quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Fonseca Domingos, um progressista poeta do povo

No contexto da poesia algarvia do século XX, assume particular destaque a figura do poeta José Maria Fonseca Domingos, cuja obra apesar de não ser muito vasta foi bastante apreciada entre os seus pares. Homem íntegro e de forte personalidade, que sempre defendeu os valores da liberdade e do socialismo, correu o mundo, confrontou culturas, conheceu diferentes civilizações e vivenciou díspares organizações políticas. Regressou ao seu Algarve natal para viver os últimos anos de vida em convívio com alguns poetas farenses, para cuja consolidação ajudou a fundar, juntamente com Tito Olívio e Diamantino Barriga, a «Tertúlia Hélice», que apesar de todas as vicissitudes ainda subsiste. O texto que aqui se divulga corresponde à conferência que pronunciei em 18-02-2006, na cerimónia de homenagem póstuma realizada no auditório da Biblioteca Municipal Ramos Rosa, em Faro.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A última Armação do Atum - Arraial Ferreira Neto, em Tavira

As grandes armações do atum desapareceram do Algarve há quarenta anos, sendo que a última foi lançada em 1972, cujo resultado se saldou na captura de um único atum. Nunca mais se voltaria a armar essa grande e prodigiosa estrutura de pesca, que desde a colonização islâmica por aqui se designou por «Almadrava». A última campanha da pesca do atum, efectuada em 1968 pelo Arraial Ferreira Neto, em Tavira, foi seguida a par e passo pelo realizador Hélder Mendes, então ao serviço da RTP. Aqui deixamos o filme produzido com tanto sacrifico e dedicação, que é hoje um incontornável peça da 7.ª arte e um valioso testemunho da nossa etnografia marítima. Lembramos que Hélder Mendes filmou tudo quase sempre sozinho, apenas com uma pequena máquina de filmar "Bolex-Paillard", quase artesanal que funcionava dando-se-lhe corda manualmente, após filmar vinte e quatro segundos de imagens de cada vez. Por falta de meios financeiros da RTP a fita foi gravada a preto e branco, o que foi pena, pois podia ter-se guardado para a posteridade, com mais realismo e exactidão, um dos grandes momentos da História das Pescarias do Algarve. Impõe-se salientar o grande profissionalismo e sentido artístico de Hélder Mendes, que acompanhou durante cinco meses o sacrifício quotidiano dos marítimos algarvios, que se dedicavam à chamada «pesca rica», ou seja à captura do atum, que é hoje uma faina praticamente extinta. Acresce dizer que o documentário produzido e realizado por Hélder Mendes foi retransmitido na RTP, no programa «Bombordo», a 9-3-2002. É, como se pode aqui constatar, um pedaço da História do Algarve.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

