quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Um quadro da vida lisboeta nos anos vinte - JORGE SAN-BASILIO UM SAMBRASENSE DESCONHECIDO

Este artigo revela a boémia jornalística na Lisboa nos anos vinte do século passado, quando a República vivia numa situação de conturbado confronto entre os que defendiam as ideias conservadoras do monarquismo católico e os progressistas republicanos.
Neste ambiente de instabilidade política, em que a República dava os seus últimos passos, emigrou do Algarve para Lisboa um modesto plumitivo da província. Chamava-se Jorge de San-Basílio, e nas redações dos vespertinos lisboetas se fez gente.
Mas primeiro teve de comer o pão que o diabo amassou. Trabalhou no comércio, foi empregado de escritório, até que, por fim, conseguir realizar o seu sonho: ser jornalista. Foi amigo de poetas, artistas e escritores, políticos, anarquistas e aristocratas, tuteando com a malta da Lisboa fadista.
A sua prosápia, ar soberbo e superior, elegância de gesto, finura no trato e argúcia de argumento, conferiam-lhe uma presença de espírito a que os sobejos da causa monárquica se faziam rogados. Nunca encontrei justificação para o seu conservadorismo, nem para a sua fidelidade monárquica. O certo é que nos anos da guerra – em que o regime republicano se faz reconhecer internacionalmente e se afirmava irreversível aos olhos da Europa – o Jorge San-Basílio aparece pela primeira vez ligado à política. Fez-se sidonista.
Infelizmente a sua vida transformou-se num drama, cujo desfecho deixou os seus camaradas da imprensa lisboeta bastante pesarosos e sem explicação, nem justificação, para tão chocante desenlace.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A história do Biquíni e a Praia de Monte Gordo

Costuma dizer-se, com fantasiosa imaginação, que a criação do biquíni teve origem no racionamento de tecidos e no baixo poder de compra das mulheres, durante o período da II Guerra Mundial. Se o objetivo era reduzir custos e racionalizar recursos, nada mais inteligente do que reduzir o tradicional maillot de praia aos seus dois elementos essenciais.
Na verdade, foi no decurso dos derradeiros dias da guerra, que um francês, engenheiro de automóveis, de seu nome Louis Réard, desenhou o traje de praia feminino na sua forma mais reduzida, criando assim um novo modelo, a que deu o nome de «biquíni». Lembrou-se dessa designação porque a sua criação era uma verdadeira bomba atómica no mundo da moda.
Brigitte Bardot, em 1953, na praia de Cannes, em bikini
Ora, como dias antes, em Julho de 1946, os Estados Unidos haviam realizado testes nucleares na Micronésia, destruindo por completo o Atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, pareceu-lhe que esse nome poderia ser adotado pelo seu novo modelo de praia, como uma forma de homenagem, mas também de protesto, pela destruição do ambiente e pelo uso de armas de extermínio maciço.
Todavia, o projeto era tão ousado que nenhuma modelo, habituada a desfilar nos certames da moda internacional, se dispunha a usá-lo em público. Apesar de habituadas ao mundanismo da moda, as jovens modelos negaram-se a exibir o biquíni por lhes parecer de uso indecoroso e despudorado.
Para contrariar essa espécie de boicote moral, Louis Réard teve de contratar uma stripper, de corpo escultural e sem pruridos éticos, chamada Micheline Bernardini, que se dispôs a usá-lo num desfile de moda, junto a uma piscina, em Paris. Nesse dia, 11 de julho de 1946, nascia oficialmente o biquíni. O impacto visual do desfile parisiense teve um enorme estrondo na imprensa internacional, cujo escândalo social foi avassalador, tornando-se de facto numa verdadeira «bomba atómica» lançada sobre o mundo da moda.

