José Carlos Vilhena Mesquita
A rainha da beira serra algarvia comemora, anualmente, no Domingo de Páscoa, o seu mais glorioso feito histórico através de uma festa profana, que a Igreja converteu numa grandiosa manifestação religiosa. Curiosamente, as origens desta festa remontam ao século XVI, mais precisamente ao dia 25 de Julho de 1596, data em que, segundo reza a história, se verificou a invasão da cidade de Faro e seus arredores pelas tropas do duque de Essex.
Na verdade, é hoje dado como certo que, nessa data, aquele nobre militar invadiu o Algarve, após ter infligido estrondosa derrota na Baía de Cádis, a esquadra de Filipe II. Contudo, falou-se durante muito tempo que o saque, e o consequente incêndio da cidade de Faro, havia sido obra do famoso pirata Sir Francis Drake, que as más-línguas apontavam como amante da rainha Isabel I de Inglaterra, por ironia cognominada de «a Virgem».
O referido alvitre partiu do cronista algarvio João Baptista da Silva Lopes, que, nas suas Memórias Eclesiásticas do Bispado do Algarve, a páginas 345 diz o seguinte:«Em 25 de Julho de 1596, foi ella [cidade de Faro] incendiada pelos inglezes, que a accommettêrão com huma esquadra comandada por Francisco Drake, sendo governador do Algarve Rui Lourenço de Távora, e Bispo D. Fernando Martins Mascarenhas, talando e assolando tudo quanto encontrárão até á Aldêa de S. Braz, aonde se diz que chegarão, escapando do incêndio apenas a igreja de S. Pedro, e a da Misericórdia. Então se consumirão os cartórios e livros antigos tão interessantes para a História; consta, por tradição, que boa parte da livraria do Bispo D. Jerónimo Osório, roubada nesta occasião, fora levada para a Universidade de Oxford, onde existe.»
Todavia, sabemos hoje que a invasão não foi chefiada pelo «corsário negro», mas antes pelo duque de Essex, que, para além de incendiar a cidade, assaltou, de facto, a biblioteca que pertenceu ao citado bispo, e famoso humanista, depositando-a depois na universidade de Oxford. Contudo, nem toda a biblioteca foi roubada, pois que aquele nobre inglês, como não era pessoa muito ilustrada, preferiu a beleza das encadernações à qualidade ou ancestralidade das obras e dos manuscritos. Daí que a maior parte dos livros depositados na biblioteca da Universidade de Oxford seja de carácter místico-religioso, principalmente manuais e tratados de teologia, ciência essa que, em larga medida, constituiu a base de formação intelectual daquele insigne estudioso.
Portanto, apesar do prejuízo que este facto acarretou para a história da cultura portuguesa, não podemos deixar de afirmar que a maior parte dos nossos historiadores costuma exagerar um pouco, quando se refere ao apocalíptico acontecimento, visto que sendo livros escritos em latim, que versam temas litúrgicos, não tem hoje a aplicabilidade e o interesse dos tempos de outrora.
Quanto à data apontada como verídica, há ainda quem discorde dela, talvez por que se apoiam em Rebelo da Silva, que, na sua História de Portugal, vol. VIII, a páginas 145, afirma que os ingleses eram senhores de uma armada de 130 velas, chefiada por Lord Effingham, que tinha sob o seu comando oito mil ingleses e uma frota holandesa, que conjuntamente atacaram e destruíram a esquadra de Filipe II, que se encontrava fundeada em Cádis, no dia 20 de Junho de 1596. Um mês depois, avistaram as costas do Algarve, desembarcando então em Faro cerca de três mil homens que, após 48 horas de sangue e fogo, retiraram em direcção aos mares do Norte.
Não nos parece que Rebelo da Silva esteja no pleno uso da razão. No entanto, o que é certo é que, durante esse período de ocupação estrangeira, uma franja do exército inglês derivou até S. Brás, onde, apesar do seu número, foi heroicamente repelido pelos rapazes solteiros da freguesia.
Efectivamente, «tendo os inglezes entrado em Faro, na força de três mil homens, saqueado os haveres dos seus habitantes, incendiando toda a cidade, não escapando cousa que tivesse valor, tiveram conhecimento de que a povoação de S. Braz era rica e importante, e que valia a pena ir sobre ella para a por tambem a saque.
Organizado um forte destacamento, marcharam sobre S. Braz e chegando ali, encontraram todos os habitantes desprevenidos, sendo-lhes fácil roubar o que encontravam. Não contentes, porém, com os roubos e mortes que praticaram, lançaram fogo á egreja, o que produziu uma grande indignação entre os habitantes. Foi então que, passado o primeiro panico, alguns rapazes solteiros, uniram-se como um só homem, e cahindo sobre os inglezes, fizeram n’elles grande chacina obrigando-os a bater em retirada, largando o que tinham saqueado» (in Almanaque de S .Braz d’ Alportel para o ano de 1894, p. 22).