A Pesca da Baleia no Algarve


José Carlos Vilhena Mesquita

A pesca da baleia no litoral algarvio foi, a par da pesca do coral, uma das primeiras a serem desactivadas, pertencendo por isso, e de há longa data, às chamadas “pescarias históricas”. Contudo, temos hoje plena certeza de que a sua efectividade nos mares do Algarve ascende a tempos muito remotos.
Cerro da Vila, povoação piscatória romana, em Vilamoura
Desde as colonizações fenícias, cartaginesas, grega, romana e árabe que existem provas arqueológicas, e até descrições narrativas, duma intensa actividade na captura de cetáceos para lá das portas de Hercules, ou seja, nas costas do Algarve-Andaluz. A sua importância económica foi, certamente, relevante. Por isso, a captura daquele cetáceo constitui um exemplo a reter na análise dos forais de Silves, Tavira, Faro e Loulé, visto que os citados monarcas reservavam para si os direitos da baleação.[1] Isto prova que a pesca da baleia continuava a processar-se com regularidade e, por certo, de forma bastante rendível, pois de contrário não teria sido alvo dos interesses da Coroa. Esta constatação serve também para evidenciar que, após a conquista do Algarve e a unificação do território nacional, continuou a incentivar-se a navegação de altura, cujo alcance se estendia pelo sudoeste atlântico, visto serem estes os domínios naturais da pesca da baleia.
Mas se aqueles forais dizem respeito às principais urbes do Algarve, poderia deduzir-se que este tipo de pesca se confinava aos centros mais populosos e habitados pelos antigos mareantes árabes, cuja experiência de alto mar justificaria o elevado rendimento do sector. Todavia, parece não ser assim. Os algarvios, do ponto de vista antropológico, são fruto da miscigenação de várias raças e culturas indo-europeias, que ao longo dos séculos se cruzaram na grande estrada mediterrâneo-atlântica. O seu legado foi muito vasto e a herança tecnológica ficou patente no aproveitamento dos recursos hidrológicos e na agricultura, na mineração e na metalurgia, nas indústrias da olaria e da cerâmica, na olivicultura, nos linifícios, nas cordoarias e espartos, na tecelagem e tinturaria, na vinicultura e alcoólase, nas artes decorativas, na música, na poesia, na arquitectura e em todas as circunstâncias dependentes do génio inventivo. Desta mesclagem genética resultou o espírito e o carácter do povo algarvio, inclinado para o desfrute e sabor da vida.
Não obstante a sua herança antropológica, o Algarve é essencialmente uma região marítima, com uma importância geo-estratégica incontornável. A sua configuração geográfica tornou-o, desde tempos imemoriais, num amplo cais de acostagem. Os algarvios são homens modelados pelo mar, pois que até nas pequenas povoações costeiras se desenvolveu desde sempre uma intensa actividade piscatória. E a baleia seria um dos seus alvos preferências. Repare-se nos forais de Castro Marim (tanto o de 1277 como o de 1282),
Foral de Aljezur, pergaminho original
Aljezur (1280), Cacela (1283) e Porches (1286), todos eles relativos a pequenos concelhos do litoral, nos quais os “direitos da baleação” se continuavam a reservar para o monarca.[2] E não cremos que D. Dinis, ao exarar esta cláusula nos citados forais, estivesse apenas a copiar uma determinação dos antigos diplomas de seu pai outorgados por volta de 1266, pois que, duas décadas decorridas, deve ter sido informado de que a pesca da baleia constituía uma actividade comum a todo o litoral algarvio. Nesta experiência da faina de alto mar consubstanciavam-se algumas das razões que explicam a presença do Algarve no contexto dos Descobrimentos.[3]
Muito embora a pesca da baleia fosse, em número de capturas, progressivamente diminuindo ao longo dos anos, registaram-se, contudo, algumas tentativas régias para a sua protecção e incremento económico. Insere-se, neste caso, o diploma de D. Afonso IV, datado de 28-9-1340, através do qual se arrendaram ao mercador Afonso Domingues todas as baleações do reino pelo espaço de seis anos. Durante este período a coroa forneceria àquele rendeiro 60 moios de trigo de Beja ou de Serpa e 64 alqueires das salinas de Faro, que se destinavam à conserva da baleia, ficando as famílias dos pescadores sob a protecção real.[4] Suponho que terá sido este o primeiro arrendamento da baleação do reino.
No Algarve os baleeiros mantinham-se em laboração durante todo o ano e apenas sujeitos aos respectivos tributos foraleiros. A importância desta pesca no comércio algarvio do século xv deve ter sido bastante significativa, nomeadamente nos anos de escassez de trigo, pois da sua permuta por carne e óleo de baleia dependia a sustentabilidade de muitas comunidades piscatórias:
 «No reinado do Senhor D. Afonso IV, era hum objecto mui attendivel da nossa industria nacional a Pescaria da Balêa feita nas costas do Algarve, porque de huma Carta de desaggravo daquelle soberano dirigida ao concelho de Tavira no 1.º de Setembro de 1352 consta que em Porto Novo morrião Balêas, e que vinhão almocreves carregallas para fóra a troco de trigo».[5]
Esta situação – permutação de pescado por trigo – vai repetir-se constantemente, sendo, por isso, um exemplo de economia de mercado, visto que os excedentes produtivos do Algarve, pelo seu valor e procura, eram transaccionados por mercadorias de primeira necessidade. Por outro lado, também se demonstra que a produção cerealífera no Algarve era, e foi sempre, deficitária.
Por conseguinte, as pescarias algarvias contribuíam para o crescimento das transacções comerciais e para o abastecimento do seu mercado interno, com especial acuidade nas épocas de crise agrícola.
Selo pendente do Rei D. Dinis
A intensidade do movimento comercial marítimo nos portos algarvios era de tal forma cobiçada pelo corso marroquino que tanto D. Dinis como D. Afonso IV proveram a vigilância destas águas com:
 «huma Esquadra de guarda-costa de três Galés e cinco navios grandes para protecção do Commercio maritimo, que era então grande, principalmente em pescarias, tanto das Provincias do Norte de Portugal, como do Algarve, das quaes se provia o Reino todo, e se exportavão grandes quantidades deste genero para os Paizes estrangeiros, dentro e fóra do Mediterrâneo».[6]
Entre as pescarias, que sustentavam o comércio internacional e os interesses dos empresários estrangeiros, integrava-se a da baleia, embora se notasse já uma sensível decadência no índice das capturas.
Como reflexo do desenvolvimento das pescarias, e sobretudo do comércio externo, era franco e notório, pelo menos desde o século XIV, que o porto de Tavira se distinguia claramente dos restantes:
 «admitia navios de alto bordo, o seu comércio era florescente e avantajado e só para ele havia mais de setenta navios de alto bordo, propriedade de seus habitantes, e que navegavam para diversos portos, além de um crescido número de embarcações costeiras e de pesca».[7]
Gravura de 1577 representando a pesca da baleia
Certamente, muitos desses navios de “alto bordo” caçavam a baleia de parceria com os de Lagos, que na época eram os principais centros da navegação do alto. Na verdade, «onde se fazia a maior baleação era na praia da Senhora da Luz, perto de Lagos, e Porto Novo, pouco distante de Tavira, a qual sustentava 70 barcos, além de muitas embarcações de alto bordo».[8]
Deveria ser intensa a procura deste cetáceo nas águas algarvias, especialmente na costa de Lagos, a cujos baleeiros se concederam certos privilégios em reconhecimento da importância económica dessas pescarias. Demonstra-o a carta de confirmação de D. Pedro I, datada de 29-3-1359, sobre os antigos privilégios dos “maiorais da baleação”, cujos pormenores não discrimina e, por isso, os desconhecemos. [9]
A pesca da baleia prolongou-se pelo reinado de D. Fernando e exercia-se tanto na costa do Algarve como nas do Alentejo e Estremadura.[10] Data dessa época uma carta Regia, de 20-11-1367, na qual aquele monarca ordena:
 «os almoxarifes de Lagos e Tavira dessem ao Bispo e Cabido da Sé de Silves, a cada um, uma carga de besta cavalar – dez arrobas – metade gorda e metade magra, por cada baleia ou cavalasso que morresse nas costas do Algarve por conhecença, como já seu pai e avô tinham feito».[11]
Gravura antiga de Cachalote, espécie muito comum
 nas águas dos Açores
O último testemunho comprovativo da permanência no Algarve da pesca da baleia, ainda que de forma esporádica, remonta ao reinado de D. João I, que, a 15-5-1386, deu ao seu anadel-mor dos besteiros, Estevão Vasques Filipe, as rendas e direitos da baleação de Lagos, acrescentadas das dízimas das mercadorias estrangeiras alfandegadas naquela vila.[12]
Deste breve apontamento se pode concluir que até ao final do reinado do Mestre de Avis os baleeiros lacobrigenses mantiveram-se ainda activos nas perseguições daquele cetáceo. As notícias que temos sobre este tipo de pescaria – exercida desde longa data no Algarve – não ultrapassam o século XIV, sendo de presumir que por essa altura as baleias se tenham afastado desta costa, pelo menos no número e intensidade de outrora, desactivando-se a partir daquela centúria a sua captura.