Imoralidade e pudor

Não se pense, porém, que o biquíni alcançaria um êxito rápido e quase imediato, como é costume acontecer na moda. Bem pelo contrário. A maioria das nações do mundo livre reprovou o seu uso, restringindo-o às piscinas públicas e a certas praias menos frequentadas. E não se pense que hoje é muito diferente, porque em muitos países árabes é proibido o uso do biquíni nas praias, como se tratasse de uma afronta ao pudor e aos bons costumes corânicos.
Curiosamente, no primeiro concurso de Misse Mundo, realizado em Londres em 1951, proibiram-se as concorrentes de sequer tentarem experimentar o uso de biquíni no desfile final do certame. O argumento sustentado pelos membros do júri era, mais uma vez, o da preservação da moral e dos bons costumes.
Para que o mundo desse esse passo em frente precisava-se de uma mulher corajosa, que não tivesse medo de enfrentar a oposição dos mais conservadores e até da própria igreja, que contestava os excessos e liberdades da moda. Essa mulher, corajosa e desafiante, surgiu em 1953, durante o Festival de Cannes, na figura da jovem e deslumbrante atriz francesa Brigitte Bardot, que desceu à praia daquela famosa estância turística com um revolucionário biquíni, desenhado com motivos florais, como se a própria Eva voltasse de novo ao convívio dos mortais pecadores.
Brigitte Bardot, na praia de Cannes, em bikini
A bela diva do cinema, tem hoje 84 anos de idade. Está há muito retirada dos olhares públicos. Lembramo-nos dela pela sua deslumbrante beleza física, pela sua luta contra o uso de peles no vestuário da moda, pela sua cruzada na proteção dos animais domésticos e selvagens. Mas certamente já poucos se lembrarão que ela foi a primeira mulher a usar um biquíni em público, desafiando os falsos pudores desta sociedade de hipócritas sibaritas, em que ainda hoje vivemos.
A partir de então, as mulheres de todo o mundo passaram a usar os provocantes biquínis, cada vez mais curtos e ousados, para afirmarem a sua liberdade e a sua independência, sem medo de serem, por isso, acusadas de atrair a si os olhares concupiscentes dos homens.
O que talvez poucos saibam é que a atriz sueca, Ingrid Bergman, esteve em Agosto de 1963 na praia de Monte Gordo, numa viagem de surpresa ao Algarve. Instalou-se no conhecido Hotel Vasco da Gama, então com cinco estrelas, e desceu à praia com um provocante biquíni. Quando se soube que a actriz do filme «Casablanca» estava na praia e de biquíni, juntou-se logo um magote de gente em silêncio, mas de boca aberta. Nunca os pescadores de Monte Gordo, nem tão pouco os veraneantes, quase todos alentejanos, tinham visto uma mulher, assim, tão bela e tão provocante.
A deslumbrante apaixonada de Humphrei Bogart, no inesquecível «Casablanca» – considerado um dos melhores filmes da história do cinema – já então premiada com dois óscares de melhor actriz, acabara de filmar nesse ano, para televisão sueca, a conhecida peça «Hedda Gabler», um clássico do século XIX da autoria de Henrik Ibsen. Nela encarnava a personagem de Hedda, uma mulher fútil e ambiciosa, que casara por dinheiro com um homem que nunca amara. O desempenho desse papel deixou Ingrid bastante extenuada, pelo realismo com que interpretou as pretensões frustradas da personagem, cuja infelicidade originou, na peça, a depressão e consequente suicídio.
Na vida real, Ingrid Bergman passava também por uma situação desconfortável. Primeiro foi a relação amorosa, em 1949, com o célebre realizador italiano, Roberto Rossellini, quando ambos eram casados e tinham filhos. Depois foi o escândalo, que abalou o mundo do cinema, quando ambos foram considerados adúlteros. E nessa condição tiveram o primeiro filho.
Em 24-5-1950 casaram-se, e tiveram mais dois filhos. Essa paixão, nascida do cinema, durou até 1957, ano em que se divorciaram. Em 1958 a diva de Hollywood casou-se com o produtor de cinema Lars Schmidt, seu compatriota, com quem viajou em 1963 pela costa mediterrânica até ao Algarve.
Acrescente-se que a década de sessenta ficou marcada em Hollywood pelo género beach movie, que trouxe para o grande ecrã o biquíni como símbolo da cultura jovem, que via nas praias da Califórnia, e na música dos Beach Boys, a expressão natural da sua liberdade. Em 1963 estreou-se o filme «Beach Party», o primeiro dos cinco realizados por William Asher, nos quais se consagrou o uso do biquíni como ícone da liberdade feminista.

