundo Vereador – Domingos Drago Nobre Pacheco; O Provedor do Concelho – Joaquim Pedro da Costa; O Escrivão da Camara – Manuel Antonio Nunes de Vasconcelos».[1]
Tavira, postal antigo,  vendo-se o jardim e a foz do rio Gilão

Repare-se que embora a edilidade tavirense trate o infante D. Miguel por Alteza Real, apenas lhe deseja as maiores felicidades para a Regência dos dois reinos. Há nesta afirmação uma velada discriminação da realidade, porque regência não é reinar, mas antes governar em nome do legítimo rei. Julgo tratar-se de uma velada advertência sobre quem era o legítimo herdeiro do trono. Na praça militar de Tavira reinava grande descontentamento sobre a indefinição do regime, havendo largo número de oficiais e soldados que pendiam para a legitimidade da facção liberal, o que viria a originar (dias depois da edilidade firmar este auto) uma revolta contra as autoridades miguelistas.[2]
O mesmo não acontece, porém, com o moribundo concelho de Sagres, cuja edilidade, talvez pelo facto de serem todos analfabetos, evidencia uma calorosa satisfação, um esfusiante entusiasmo pelo regresso de D. Miguel ao trono. O «auto de fidelidade» lavrado pelo escrivão da câmara, revela uma enorme sinceridade nos termos com que expressa o júbilo do povo de Sagres. Para que conste aqui fica a transcrição integral e diplomática, isto é, respeitando a grafia original e pouco canónica, do documento: 
Fortaleza de Sagres - Capela de Nª Sª da Graça, e ao 
 lado vê-se a suposta Casa do Infante D. Henrique

«A Camara da Villa de Sagres da Comarca de Lagos, no Reino do Algarve, depois de haver dado do modo possível a Deos tudo [sic] Poderozo, e Rei dos Reis suas humildes, e devidas acções de graças, pela feliz e misteriosa regressão de V. A. R. a estes Reinos de Portugal e Algarves para os governar; julga também do seo maior importante dever, ir por este modo, porssi e pelas pessoas morais, que reprezenta, saudar, e felicitar a V. A. Serenissima e trebutar-lhe as suas mais humildes e obidientes adorações, dizejando [sic] que o Céo prospere, e felicite, e abençoe a Augusta Pessoa de V. A. R. per dilatados annos como todos dezejamos, e havemos mister. 
Villa de Sagres em Camara de 3 de Maio de 1828. 
De Vossa Alteza 
Osmais humildes súbditos 
O Juiz Ordinario – Francisco Xavier Pereira 
Vereador – José António (assinou de cruz); Vereador – Antonio da Roza (assinou de cruz); Vereador – Antonio Pinheiro (assinou de cruz); Do Procurador – Joaquim José; O Escrivão da Camara – Joaquim Rozado.»[3]
Planta manuscrita da vila e fortaleza de Sagres, datada de 1607

Curiosamente toda a vereação era analfabeta, porque assinou de cruz, à excepção do escrivão, que ao facto de saber ler e escrever devia a justificação do seu cargo, numa terra em estado decadente e visível ermamento, prestes a desaparecer como concelho, como aliás viria a acontecer na reforma administrativa de Passos Manuel, levada a cabo em 1838.
 
Repare-se no facto do «auto» se referir ao infante com o honroso título de Sua Alteza Sereníssima, não se esquecendo também de mencionar que governava dois reinos, o de Portugal e o dos Algarves. A este tipo de alerta, colocando em pé de igualdade os dois reinos, chama-se consciência regional, o que tem que ver com separatismos nem com independentismos, sentimentos apócrifos e recentes no Algarve. 
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[1] ANTT, Ministério do Reino, Autos de Felicitações, Aclamações, Juramentos e Outros, Maço 9, 1ª série, doc. nº 1733 (158 na classificação mais recente). 

[2] Veja-se a este propósito o nosso artigo «O Terror Miguelista no Algarve – perseguição e devassa», na edição nº 21 da Al-Úlyà, revista do Arquivo Histórico de Loulé, 2020 (no prelo). 

[3] ANTT, Ministério do Reino, Autos de Felicitações, Aclamações, Juramentos e Outros, Maço 9, 1ª série, doc. nº 1704 (129 na classificação mais recente).

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