[1] Vide Alberto Iria, Descobrimentos Portugueses, 2 volumes, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1956, Vol. II, Tomo I, p. 209.
[2] Idem, Idem, vol. II, Tomo I, p. 210.
[3] Cf. Idem, «A Tradição Marítima no Algarve anterior às navegações do século xv e depois ao serviço do Infante D. Henrique», in Las Ciencias, Madrid, Ano XI, n.º 3, p. 599 e ss.
[4] Idem, O Algarve e os Descobrimentos, vol. II, tomo I, pp. 214-215; Vide João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc. 63, p. 64.
[5] Constantino Botelho de Lacerda Lobo, «Memoria sobre as Pescarias em Portugal», in Jornal de Coimbra, Lisboa, 1812, p. 82.
[6] Inácio da Costa Quintela, Annaes da Marinha Portugueza, tomo I, Lisboa, 1839, pp. 21-22.
[7] Damião Augusto de Brito Vasconcelos, Noticias Históricas de Tavira (1242-1840), Lisboa, Liv. Lusitana, 1937, p. 121.
[8] Idem, Idem, p. 139.
[9] ANTT, Chancelaria de D. Pedro I, Liv. 1.º, fl. 35 v.º; apud João Martins da Silva Marques, op. cit., vol. I, doc. 92, p. 110.
[10] Cf. Constantino Botelho de Lacerda Lobo, op. cit., p. 82.
[11] Damião A. B. Vasconcelos, op. cit., p. 139; Vide Alberto Iria, op. cit., vol. II, tomo I, p. 218.
[12] ANTT, Chancelaria de D. João I, Livro 2.º, fl. 27 v.º; vide J. M. Silva Marques, op. cit., Suplemento ao vol. I, doc. 49, p. 68.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Em memória do meu colega e amigo António Rosa Mendes