Multada por usar biquíni

Nunca se soube ao certo, por que razão Ingrid Bergman viajou até ao Algarve naquele verão de 1963. Pensa-se que o marido veio à descoberta dos paraísos naturais do sul peninsular, atraído pela intensa luz da orla costeira, considerada mais forte do que a de Hollywood.
Nessa altura, já se falava nas deslumbrantes praias do Algarve, de areia fina e dourada, de águas límpidas e tépidas. Pela mão de jornalista estrangeiros, e sobretudo de artistas consagrados, como Cliff Richard, Olivia Newton-John, ou Bruce Welch guitarrista dos The Shadows, que tal como outras figuras da pop music havia comprado casa em Albufeira.
Ingrid Bergman, na praia com os filhos, usando bikini
A partir de 1965, com a inauguração do aeroporto de Faro, foram dezenas de figuras públicas da música e do cinema que visitaram o Algarve, sobretudo a Praia da Rocha, a costa de Lagos, e a castiça praia dos pescadores em Albufeira.
Na imprensa estrangeira dizia-se que Albufeira seria em breve a nova Saint Tropez de Portugal. E o Café Bailote era o fulcro internacional da arte e da cultura.
Ingrid Bergman quando esteve em Monte Gordo tinha 48 anos, e era ainda uma mulher de deslumbrante beleza, quando desceu à praia em provocante biquíni. Não sabia, porém, que estava num país avesso a esse tipo de liberdades. O cabo do mar, cioso do seu pequeno poder, abeirou-se da bela actriz, munido do seu caderninho de multas, e escreveu: «indecência». Entregou-lhe o papelinho e acompanhou-a até à recepção do Hotel Vasco da Gama, onde lhe foi explicado, em inglês, que havia sido multada por usar biquíni em público.
O valor da multa era comportável, apenas 2,5 escudos, ou vinte e cinco tostões, como era uso dizer-se na época. Na realidade, era inferior ao custo de um bilhete de cinema. Mas não era o preço da multa que mais importava. Era o vexame de ser multado. E nesse aspeto a acriz sentiu-se ofendida, sobretudo pelo atraso de mentalidades e pela falta de liberdade sentida no país.

