terça-feira, 4 de julho de 2023

A Primeira Guerra Mundial, o fim dos impérios na emergência do nacionalismo europeu

Passados cem anos desse desastroso conflito militar, que vulgarmente designamos por Grande Guerra, a Europa mudou muito, e em todos os sentidos. Desde logo na sua geografia política, com o surgimento de novos/velhos países, que desde sempre foram nações, reclamantes da sua identidade, da sua independência, do seu território e, sobretudo, da sua história. Foi a consciência e memória do passado nas pequenas nações, que suscitou a revolta contra a opressão imperialista dos grandes potentados industriais, escudados em colossais forças militares, que desencadearam na Europa a conflagração de revoluções sociais e um consequente choque de interesses coloniais internacionalistas. A Grande Guerra acendeu-se na fogueira do imperialismo e apagou-se na heróica bandeira da democracia e da liberdade. Porém, não se extinguiu… As divergências permaneceram no campo político e económico, o imperialismo dissipou-se, mas subsistiu o colonialismo. E no rescaldo das decisões mal dirimidas adivinhava-se a todo o instante o reacender de uma nova guerra, que permitisse aos vencidos, sobretudo ao orgulhoso povo germânico, obter a desforra da aviltante derrota a que ficara sujeito no «Tratado de Versailles».
Militares de cavalaria do CEP, marchando em Alcântara em
direcção ao porto de embarque de Lisboa, em 1917
No período que precede o deflagrar da I Guerra Mundial há que ter em conta a paradoxal circunstância da Europa estar a viver um período de prosperidade. A indústria do aço progredia incontrolável e avassaladora. A euforia tecnológica desenvolvia-se em todos os sectores, nomeadamente na indústria bélica. As descobertas científicas alemãs, sobretudo na Química, desenvolveram novas indústrias nas áreas da saúde e do medicamento, nos fertilizantes e adubos, nos pesticidas e venenos. A Alemanha era, em todos os sentidos, a maior potência da Europa, em concorrência directa e em franca oposição aos interesses do velho império britânico.
Todavia, restavam do passado várias questões mal dirimidas em sede da diplomacia ocidental, as quais podemos apontar como responsáveis pelo deflagrar do conflito:
  1. - A disputa imperialista entre os países europeus por territórios de África e da Ásia;
  2. - A Alemanha tornou-se numa grande potência, ameaçando a Inglaterra até aí considerada um potentado europeu.
  3. - O nacionalismo cresceu e valorizou-se como ideologia entre os povos que não possuíam autonomia territorial e política, gerando-se conflitos, especialmente na região das Balcãs.
  4. - O imperialismo dominava a cultura ocidental e ameaçava o equilíbrio mundial.

Razões que desencadearam a primeira guerra mundial:

Dentre o variado leque de justificações, que do ponto de vista político socioeconómico, podem ter estado na origem do conflito, destacamos aqui algumas das mais importantes, que poderão ter contribuído para a abertura das hostilidades:
  • A guerra “franco-prussiana” atribuiu à Alemanha os territórios da Alsácia-Lorena, muito ricos e importantes para a França.
  • A Alemanha superara a Inglaterra na produção de aço, na mecanotecnia e na indústria química, tornando-se na maior potência industrial europeia.
  • A Rússia era inimiga dos impérios Otomano e Austro-húngaro, porque sustentava o pan-eslavismo, isto é, a unificação dos povos eslavos que integravam esses dois impérios. A Sérvia estava do lado da Rússia porque pretendia unificar os Balcãs.
  • A “paz armada” ou guerra latente, justificava a formação de alianças militares.
Arquiduque Francisco Fernando da Áustria e sua esposa,
assassinados em Sarajevo a 28-6-1914
As afinidades políticas e os interesses económicos, agenciados pelas principais potências europeias, explicam a formação de alianças militares que resultaram na constituição de dois blocos antagónicos: a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente. A primeira, formada em 1882, era composta pela Alemanha, Itália, e os impérios Austro-Húngaro e Turco-Otomano; enquanto a segunda, fundada em 1907, era constituída pela França, Inglaterra, Rússia e Sérvia. As rivalidades históricas e os sentimentos imperialistas tornaram as relações diplomáticas e o trato entre os mercados cada vez mais irreconciliáveis e distantes.
Desde os tempos da Reforma, que dividiu a cristandade, que a Alemanha se tornara inimiga da França, e por arrastamento da  Inglaterra anglicana. Por sua vez, divergências mercantis e litígios territoriais, tornaram a Rússia inimiga dos impérios austro-húngaro e Otomano. Por essa razão a Alemanha juntou-se aos austro-húngaros e à Itália, que depois mudou de lado, passando para a Tríplice Entente. A França, a Inglaterra e a Rússia, três impérios aparentemente incompatíveis, pelas suas históricas idiossincrasias culturais, religiosas, e coloniais, acabariam por dar as mãos numa apressada aliança militar, a Tríplice Entente, para fazer frente ao pangermanismo, uma perigosa ideologia nacionalista que pretendia unificar as nações do eixo europeu. A Sérvia simpatizava com a causa do pan-eslavismo que a colocava ao lado da Rússia, implicitamente contra o império austro-húngaro, que entrara numa escalada de anexação dos estados balcânicos, em conexão com os interesses territoriais da Tríplice Aliança. 
Faltava à eclosão da guerra uma causa próxima, que surgiu a 28-06-1914 com o episódico assassinato, em Sarajevo, do herdeiro do trono austro-húngaro, Franz Ferdinand, morto por um estudante nacionalista sérvio. As declarações de guerra sucederam-se em catadupa. Causou admiração o entusiasmo dos voluntários que se ofereciam para a guerra. Isso deveu-se ao nacionalismo que despontara na Europa. Mas também aos imperialismos, que se consubstanciavam no pangermanismo alemão e no pan-eslavismo russo.
Mapa das alianças formadas no início da I Guerra Mundial,
de amarelo a Tríplice Aliança, os impérios do Eixo europeu
Começava assim a I Guerra Mundial, um conflito há muito esperado por causa das incontornáveis dissensões entre os nacionalismo emergentes das repúblicas novas, e os imperialismos dominantes das monarquias velhas. Em 1915 a Itália entrou na guerra ao lado da Tríplice Entente. Mas foi enganada pela Inglaterra, que no fim não lhe deu os territórios prometidos em África. Compreende-se, agora, as razões que levaram Mussolini a preferir, mais tarde, aliar-se com Hitler.
A Grande Guerra dividiu-se em duas partes distintas: a fase dos movimentos e o longo período das trincheiras.
Na primeira, a Alemanha progrediu imparável até às portas de Paris. No início parecia imbatível, mas passado algum tempo o avanço militar paralisou por falta de meios logísticos, sobretudo combustível para o transporte de equipamentos bélicos. Para não recuar, o exercito alemão resolve resistir na frente de ataque escavando trincheiras. Era o fim da guerra dos movimentos, e o início da paralisante guerra das trincheiras. Centenas de milhares de soldados permanecerem, atolados na lama das trincheiras, onde foram pasto de parasitas (piolhos e percevejos), de fungos e bactérias, ao longo de três penosos anos, sofrendo momentos de angústia e de miséria, em condições infra-humanas. Uma guerra com mais de 10 milhões de mortos, milhares de feridos e mutilados. Um trauma europeu, sobretudo para a França, que foi a principal vítima do conflito, com milhões de mortos e feridos, cidades destruídas pelos bombardeamentos, e uma economia de rastos.
Tropas americanas combateram ao lado da Tríplice Entente,
no auxílio da França arrasada pelos alemães
Em 1917, ocorreram dois factos muito importantes para o desfecho da guerra: em Outubro deu-se a revolução russa, cujo novo governo chefiado por Lenine assinou um tratado secreto, designado “Glasstov”, para sair da guerra, e compensar a Alemanha com a oferta de alguns territórios. O segundo acontecimento decisivo foi a entrada dos EUA na guerra, pois tudo levava a crer que a Alemanha acabaria por vencer o conflito. Começaram por enviar ajuda médica, depois mantimentos e, por fim, numerosos contingentes militares. A adesão americana foi decisiva para a vitória da Tríplice Entente na Grande Guerra.
A 11 de Novembro de 1918, as partes beligerantes assinaram o armistício que poria termo à primeira guerra mundial. O presidente dos EUA, Woodrow Wilson, apresentou uma proposta de resolução da guerra, que ficou conhecida como os 14 pontos de Wilson. Esse documento sugeria que os países diminuíssem os seus arsenais bélicos, optassem por políticas mais transparentes, e, sobretudo, que a guerra terminasse sem vencedores, para que os países contendores assinassem um acordo de paz, sem culpar nem punir ninguém. Sugeria ainda a criação de um órgão internacional, designado por “Liga das Nações”, que asseguraria a manutenção da paz no mundo.
Essa proposta não foi totalmente aceite, porque as nações vencedoras queriam subjugar a Alemanha e obrigá-la a pagar pesadas indemnizações de guerra. Para o efeito, as nações vencedoras reuniram-se em Paris, onde subscreveram o «Tratado de Versailles», que pôs fim à primeira guerra mundial. A humilhação dos vencidos foi tão execrável que viria a constituir-se no principal motivo para a deflagração da Segunda Guerra Mundial.
O «Tratado de Versailles» determinava que a Alemanha era a única e exclusiva culpada da guerra. Definia que a Alemanha não podia ter um exército com mais de 1000 soldados, nem produzir armas, nem tanques, perdendo as colónias que tinha na Ásia e na África. Devolveu-se à França o território da Alsácia e da Lorena. Além disso, a Alemanha perdia todas as suas minas de carvão e de ferro, tendo ainda de pagar avultadas indemnizações aos países vencedores.
A Alemanha em 1919 viu-se compelida a assinar o Tratado
de Versailles, em termos bastante desfavoráveis