Morreu o historiador António Rosa Mendes. Calou-se para sempre a voz da eloquência algarvia, o verbo da mediação cívica e da desinteressada ação política, que tudo fez para engrandecer a sua pátria natal. Foi um cidadão exemplar, humilde e desprovido de vaidades, que soube granjear o respeito dos seus conterrâneos e admiração pelos seus colegas e alunos. Acima de tudo foi um homem íntegro, desprendido de interesses, com um forte caráter e de princípios éticos que serviram de exemplo a todos os que o conheceram ou com ele conviveram. Como humanista e homem de cultura, deixou uma vincada imagem de erudição, atestada na vasta obra legada em livro, mas também nas conferências que pronunciou e nos congressos e colóquios, nacionais e internacionais, em que participou. Deixou-nos na memória a recordação do académico competente e do historiador proficiente, do jurista impoluto e do editor mecenas. Mas também guardamos dele o acrisolado amor regionalista e a convicção algarviísta que a todos compete imitar.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Evocação da saudosa memória da poetisa Quina Faleiro

     No passado dia 25 de Maio tive o grato prazer de assistir à inauguração da Praceta Joaquina Faleiro, uma brilhante poetisa de quem tive o grato prazer de ser amigo. A cerimónia teve muita dignidade e alguma emoção, transmitida pelos familiares e amigos que nela estiveram presentes. Embora sem a pompa e circunstância de outros eventos, o certo é que a presença do presidente da edilidade  engº Macário Correia, bem como de toda a vereação e de alguns deputados municipais, conferiu àquela singela cerimónia um comovente momento de reflexão e de evocação poética. O Presidente Macário Correio teve a gentileza de proferir um breve discurso, com palavras de muito apreço e de sentida admiração, após o que, em parceria com a nora da homenageada, descerrou a placa toponímica.
     Como a Quina Faleiro (era assim que fraternalmente a tratávamos, e foi esse o seu nome literário que adoptou) possuía um enorme talento para a poesia, lembraram-se os seus companheiros da Tertúlia Hélice de evocar a sua memória através da leitura de alguns dos seus sonetos, extraídos do livro que publicou em vida, «Choram Meus Dedos», mas também da obra editada postumamente pela AJEA Edições com o titulo «Viagem dos Sentidos». Foi uma breve e efusiva homenagem cultural, à qual o presidente e a comitiva autárquica emprestou o carácter oficial da sua presença. A comitiva partiu para outros eventos que nesse dia tiveram igualmente lugar, incluídos num vasto programa de inaugurações com o qual a vereação de Macário Correia pretende demonstrar a eficácia da sua administração.
    Acima de tudo foi um belo momento de convívio cultural, debaixo de um radioso sol primaveril, durante o qual nos lembramos com imensa saudade da Quina, mas também de outros amigos, poetas, escritores e artistas, que faziam parte da AJEA e entretanto nos deixaram, mas dos quais nunca nos esqueceremos.
    Para evocar a saudosa memória da poetisa Quina Faleiro aqui deixo, para reflexão pública, o texto que escrevi para a sessão de homenagem póstuma que a AJEA lhe prestou, a 11-3-2006, no auditório da Biblioteca Municipal de Faro, onde estiveram presentes numerosos amigos, poetas e admiradores, para além de representantes da autarquia e do Governo Civil.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Salazar e Duarte Pacheco não ouviam a mesma música - um episódio quase anedótico das suas relações políticas