O biquíni remonta à Antiguidade Clássica

Mas, será o biquíni tão assim recente como afirmam os designers da moda? Não tenho a certeza se já existiria, ou não, no tempo dos romanos uma indumentária, talvez mais para uso desportivo do que recreativo, semelhante ao que hoje designamos por biquíni.
Em frescos de Pompeia encontraram-se várias pinturas de mulheres a exercitarem-se num ginásio, praticando pugilato e luta greco-romana, usando apenas duas peças de couro para taparem as partes íntimas. Isto faz supor que as mulheres na antiguidade clássica já usavam algo semelhante aos biquínis modernos, certamente nos banhos públicos e saunas privadas, mas talvez também durante a prática dos diversos jogos e competições em que as mulheres tinham o direito de participar.
Este é um assunto que não domino, nem posso asseverar que o uso das duas peças de reduzido vestuário, a que chamamos hoje biquíni, era já usado na antiguidade. O que posso garantir é que na localidade de Piazza Armerina, na Sicília central, foi descoberta a vila imperial romana de Casale, com dezenas de mosaicos de uma beleza esplendorosa, retratando cenas da vida quotidiana no século IV depois de Cristo. Em alguns desses mosaicos vêm-se várias jovens romanas, usando apenas duas peças muito semelhantes ao atual biquíni.
Mosaico da Villa romana de Piazza Armerina, vendo-se
 duas mulheres supostamente em bikini
Neles se observa que algumas jovens estavam a praticar luta, creio que pugilato – uma modalidade desportiva de tradição olímpica – mas noutros parecem estar a desfilar num cortejo religioso, escoltadas por outras mulheres, cobertas com tecidos transparentes, que talvez fossem as intocáveis vestais.
Sem querer especular, julgo que algo semelhante ao biquíni já era usado na civilização romana pelas mulheres que frequentavam os banhos públicos, então designados por Thermae (de cujo étimo latino deriva a palavra Termas), sendo famosas em Roma as termas de Caracalla, de Nero, de Diocleciano, de Tito e de Trajano, frequentadas diariamente por milhares de patrícios de ambos os sexos, num cenário de majestosa beleza artística, rodeada de colunas e estátuas em mármore de Carrara.
As termas públicas repartiam-se por diferentes espaços, para que os seus utentes usufruíssem de sucessivos estágios de temperatura nas águas.
Assim, passavam primeiro pelo Frigidarium, onde os utentes se banhavam em água fria, passavam depois ao Tepidarium, de águas mornas, até chegarem ao Caldarium onde as águas quentes proporcionavam o relaxamento muscular.
Pormenor do mosaico romano
Associada ao uso medicinal da água e à sua fruição térmica, nasceu a ideia clássica do SPA, que mais não é do que uma sigla, cujo desdobramento significa salus per aquam, uma expressão latina que se traduz literalmente como «saúde pela água».
As mais ricas e poderosas famílias romanas, que se estabeleceram ao longo do imenso império, trataram de recriar nas suas villae residenciais um equipamento termal, de que ainda hoje subsistem restos arqueológicos visíveis um pouco por todo o nosso país.
Pela imagem do mosaico da Villa imperial romana de Piazza Armerina prova-se que na antiguidade clássica as mulheres usavam uma espécie de biquíni nas suas práticas físicas de ginásio, e, muito provavelmente, na natação. A diferença entre o passado e o presente, está na concepção e fruição do espaço da orla marítima que derivou na evolução dos tempos para o seu uso terapêutico e para o lazer.
A talassoterapia, isto é, a frequência das praias para recuperação da saúde e tratamento de doenças, foi uma das maiores descobertas da medicina do século XIX. Mas, na centúria seguinte, a praia e o mar transformaram-se num espaço de lazer, convivência e divertimento, no qual o biquíni ainda hoje impera, apesar das alternativas, inclusivamente o naturalismo, não terem tido o sucesso que muitos auguravam.

terça-feira, 14 de maio de 2024

A iliteracia intelectual – um paradoxo da modernidade

Neste último Natal de 2023 decidi fazer um teste sobre a nossa iliteracia intelectual, com base na retoma de uma tradição muito antiga na cultura ocidental. O teste foi muito simples e não teve outro propósito senão o de avaliar a capacidade de domínio da escrita manual, do respeito pelas tradições e das relações sociais afetivas. O teste era apenas qualitativo, e consistiu no envio de postais de Natal, através do correio, aos amigos que considero intelectualmente evoluídos, emotivos e sentimentais. O que deles aguardava era uma retribuição semelhante, e pela mesma via, tal como fazíamos no passado, ainda recente. Essa liberdade de pensar, de criar e de agilizar a escrita, perdeu-se nos anos noventa com a imperialização da informática e da telecomunicação. A máquina subjugou-nos ao ponto de já nem sabermos exteriorizar a liberdade através dos sentimentos, porque deixamos, sob a falsa ideia do progresso, que a Inteligência Artificial nos substituísse, não só no simples ato de produzir, como também no de pensar e sentir.
Grav. 1 - Primeiro postal ilustrado, Londres, 1843