Com base no «Tratado de Versailles» criou-se também a Liga das Nações, com sede em Paris. Apresentava-se como órgão internacional para o estabelecimento da paz no mundo, desiderato que nunca logrou alcançar. Os EUA pretendiam que a sede da Liga fosse em Nova York, pelo que se recusaram a participar. Isso condenou a organização ao fracasso. Foi para obstar a essa recusa e a idêntico fracasso que, em 24 de Outubro de 1945, na sequência da II Guerra Mundial se fundou a ONU - Organização das Nações Unidas.
Acresce dizer que Portugal entrou oficialmente na Grande Guerra, como beligerante, apenas em 9 de Março de 1916, em face do aprisionamento de dezenas de navios alemães acostados em portos lusos. Esta decisão foi um golpe político do governo republicano para obrigar a Alemanha a declarar-nos guerra. Na verdade, Portugal detinha o estatuto de neutralidade, e assim se manteve até 1916. Todavia, desde o início da guerra em 1914 que as tropas alemãs vinham sistematicamente atacando as nossas colónias africanas. As forças militares estacionadas em Moçambique, defendiam-se tenazmente, sem, contudo, haver qualquer declaração oficial de beligerância emitida entre as partes. Os lideres dos três principais partidos republicanos, sob a égide do Dr. Afonso Costa, subscreverem um pacto de união republicana, para salvar a pátria de uma possível agressão estrangeira (como a que estava a suceder nas colónias) e, sobretudo, para salvar o próprio regime, obrigando o aliado britânico a aceitar a nossa participação no conflito, reconhecendo as outras nações aliadas na guerra, a existência da novel República Portuguesa.
Ao abrigo do ancestral «Tratado de Windsor», subscrito no séc. XIV por D. João I, que ainda hoje se mantém em vigor – razão pela qual é o mais antigo tratado militar do mundo – o governo republicano mandou organizar o CEP-Corpo Expedicionário Português, que rumou aos campos de batalha da Flandres, onde chegou a alcançar um efectivo de 200 mil homens. Na frente ocidental, espraiada pelos campos franceses e belgas, bateram-se os nossos soldados com bravura e coragem, apesar de mal abastecidos, deficientemente equipados e literalmente abandonados, a partir de 1917, pelo governo germanófilo de Sidónio Pais. Durante mais de um ano, o CEP não recebeu apoios logísticos, nem o indispensável revezamento das suas tropas, o que contribuiu para o descrédito das chefias e para a depressão moral das tropas entrincheiradas no front ocidental. Percebe-se agora o porquê do presidente Sidónio Pais ter sido assassinado no ano seguinte, e o porquê do fracasso das nossas tropas na tristemente célebre Batalha de La Lys, onde se distinguiu a figura mítica desse intrépido soldado que dava pelo nome de Aníbal Augusto Milhais, cujos numerosos feitos de bravura e heroísmo lhe valeram o epíteto de “soldado Milhões”.
Aníbal Milhais,o "soldado milhões", herói
nacional, ostentando o colar da Torre e Espada