A figura tutelar e fundacional do «Estado Novo» foi incontestavelmente Oliveira Salazar, reputado professor da Universidade de Coimbra e consagrado estadista, que dirigiu os destinos de Portugal durante quase meio século. O sistema político assentava numa ditadura, herdada dos militares, que Salazar moldou à imagem do fascismo italiano, mas numa versão mais suave, de forte pendor clerical, anti-partidária e antidemocrática. O facto de ter evitado a entrada de Portugal na II Guerra Mundial e de ter mantido sempre intacto o vasto império colonial, granjeou-lhe um forte prestígio político, não só no seio da nação como ainda na consideração das maiores potencias mundiais, que durante o período da «Guerra Fria» preferiram manter o ditador sob protetora vigilância, com receio duma escalada bolchevista na Europa mediterrânica. A imagem de político honesto e íntegro, austero e incorruptível, aureolou Salazar com o epíteto de salvador da pátria, cuja dedicação governativa era apreciada como um sacrifício em prol da defesa e integridade da nação portuguesa. 
Mas a figura emblemática do regime corporativo assente na ideia de um «Estado Novo», ordeiro, disciplinado e empreendedor, recaiu no Engº Duarte Pacheco, que, como Ministro das Obras Públicas ou como presidente da Câmara Municipal de Lisboa, foi o autor e impulsionador de uma política de desenvolvimento dos sectores económicos com base na criação de infraestruturas, na qualificação dos recursos humanos e na potencialização das riquezas naturais de que o país dispunha. Basta dizer que foi o primeiro a perceber que um dos vectores para a modernização do país era precisamente a implementação do turismo internacional, desenvolvendo para isso uma vasta rede hoteleira espalhada pela orla costeira, tendo inclusivamente operado  uma campanha de restauro e adaptação de castelos, fortalezas, conventos, mosteiros e outros edifícios históricos, convertendo-os em estalagens turísticas.
O artigo que aqui se coloca ao dispor do público refere-se a um episódio das relações político-governativas entre Salazar e Duarte Pacheco, que foi sempre muito amistosa e produtiva, tendo por objectivo a modernização do país, o progresso material da nação e a valorização da imagem de Portugal além-fronteiras. Da relação de trabalho entre os dois estadistas resultou um período de modernização e progresso do país, que causou um certo espanto no estrangeiro.
Mas a imagem que transparecia para o país era a de que Salazar não só protegia e admirava o  Engº Duarte Pacheco, seu dinâmico e empreendedor ministro das Obras Públicas, como ainda lhe fazia todas as vontades, custeando integralmente certas obras que de fomento tinham pouco e de benefício para o país eram de duvidosa eficiência, como aconteceu por exemplo com o Estádio Nacional.
Neste artigo recordamos um caso que contraria essa imagem protectora de Salazar e que deixou Duarte Pacheco muito decepcionado pela lição que teve de aprender com o chefe de estado. É que o dinheiro dos contribuintes representa o sacrifício e o suor de quem trabalha, não é para os políticos satisfazerem interesses velados com gastos  avultadíssimos em obras sumptuosos, de duvidosa urgência e necessidade. 

sexta-feira, 26 de abril de 2013

No I Centenário de Emiliano da Costa - converter em casa-museu a residência do poeta

Em 17 de Abril de 1984 publiquei no vespertino «Dário de Notícias» um artigo sobre o poeta Emiliano da Costa cujo primeiro centenário do seu nascimento se comemorava nesse ano, sem a pompa nem a circunstância que a memória daquele notável vate justamente merecia. Para lhe enaltecer o talento e lembrar a importância da sua obra literária, aproveitei o ensejo para visitar a antiga residência do poeta, em Estoi, e sugerir a sua conversão em Casa-Museu, à semelhança do que já ocorrera com Ferreira de Castro e José Régio. A ideia, embora não fosse difícil de concretizar, não teve, porém, a repercussão expectável junto das autoridades locais e regionais. Passados praticamente trinta anos a ideia mantém-se atual, mas infelizmente por concretizar. Os herdeiros da residência, já não serão provavelmente os mesmos que conheci. E temo que o valioso espólio, que então pude observar, já não se conserve na sua integridade.
Para que o meu alvitre, e a minha sugestão de fomento cultural, não permaneça no olvido, decidi recuperar esse artigo e deixá-lo aqui transcrito na sua versão original.