Quem me está a ler já percebeu que em epígrafe existe um contrassenso: a iliteracia é uma defetividade dos potenciais analfabetos. Devo, por isso, esclarecer que, pessoalmente, entendo que quem sabe ler e escrever, mas é insensível à leitura e à escrita, não deixa de ser analfabeto. No velho princípio aforístico de que se perde o que se não usa.
Como os postais natalícios são uma tradição muito comum na nossa cultura, fácil se torna comprovar a desativação da mensagem manuscrita, o que dentro da arqueologia dos sentidos representa a perda da mão, como objeto da escrita e da transmissão dos afetos, da sensibilidade, da amizade e sobretudo do Saber.
Significa isto que a epistolografia – uma área que foi no passado uma fonte da história biográfica – está morta, na generalidade dos casos, apenas subsistindo ao escasso nível das mentes mais idosas, e, talvez por isso, mais infoexcluídas. A iliteracia digital é atualmente considerada como uma espécie de analfabetismo moderno. Ou seja, inverteu-se o ónus da culpa. Ignorante e desatualizado é aquele que não trabalha com os iPhones de última geração ou o que não tira o melhor rendimento dos tablets e Notebooks (computadores portáteis).
Grav.2 Postal de Natal, Londres 1848, Willi am Maw Egly
O teste do postal de Natal

O exercício prático do meu teste de aferição sobre a atual iliteracia intelectual consistiu no envio de 33 postais ilustrados, à moda antiga, isto é, à inglesa, uma face impressa e outra escrita. A razão deste teste prende-se com a revolução digital que facilitou a comunicação encurtou distâncias e originou a globalização, não só da economia e dos mercados financeiros, como também da educação e da cultura, notando-se, todavia, um abaixamento intelectual ao nível do primeiro mundo. As novas tecnologias incrementaram o alcance e desenvolvimento da ciência, mas diminuíram a concentração, o esforço e o sacrifício da pesquisa por parte dos mais jovens, sobretudo dos estudantes. Nos adultos notou-se a perda da leitura e do uso da escrita manual. A sociedade, na sua hierarquização por grupos socioprofissionais, nivelou-se por baixo, perdendo qualidade e exigência devido à substituição do trabalho, ainda que especializado, pela máquina e pela Inteligência Artificial. E isso vê-se claramente na perda das tradições, nos usos e costumes etnográficos e na antropologia cultural, que vem perdendo os seus padrões naturais em prol de uma homogeneização assintomática da civilização ocidental.
Só as elites parecem reservar para si as tradições do passado, no sentido de salvaguardarem as suas raízes e os seus valores morais. Assistimos hoje a uma inversão na cultura ocidental, cujas tradições têm sido paulatinamente caldeadas noutras oriundas de diferentes quadrantes do mundo.
Grav. 3 - Laura Costa, «Chegada dos Pastores»

Origem histórica do postal de Natal

Já agora convém esclarecer o postal ilustrado de Natal, um dos mais apreciados padrões da cultura cristã ocidental, teve a sua origem histórica em Inglaterra, no ano de 1843, por causa de um simples gesto de cortesia que se transformou numa ideia genial, replicada por sucessivas gerações no mundo inteiro. O postal natalício é, aliás, uma das poucas tradições transversais à humanidade.
Com efeito, Sir Henry Cole, então director do South Kensington Museum, hoje designado como Victoria and Albert Museum, em Londres, costumava escrever na quadra natalícia dezenas de cartas aos familiares e amigos a desejar-lhes Boas Festas. Todavia, em dezembro de 1843, assoberbado de trabalho não se apercebeu que estava encima do Natal. Concluiu que não dispunha de tempo para cumprir as suas acostumadas obrigações de cortesia. Mas, num rebate de genialidade, ocorreu-lhe uma solução, rápida e eficaz. Pediu ao seu amigo, o pintor John Callcott Horsley, que desenhasse e pintasse num pequeno pedaço de cartolina, no tamanho 9x13cm, a sua família reunida à mesa da consoada, a brindar ao familiar ou amigo ausente naquele Natal. Aprovado o desenho foi a correr a uma tipografia onde encomendou dezenas de cópias a cores, com a simples mensagem «Merry Christmas and a Happy New Year to you» [Feliz Natal e um Próspero Ano Novo], deixando o verso em branco para escrever o nome e endereço do destinatário. Impõe-se, porém, salientar que ladeando a feliz cena do brinde, ao centro, com um copo de vinho (talvez do Porto), o artista incluiu duas mensagens de caridade: vestir os andrajosos e alimentar os pobres. [ver gravura 1]
Como na tipografia sobraram alguns postais decidiram colocá-los na montra à venda pelo módico preço de um xelim cada. Venderam-se mais de mil, e só não se imprimiram mais porque já estavam quase encima do dia de Natal. O certo é que dessa edição prínceps apenas se conserva pouco mais do que uma dezena de exemplares, devido ao zelo dos seus destinatários. Por ser uma peça rara e histórica, quando surgem à venda nos leilões de artes e antiguidades costumam ser arrematados por quantias exorbitantes, acima de vinte mil libras.
O gesto de Sir Henry Cole, foi depois imitado por milhares de pessoas, tornando-se numa nova tradição natalícia. A arte da cartofilia natalícia evoluiu com o tempo, em todo o mundo e em diferentes credos religiosos, sendo desde há 180 anos uma das principais tradições culturais do mundo ocidental.
Grav.4 Postal editado pelos CTT, 1943
Adoração do Menino Jesus