A participação de Portugal na Grande Guerra teve o importante efeito de compelir as principais nações europeias, quase todas monárquicas, a reconheceram a existência do regime republicano em Portugal. Por outro lado, conseguiram-se manter as colónias africanas praticamente intactas, e a salvo da rapacidade britânica e germânica. Mas tudo isso teve um custo que não justificou os resultados efectivos dessa participação, que foram em todos os capítulos muito dolorosos e profundamente lamentáveis. Do ponto de vista económico-financeiro foi desastroso, pois aumentou exponencialmente a dívida pública, causando graves problemas sociais nos diversos sectores da vida laboral. Com as finanças públicas nitidamente insolventes, também a vida política, social e cultural se tornaria insustentável, sendo a dívida externa e a exaustão da fazenda uma das causas próximas da revolução militar do «28 de Maio de 1926». Do ponto de vista humano, a participação portuguesa na Grande Guerra teve consequências desastrosas, já que ascendeu a 40 mil mortos, causando uma tremenda sangria na vida social, na organização do trabalho, tanto nos meios rurais como na indústria urbana, e sobretudo no sentimento dos portugueses.
Basta lembrar a existência em França do cemitério militar de Richebourg l´Avoué, onde se encontram sepultados 1.831 soldados caídos em combate, dos quais 238 corpos se encontravam de tal maneira estropiados que não foi possível identifica-los, razão pela qual na sua lápide funerária se encontram registados como “português - desconhecido”.
Tumulação do soldado desconhecido, na Sala do
Capítulo do Mosteiro da Batalha, em 10-04-1921
 

No final da guerra o balanço das perdas humanas foi desastroso: dez milhões de mortos, 20 milhões de feridos, estropiados e gaseados. A Alemanha exaurida, a França devastada pelos combates e bombardeamentos, os impérios russo, alemão, otomano e austro-húngaro colapsaram e fragmentaram-se em novos países. Apesar de todas as desgraças, há que ressaltar alguns factores que resultaram positivos. A emancipação da mulher foi o mais importante. O recrutamento militar fez escassear a mão de obra, surgindo em alternativa a mulher operária, nas fábricas, nos serviços, nos hospitais, e até na retaguarda da guerra. A igualdade e os direitos da mulher no trabalho e na vida económica da sociedade tornaram-se numa evidência que o tempo se encarregaria de demonstrar. O imprescindível papel da mulher na vida social e pública, viria a reafirmar-se vinte anos depois com a deflagração de novo conflito mundial.
No rescaldo da guerra, outras consequências relevantes não devem ser descuradas. Desde logo ao nível da Medicina, com novos medicamentos e importantes avanços na Química e na Farmacopeia. No trabalho, a divisão de funções, a linha de montagem, o Taylorismo, os movimentos sindicais e as ideologias políticas. Os movimentos artísticos na pintura e na música, com o jazz por exemplo. No teatro e sobretudo no cinema, com a cor e o som. Nos transportes, com as epopeias aéreas de Charles Lindbergh e até de Gago Coutinho. Enfim, surgiram mudanças nos hábitos, nos costumes e nas mentalidades. A grande surpresa são os loucos anos vinte, que todos conhecemos da literatura americana e do cinema, cujo expoente se pode fixar na obra O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, que foi soldado do exército americano aquando da primeira invasão de 1917. Além do Jazz e da dança, cuja influência afroamericana era indesmentível, acresce ressaltar a música de George Gershwin para a Broadway, a revolução automóvel pela Fordização da indústria construtora, a motorização das máquinas agrícolas ou o aumento da velocidade dos automóveis, que deu origem aos autódromos e às loucas corridas, de que são exemplo as 500 milhas de Indianápolis. Acima de tudo isso estão as relações humanas, com o amor livre e o namoro espontâneo, a mostrar-se como expressão da liberdade conquistada no pós-guerra. De todos estes excessos resultaria a crise bolsista de 1929, a falência de bancos e empresas, o desemprego, a austeridade, e por fim o nazi-fascismo dos fatídicos anos que precederam a segunda guerra mundial.
Em suma… com a assinatura do Tratado de Versailles, em 1919, pode dizer-se que a democracia venceu em toda a linha. O mapa da Europa rejuvenesceu de vida política e de novos mercados económicos. Os EUA obtiveram o estatuto de primeira potência mundial, que conseguiu manter até hoje, mercê da sua presença militar nos principais conflitos mundiais. A Europa actual, sobretudo no que respeita ao seu mapa político, é muito semelhante ao que resultou do fim da primeira guerra mundial.
A primeira guerra mundial, alterou completamente a nossa percepção da vida social cultural e económica do planeta. Mas permanecemos hoje, como no passado, imbuídos do mesmo espírito Euro-centrista, confiantes na ocidentalização do primeiro mundo. Essa é uma visão deturpada da realidade. A vida é hoje global, mais dependente dos interesses económico do que das influências políticos. Os potentados económicos têm de procurar encontrar o justo equilíbrio e o caminho da paz. A próxima guerra mundial poderá fazer-nos regressar às cavernas e acabar com a civilização, tal qual hoje a conhecemos.

[Resumo da conferência que proferi, em 9 de novembro de 2018, na sessão de encerramento do Ciclo «100 anos depois - Saúde e Cultura» organizada pela Universidade do Algarve].