domingo, 14 de abril de 2013

Biblioteca Municipal de Faro - Uma riqueza à espera do futuro

 [Fiz a minha estreia jornalística, como redator regional, no vespertino lisboeta «Diário de Notícias, no dia 20 de Junho de 1981, com um artigo sobre a Biblioteca Municipal de Faro, cujas instalações, nessa altura, acabavam de ser melhoradas mercê da sua transferência do edifício da Câmara Municipal para o quinhentista Convento de Nª Sª da Assunção, vulgo colégio das freiras, e atual Museu Arqueológico e Lapidar do Infante D. Henrique. A biblioteca era pouco frequentada, mas o seu acervo bibliográfico era significativo e valioso. O objetivo deste artigo prendia-se com a urgência de melhorar as circunstâncias de trabalho, as instalações e a divulgação das reais potencialidades daquela instituição para o apoio à investigação e ao ensino universitário, que havia sido oficialmente criado em 1979, mercê da fundação da Universidade do Algarve. Para que não ficasse definitivamente esquecido nas colunas desse grande vespertino (entao como hoje, o mais antigo e mais importante órgão de imprensa do nosso país), decidi recuperar o artigo e transcrevê-lo aqui, na sua integridade original, atualizando-lhe apenas a ortografia. Como era relativamente extenso, a direção do «DN» decidiu publicá-lo em duas partes: a primeira a 20 e a segunda a 30 de Junho de 1981.]

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A Alma da poesia no Corpo do amor