A conclusão do teste

O objetivo do meu teste, estribado na simbologia do postal natalício, consistiu na comprovação de que a revolução digital emburreceu as elites e a civilização ocidental, considerada até aqui como a cultura do primeiro mundo. A leitura homogeneizou-se na “googletização” da cultura, e a escrita passou a digitar-se em código SMS, degenerando tudo isto naquilo a que os brasileiros chamam a “celularização” das relações humanas. O conceito de “googletização” significa a necessidade pelo imediato, ou a solução instantânea, mas teve como efeito prático a perda da referência e da vontade da pesquisa, o esforço da descoberta e da construção crítica. O pior de tudo isso foi a habituação à rotina, que quando interrompida ou dificultada degenera na impaciência, e na banalização da violência. Mas, esse fenómeno da violência, posso sociologicamente atribuí-lo à má distribuição da riqueza, o que nos países potencialmente ricos, embora concretamente pobres, como é o caso da Índia, do México ou do Brasil, tornou-se num verdadeiro cancro sociopolítico.
Grav. 5 Postal de Natal por Maria Keil
Não, positivamente não. Para mim o que está a verificar-se é uma perda substancial do conhecimento crítico e da vontade de questionar o Saber. Como resultado prático deste vertiginoso progresso, assistimos à subordinação das gerações jovens, principais vítimas deste hostil processo de estupidificação das massas, através da lei do menor esforço, isto é, quanto menos leres menos sabes escrever, e quanto menos escreveres menos sabes pensar. O resultado final será a sujeição generalizada à opinião veiculada e à ordem transmitida, em oposição à qual carecemos cada vez mais de capacidades mentais, de conhecimento e de reflexão crítica para podermos discordar, debater, contrariar e contestar. A banalização da violência, por estranho que pareça, deu lugar ao conformismo e à pacificação da opinião crítica, inviabilizando ou obstaculizando a contestação racional. Daí vermos que é hoje muito fácil os jovens passarem do imobilismo conformista à radicalização do exclusivismo, do extremismo à exterminação, por não possuírem meios racionalistas de aferição das circunstâncias políticas em que se acham envolvidos.
No ano passado ainda recebi alguns cartões em troca dos que enviei. Mas, este ano, tenho a triste consciência de ter recebido apenas dois cartões de retribuição. Ao invés respondem-me por email ou pelo Messenger. Os mais novos nem respondem, porque não usam sequer o Facebook, mas antes o Instagram e outras redes sociais, que eu não uso para não banalizar o raciocínio mental nem a minha consciência crítica.
A iliteracia que tem vindo a tomar conta da Europa está à vista em tudo, até nos simples postais de Boas Festas.