quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A tortura da alma na efervescência dos neurónios


José Carlos Vilhena Mesquita

A poesia é um manancial de sensações que se agitam em torno das palavras como ebulições do pensamento. É a efervescência dos neurónios nas etéreas cogitações da alma, causando a agitação das ideias e removendo as concepções estáticas da sociedade civil. Neste caso são revolucionárias, premunitórias e demolidoras. Anunciam a aurora regeneradora de novas eras. Porém, outras estremecem credos e apologias, remexem no íntimo da crença e da fé, esboroam dogmas em refulgentes concepções filosóficas. São agnósticas umas, cépticas outras, descrentes todas, quando concebem a criatura sem ver o criador. Mas, por mais ideológicas e sublimes, ou por mais profundas, ascépticas e enigmáticas que sejam as proposições de um poema de Antero ou de Junqueiro, não restam dúvidas que é na poesia que tudo se transmite e se transforma.
O génio sente-se no acto da criação. A expressão é que difere. A luz e a cor são do pintor, a forma do escultor, a palavra do escritor. Mas a emoção é do poeta. No jogo das sensações, no choque das impressões, nasce a poesia, pura, nua e crua. Um místico mundo de fantasia e realidade desfila pela escadaria do poema. São as metáforas que desaguam no remate de um soneto. A nostalgia da saudade, as comoções do amor, as vicissitudes da alma invadem o poema como uma enxurrada de sentimentos. Isso é poesia. E só o poeta sabe verdadeiramente sentir a poesia. Mesmo quando finge sentir na alma a tortura do imaterializável, o poeta consegue transluzir em diamantinas metáforas a sincera nostalgia de um ideal por construir.
José Estevão Cruz, prosador das efémeras colunas dos hebdomadários algarvios, estreia-se neste livro como poeta. Não sei se algum dia permitirá que o tratem desse modo. Em todo o caso, vê-se que a sua poesia é sentida, sincera e imarcescível. Ainda que retocada nas imagens e rebuscada nos conceitos, não deixa de ser expressiva, raiando, aqui e ali, elevados níveis de pureza lírica.
Parece não existir neste livro um tema principal, nem seria crível que tal acontecesse numa obra poética. Porém sente-se que, no âmago dos seus versos, é a denúncia da opressão e a pusilânime teia dos interesses económicos internacionais, que constituem o tema global desta obra. E se para o comum dos poetas é a Liberdade, na sua concepção mais sublime, o ideal preferido do canto lírico, o José Estevão Cruz vai mais além e elege-a como luta universal da humanidade.
Por isso, os seus versos são um veemente apelo à consciencialização dos oprimidos, clamando contra a iniquidade do poder político que procura entear as classes laboriosas numa inebriante estrutura de dependências socioeconómicas. A letárgica “paz podre” em que vivemos hoje conduz-nos ao insensível alheamento dos que sofrem. E a indiferença parece ser indício do desenvolvimento. O resultado é a distribuição desigual, a marginalidade, o racismo, a violência e a droga. Até parece que no código genético das novas gerações vêem já gravados os defeitos da sociedade moderna: poder, corrupção, vício e perfídia. E estes são os pontos cardeais da educação que na estultícia do nosso egoísmo transmitimos aos vindouros, em nome do sucesso e da competência. A vida é uma competição de tecnologias e cifrões que tudo submete e esmaga à impiedosa lógica da produtividade.
O José Cruz deixa perceber nos seus versos que os direitos individuais, a liberdade e a democracia são mais uma aparência do que uma realidade. E o homem na sua multiplicidade de anseios e frustrações, deixou de ter significado. O cidadão na sua dignidade e honra, é quase uma expressão de retórica. Dá impressão que somos escravos dum sistema sem rosto nem pátria, a que alguns designam por progresso e no qual somos reduzidos à mais abjecta insignificância. Mas se, por um lado, uma cadeia de interesses económicos parece conduzir o mundo, por outro assiste-se à destruição do ambiente, à ameaça termonuclear e aos conflitos internacionais pela posse das fontes energéticas.
Esta é a realidade do autor, que sente a poesia como uma forma de comunicação intelectualizada, dirigida a uma parcela da sociedade civil supostamente preparada para o entender. Este livro é uma espécie de tribuna pública e como tal um risco calculado, visto que o autor nele se expõe à crítica e à imprevisível discordância dos que vêem o mundo por um prisma diferente. Não obstante, acredito que a mensagem que o autor pretende fazer passar é correcta e preocupante, merecedora da nossa melhor atenção.
A poesia é a vida. Por isso a poesia simplesmente acontece, sem peias nem destinos predeterminados. O seu modelo é o homem, nos seus anseios, frustrações e sentimentos. Na verdade, a poesia só não acontece quando não há amor, razão e solidariedade. Em suma, a poesia não é mais do que a associação da inteligência com o sentimento. A vida é o pensamento. Na conjugação primordial desse binómio, na sua expressão mais sublime, reside a poesia como paradigma da humanidade. E a efervescência dos neurónios, que nos torturam a alma em constantes interrogações, é apenas poesia.

(Prefácio ao livro Neurónios Flutuantes, da autoria de José Estêvão Cruz)

3 comentários:

  1. Meu caro Prof. JCVM

    Viva,

    Escrever acerca de poesia como o senhor, é sempre um prazer para quem lê e deverá sê-lo para quem escreve.

    Os meus parabens por isso.


    Transcrevi para o blogue da Escola, os costeletas, umas notas de GASTÃO CRUZ que gostava de lhe deixava de lhe deixar, por as considerar interessantes.

    Aí vão:

    “O poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a Linguagem possa dizer o ser. Por essência, a poesia nunca duvidou disso, ou duvidou afirmando-se através dessa dúvida.”

    Eugénio de Andrade afirma: “O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação”.

    Também Sophia, numa das suas “Artes Poéticas”, diz: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.”

    Penso que, no Portugal do século XX, pouca gente escreveu sobre poesia como os próprios poetas. Melhor dizendo, poucos, além deles, falaram da poesia vivendo-a, isto é, habitando-a, para recuperar uma palavra, e uma ideia.

    É certamente neste sentido que se tem dito que o estilo ensaístico de Eduardo Lourenço, quando fala de poesia, é o de um poeta.

    Depois disto, um abraço do
    João Brito Sousa

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  2. Olá Dr. Brito Sousa
    Obrigado pelo seu contributo. Concordo em absoluto com as suas palavras e, obviamente, com as que transcreve de grandes poetas nacionais.
    Volte sempre ao convívio dos meus blogs.
    Um abraço do Vilhena Mesquita

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