José Carlos Vilhena Mesquita

A poesia é a ciência mais antiga do Homem. Dito assim, de chofre, parece uma blasfémia. Afirmo-o, porém, na plena consciência de não estar a incorrer na estulta insensatez de confundir a objectividade da ciência com o idealismo egocêntrico e fantasista da verve poética. A ciência é fria e impessoal, enquanto a poesia é calorosamente intimista. Parece que estamos a falar dos antípodas da razão, ou dos oponentes da existência humana. Mas, na verdade, a poesia é a expressão mais artística e mais sublime da vida, tendo servido desde tempos imemoriais para aplacar os deuses, homenagear os heróis, seduzir os vivos e invocar os mortos. Tudo na vida se pode envolver no halo sagrado da poesia.
Os primeiros conhecimentos foram transmitidos de geração em geração pela arte, pela música e pelo legendário oral, através do qual se fortaleciam os laços de pertença e de integração social. As tribos e os clãs mais ancestrais, identificavam-se não só pela sua peculiar iconografia, como sobretudo pela reverência dos seus heróis, cujo preito se fazia através de cânticos, loas, odes e outras expressões poéticas. Significa isto, que nos primórdios da civilização o saber/ciência era fruto do tempo e da experiência, ou seja, do empirismo vivencial, cuja transmissão se operava através de sentenciosos adágios ou provérbios, pejados de sonoridades rimáticas que facilitavam a sua memorização.
Digamos que a poesia nas sociedades menos evoluídas se tornou numa espécie de correia de transmissão da ciência, exemplo que ainda há pouco anos se verificava nas aldeias mais recônditas do nordeste beirão e transmontano. Se repararmos na nossa literatura oral, constatamos que o misticismo e a crendice popular estão impregnadas de poesia, evidenciada nas orações e benzeduras, nas adivinhas, nos maus-olhados, nas pragas e maldições, nos aforismos e adágios, nos autos e entremezes teatrais, nos relatos sobre o passado histórico e lendário dos antepassados... Enfim, nesse imenso património bio-socio-antropológico, a poesia funciona como uma espécie de oráculo da cultura popular.
No seio da cultura portuguesa, atribui-se ao Infante D. Pedro, a quem chamaram o príncipe das sete-partidas, filho de D. João I e membro da “Ínclita Geração”, a honra de ter introduzido na língua portuguesa o vocábulo POESIA, cujo género literário dizia ele ser “Coisa mais do sabor do que do saber”. Esta afirmação, aparentemente, vem contradizer a relação primordial entre a ciência e poesia. Mas, na verdade, o que acontece é que o tempo mudou, isto é, alteraram-se as mentalidades, transformando-se a organização social e económica do mundo. Modificaram-se as noções de ciência e de cultura, o conhecimento procurou independentizar-se da filosofia e assistiu-se ao nascimento das diversas ciências. E a Poesia, que durante muito tempo havia servido de muleta à ciência, tornou-se a partir de então numa Arte intelectual – é certo que numa expressão elevada do pensamento e num pitonísico oráculo do idealismo filosófico, mas definitivamente numa arte ou simplesmente numa forma de criação artística.
Estava-se em plena Renascença, fervilhavam novas ideias nos cenáculos do Humanismo, e a sombra do velho mundo passava a medir-se com a vara do estro humano. Era o tempo do homo mensura. A poesia tomava novos rumos em diferentes cambiantes. Tornara-se mais imaginativa e artística, formulando novos modelos para a arquitectura das palavras. O sentido desalinhou-se do conteúdo, isto é o significado e o significante estabeleceram um imbricado relacionamento, formando enigmáticos dédalos de locuções, aos quais a riqueza fonética das palavras emprestou uma inovadora sonoridades musical. A partir de então a poesia tornou-se na arte da palavra por excelência. Ora, acontece que as línguas latinas possuíam, na radícula do classicismo, a especial singularidade de darem à entoação das palavras uma musicalidade natural. Talvez por isso é que Rodrigues Lobo no seu livro a Corte na Aldeia, dissesse que "a língua portuguesa é branda para deleitar, grave para engrandecer e doce para pronunciar" .
Por sua vez, Sá de Miranda (o célebre introdutor do soneto em Portugal) desejando ilustrar o espiritualismo e o desprezo dos poetas pelo materialismo, dizia que "os poetas tudo punham em flores e dos frutos nada havia que esperar". Esta asserção marcaria para sempre a concepção geral do valor da poesia, e, por consequência, a desvalorização social do poeta. Vulgarizou-se a errónea imagem do Poeta sonhador, lunático, excêntrico, extravagante e caprichoso, resultante do seu aparente desapego à realidade, do seu psiquismo frenético e fantasista, do seu epicurismo sensualista e, sobretudo, do seu hedonismo existencial.
Certamente por causa dessa falsa imagem do Poeta, é que, mais tarde, quando o materialismo burguês se apoderou do nosso país – um pouco à semelhança do que estamos a viver hoje –  Camilo Castelo Branco, que chegou a ter pretensões poéticas, afirmava enfurecido: «Gela-se-me o sangue, quando a ignorância petulante faz um trejeito de menosprezo ao talento e diz: poeta!».
Ora a Poesia é, em primeiro lugar, um acto de comunicação com o Eu e com o Outro. E actualmente a Poesia também é um lugar de resistência à globalização, cada vez mais redutora e homogeneizante, fulcralizada num modelo imperialista de cultura inspiradamente anglo-americano, no qual só o mediático é universal.
No fundo, a Poesia é simplesmente a arte de fazer versos, transmitindo neles o sentimento, o temperamento e o carácter do poeta, numa simbiose da intimidade com a estética, sem nunca perder de vista os excelsos valores da Ética. Mas, por outro lado, a Poesia é a expressão natural da paixão como suprema manifestação do amor, num entrelaçar de imagens e de metáforas que transluzem o sofrimento e a dor dos amantes. Porém, como dizia Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente". Por isso é que a poesia obedece a uma fórmula de composição estética e musical.
