José Carlos Vilhena Mesquita
Como já se disse, a permanência de Florbela Espanca em Quelfes não foi relevante e julgo que se desenrolou ao longo de apenas seis meses, de marasmo, sossego, solidão literária e exílio, pouco conformes ao seu natural estado de espírito. Amiúde vinha a Faro visitar o cunhado Manuel e consultar o seu médico assistente, então conhecido pelo «Doutor Índio», visto se tratar de um canarim natural de Goa, que gozava de grande fama em toda a província, especialmente no campo das doenças pulmonares, que rigorosamente lhe impunha um tratamento de repouso absoluto. Escusado será dizer que Florbela detestava ir a Faro, só porque o médico a submetia a minuciosos exames. Como, aliás, detestava Olhão por não suportar o cheiro fétido e pestilento que ressumava da Ria.
Apesar disso, gostava do seu alvo casario e, especialmente, adorava ver o pôr-do-sol que, afirmava já mais ter visto espectáculo tão belo. Curiosamente, estranhava o facto de no Algarve o Sol nascer sobre o mar e pôr-se no mesmo mar sobre o qual se elevara. Tratava-se de um acontecimento raro, esquisito e que contado aos seus amigos alentejanos passaria, naturalmente, por uma ingénua balela. No entanto, existem sonetos que recordam esses momentos inesquecíveis, marchetados pela natural beleza de um sol inebriante, que empresta a este céu aquele azul extasiante que só os poetas sabem cantar, reflectido nesse mar imenso que atraiu os argonautas lusitanos para revelarem ao mundo novos mundos nunca antes navegados.
Convém notar que apesar de Florbela Espanca não aceitar de ânimo leve as imposições do «Dr. Índio», o certo e que ele era a única pessoa que a compreendia, que com ela discutia os problemas da psique, confessando frustrações mútuas, discutindo literatura e revelando-se, tal como ela, um grande cultor da poesia de Verlaine. Antero de Quental. António Nobre, etc... Também o conceituado médico era um infeliz que cedo perdera a esposa, igualmente vitimada por um aborto mal curado. Quão parecidos eram seus fados!
«O médico vem a casa regularmente, receita, aconselha, demora-se com certeza junto dessa doente que fala de António Nobre e de Verlaine. (...) O médico é o seu único amigo, no plano de compensação do seu processo psíquico. Ele dá nomes transfigurados e tranquilizantes da natureza dos seus males. Com ele pode falar à vontade, caracterizar a doença quando a descreve ao nível clínico. Os segredos não são precisos, porque essa história clínica e uma libertação para eles, sem lhes impor uma culpa».[1]
Florbela, desesperada de nada fazer, passando os dias deitada, comendo, escrevendo, meditando, sem nunca se levantar da cama. Recomendação que o médico lhe exigira cumprimento e que ela estritamente se via compelida a executar. No entanto, apesar dessas visitas que o seu médico assistente fazia ao «ermitério de Quelfes», e não obstante o contacto que mantinha com o exterior através das cartas dirigidas ao pai, à futura madrasta, ao irmão e aos amigos, o certo é que a sua situação psíquica ultrapassava já o estado da saturação, agravando-se progressivamente aquela fatídica neurose que a arrastará para a morte nas vésperas da publicação do seu livro mais querido: Charneca em Flor.
Estou tão triste e aborrecida! Tenho ódio ao Algarve.
Será exactamente esse ódio, essa inconstância, essa inatingível procura da felicidade, que irá determinar a sua separação e consequentemente o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, nessa altura (1921) um considerado funcionário bancário de Vila. Nova de Portimão.
Terminado o tratamento que confirmara o depauperamento físico suscitado por um aborto, invalidando assim a hipótese de doença pulmonar, Florbela escuda-se com os seus compromissos académicos e parte sozinha para Lisboa, onde conclui, com aproveitamento, o primeiro ano do curso de Direito. Matricula-se nas cadeiras do ano seguinte e regressa a Évora onde se reunirá aos seus familiares, trazendo já na ideia a publicação do seu primeiro livro. E assim, no ano seguinte, dá a público O Livro de Magoas cujo título anuncia já o seu temperamento, o espírito magoado de uma mulher que sofre de uma pluralidade interior: «De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...! De ter vivido e não ter sido Eu».
O espectro da fama, a ansiedade de ser conhecida, admirada, respeitada, o desejo de poder impressionar com o seu talento os amigos e os desconhecidos, de acelerar a inveja dos seus inimigos, são tudo sintomas de uma estreante autora que sonha com as palavras do pai: «Serás uma Espanca que há-de ficar». Desinteressada pelo passado, move uma acção de divórcio contra o seu marido, fundamentando-se no abandono de que havia sido vítima durante três anos. Servindo-se do testemunho de um farmacêutico amigo e de um oficial de diligências do próprio tribunal, consegue que na cidade de Évora, a 30 de Abril de 1921, fosse notificado o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, pacatamente fixado na piscatória vila de Portimão, regaladamente livre dessa mulher, dessa diva que ele mimoseou com todo o sacrifício que as suas parcas possibilidades lhe proporcionaram.
A irmã do marido, a professora Doroteia Moutinho, permaneceu em Quelfes, desiludida com a cunhada mas, ao mesmo tempo, admirando o seu talento com aquela piedade de quem sente pelos doentes a ternura de um perdão eterno. Tempos depois a bondosa Doroteia casaria com um abastado proprietário rural, muito conhecido no meio, José de Sousa Guita, de seu nome, que por curiosidade era o dono da escola e da casa onde habitara, e onde se albergara a insatisfeita poetisa de Vila Viçosa.
Infelizmente, já todos desapareceram, tanto os familiares de Florbela como os de seu primeiro marido, restando apenas a geração que se lhe seguiu, agora muito dispersa por Lisboa, Évora, Portimão e Beja.
Florbela Espanca casaria mais duas vezes. Primeiro no Porto, com António José Marques Guimarães, de 26 anos, ao tempo alferes de Artilharia da Guarda Nacional Republicana. Cerca de dois anos depois, divorcia-se daquele militar para se consorciar, logo a seguir, com o médico Mário Pereira Lage, de 32 anos, com quem permaneceu até à morte.
No dia 7 de Dezembro de 1930, às 22 horas, suicidou-se na sua residência da Rua 1.º de Dezembro, em Matosinhos. No dia imediato, data do seu aniversário, descia à terra um corpo de 36 anos, cuja existência atormentada havia sido dilacerantemente sacrificada ao génio narcotizante de uma lírica mística e pagã, eivada de um certo narcisismo insatisfeito.
Para terminar, gostaríamos de aqui, nestas mesmas colunas que em Janeiro de 1931 pela voz de António Ferro, logo corroborada por Lopes de Mendonça, D.ª Cândida Aires, Bourbon e Menezes, e, por fim D. Fernanda de Castro, defenderam, sustentaram e venceram a ideia de em sua memória se levantar um monumento; se pugnasse hoje, meio século volvido, pela incrustação de uma placa comemorativa da sua presença naquela modesta casa de Quelfes, onde Florbela Espanca receou enfrentar o mesmo espectro que 12 anos mais tarde ceifaria um dos mais notáveis talentos poéticos deste século e de toda a literatura portuguesa.
[1] Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, a Vida e a Obra, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Arcádia, 1979, p. 68.
(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 6 de Agosto de 1983)