Classicamente a Poesia obedece a uma fórmula de composição estética e musical. O seu objecto é a beleza de expressão associada à ideia, usando a palavra com parcimónia, mas procurando elevar os conceitos até ao nível da plurivalência entre o significado e o significante. A poesia deve, pois, expressar uma certa harmonia entre a inspiração lírica e a mensagem literária, dando-lhe um carácter comovente, sem extinguir certezas absolutas.
A Poesia é a inspiração natural e transcendente, mas também é um labor sequencial com a palavra num aprimoramento de ideias e de pensamentos, concebidos nos céus etéreos da lógica, que ultrapassam a materialidade e a impermanência da vida. Por outro lado a poesia é a própria Vida, pejada de memórias recorrentes e de magnetismos telúricos, impregnando-se, por vezes, de obscuros e insondáveis mistérios.
Acima de tudo, a Poesia é dialógica. Com a palavra inventamos mundos usando conceitos profundos e belas metáforas, mas é com palavras simples e familiares que se faz a melhor poesia. Talvez por isso é que o poeta José Craveirinha concebia a criação lírica como uma "fraternidade das palavras", afirmando que "as palavras só precisam de quem as toque ao mesmo ritmo para serem todas irmãs".
Mas a memória das palavras não depende da memória, mas antes das palavras. Existe um Sul mítico no esplendor do Sol, nas areias movediças da memória e na espuma das palavras, como a presença viva dos nossos ascendentes que pairam sobre a nossa memória. Os lugares de recorrência acontecem frequentemente na poesia, quando lembramos as raízes e o tempo que passa, como memória da água.
Existe um tempo de maturação poética, durante o qual o poema precisa de adormecer na sua forma crisálida até despertar como eflúvio de vida e de beleza. Em jeito de crítica, construtiva, diria que existem dois tipos de poetas: os de inspiração vulcânica, a que chamo repentistas, e os versificadores aplicados, a que chamo poetas da inteligência. Os primeiros são os apóstolos do povo, cantam aquilo que vêem com a simplicidade do seu limitado horizonte intelectual. Os segundos versejam com eloquência, constroem imagens e metáforas de fino recorte estilístico, evidenciando uma forte presença intelectual, entretecida na sensibilidade estética e na elevação do pensamento filosófico. Há certos poetas que escrevem de chofre, na primeira penada, sem tão pouco verificarem se nos seus poemas existe sentido, Beleza ou Graça.
O poeta é, em suma, um mago cinzelador da palavra transformada em verso, um alquimista da Beleza. Por isso é que Fernando Pessoa definiu o poeta nesta simples e genial síntese: «Deve haver no mais pequeno poema, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero».
Pegando na afirmação de Fernando Pessoa, sente-se que pelo Corpo e Alma deste livro, passou o espírito homérico da palavra peregrina, do amor platónico e da paixão física de Ulisses. Na profundidade estética da eloquência e na arrumação estésica do seu próprio sentido lírico, percebe-se que Saúl Neves de Jesus foi tocado pelo halo sagrado das musas, deixando-se enlevar no inebriante cântico das sereias.
Na sequência do meu raciocínio inicial, direi que esta obra não é de ciência, porque a tão elevado patamar já não se ergue a poesia. Porém, ela nasceu do amor, da paixão, do sentimentalismo e do mais puro espiritualismo de um cientista, que considero, sem favor, como um incansável, denodado e proficiente investigador, cuja obra académica tem depositado sobre o venerável e frio altar da ciência, com o aplauso inter pares e os mais rasgados elogios da crítica especializada. Este livro vem corroborar a velha frase de António Ferreira, o celebrizado autor da Castro, quando afirmou que “as musas nunca fizeram mal aos doutores”. E de facto assim se comprova pela leitura dos poemas que compõem o livro, De Corpo e Alma, embora também nele se perceba que não foram as musas que o inspiraram, mas certamente uma única e maravilhosa musa, que ajudou o poeta a descobrir a essência do amor.
Toda a obra está impregnada pela ascese dos sentidos, transmitida, de forma muito velada, através do calor sensorial das palavras, suspeitosamente evidenciada na apreensão sensual dos corpos, na percepção táctil das carícias dos amantes ou nos odores da carne libertados pelo frenesim do amor. No poema «Os cinco sentidos da paixão» tudo fica mais claramente definido. O amor vive-se e sente-se na plenitude dos sentidos. É dessa osmose sensitiva que o amor desperta em paixão. “O verdadeiro amor não pode ser definido, apenas sentido...”
Os poemas de Saúl Neves de Jesus são verdadeiras odes ao amor, cânticos oníricos carregados de paixão, num inebriante sensacionismo, que a ninguém pode deixar indiferente. O amor assume-se nos seus versos como um momento de magia, e o êxtase do amor pressente-se na simplicidade das palavras: “Um momento só nosso.../um momento eterno de magia”, “Vale a pena viver.../pela magia.../pelo teu olhar” Sente-se que o poeta vive “Um sonho acordado, / um espaço sem tempo, / num envolvimento infinito...” Por vezes sentimo-nos a seu lado, desejosos de “Acreditar no amor para todo o sempre / num destino traçado por Deus / como uma linha sem curvas...”.
Não restam dúvidas de que a leitura destes apaixonados poemas atingem o mais insensível leitor no profundo âmago dos sentidos, deixando-lhe na alma a contagiante nostalgia do amor, ateando-lhe a lembrança de amores inconseguidos ou de paixões inconsequentes. A magia poética ilumina a memória num contagiante fascínio pela dialéctica psicossomática do Eu em simbiose com o Nós, perpassando nessa relação intimista um certo dualismo ascético, por vezes místico, muito peculiar nos analistas da mente que vêem no amor o exclusivo refrigério da vida. “Quero continuar a sonhar / não me acordes / e sonha também...”
O livro aí está, pronto a ser partilhado, sobretudo por aqueles que ainda se sentem vivos para sonhar com o amor e experimentarem o calor de uma verdadeira paixão. O mistério da vida consubstancia-se precisamente na descoberta da essência do amor.