O heroísmo dos sambrasenses encontra-se, inclusivamente, narrado na única fonte que a este facto se refere com o rigor do pormenor: «Ha a confraria do nome de Jesus, em que só servem os solteiros, em memoria de quando os inglezes deram fogo a esta egreja, e invocando as taes solteiros o nome de Jesus se opposeram contra aquelles anglicanos, e os lançaram fora, com feliz successo, acção que se obrou em dia de S. Thiago Apóstolo, e n’esse dia lhe fazem a festa com as suas cavalhadas de tarde» (António Pereira. da Silva, «Descripção de S. Braz», manuscrito depositado na Torre do Tombo, dotado de 1757).
Curiosamente, as armas empunhadas pelos rapazes solteiros não passavam de lanças improvisadas machados rústicos, chucos e alfaias agrícolas, com as quais «cahiram destemidamente sobre os inglezes» (Sebastião Joaquim Baçam, «S. Bras do Alportel», 1912). Daí nasceu a alcunha de “cachamorreiros” para os Alportelenses. A única fonte que fala com orgulho desta alcunha pertence a João Manuel Rodrigues de Passos, quando, a dado passo, afirma o seguinte: «Caros, conterrâneos, a palavra cachamorreiros, com que nos alcunharam, parece que teve origem n’aquella data (25 de Julho de 1596), em consequencia. dos nossos ascendentes terem feito retirar á cacheirada a pirataria ingleza. Tal alcunha, pois, é, uma glória para nós filhos d’esta formosa rainha da beira serra». (in Almanaque de S. Bras, de 1894).
Presentemente, a comemoração deste ano heróico constitui uma extraordinária manifestação religiosa, eivada porém de um certo machismo, derivado precisamente do seu carácter histórico.
Esta festa celebra-se no Domingo de Páscoa, e o povo chama-lhe a Procissão das Tochas, pois que os homens empunham uns paus enramalhetados de flores que, pela sua esplendorosa tonalidade mais parecem tochas flamejantes.
Percorrem assim, com as “tochas” floridas, as ruas da vila, gritando em uníssono: «Aleluia, Cristo ressuscitou como disse, Aleluia, Aleluia, Aleluia». Porém, entrementes e à socapa, trazem consigo uma pequena garrafa da mais pura e cristalina medronheira, que emborcam a espaços, enquanto gritam cada vez com mais força e entusiasmo: «Aleluia, Cristo ressuscitou como disse, Aleluia, Aleluia, Aleluia».
Concluída a procissão, as “tochas” são prostradas ordenadamente sobre a calcada, constituindo, assim, um vasto e esplendoroso tapete florido, sobre o qual o sacerdote caminha solenemente, ao mesmo tempo que empunha o Santíssimo. Após a marcha religiosa, o prior celebra então a missa campal, à qual assistem sempre milhares de fiéis, alguns deles ainda arfantes do vigor da solenidade.
Antigamente, e julgo que também ainda hoje, se costuma realizar um concurso para apuramento das mais belas “tochas” que desfilaram na procissão, as quais se distribuem por três grupos, conforme as técnicas empregues na sua elaboração artística. Refira-se que, neste ano [1982], o concurso das melhores tochas organizado pela paróquia terá a especial comparticipação da Câmara Municipal de São Brás de Alportel, da Junta de Freguesia e da Comissão Regional de Turismo do Algarve.
Após a actuação do Rancho Folclórico de Alte e do lançamento dum vistoso fogo-de-artifício, serão encerradas as festividades, que, no seu género, bem poderão ser consideradas como únicas na Península Ibérica.
Pelo seu real valor etnográfico, que, por estranho que pareça, ainda não foi estudado, aqui fica o nosso apontamento, que mais nenhuma pretensão encerra que não seja a de dar a conhecer uma manifestação popular, que em si congrega o espírito profano, mas inocente, do nosso povo com o misticismo cristão da Igreja.
Lamentamos apenas que o dia 25 de Julho, data da invasão inglesa do Algarve, não seja comemorado com o júbilo e a veneração com que os actos de grande heroísmo patriótico costumam ser celebrados no nosso país.
(artigo publicado, no matutino «Diário de Notícias» de 12-04-1982)
A rainha da beira serra algarvia comemora, anualmente, no Domingo de Páscoa, o seu mais glorioso feito histórico através de uma festa profana, que a Igreja converteu numa grandiosa manifestação religiosa. Curiosamente, as origens desta festa remontam ao século XVI, mais precisamente ao dia 25 de Julho de 1596, data em que, segundo reza a história, se verificou a invasão da cidade de Faro e seus arredores pelas tropas do duque de Essex.
Na verdade, é hoje dado como certo que, nessa data, aquele nobre militar invadiu o Algarve, após ter infligido estrondosa derrota na Baía de Cádis, a esquadra de Filipe II. Contudo, falou-se durante muito tempo que o saque, e o consequente incêndio da cidade de Faro, havia sido obra do famoso pirata Sir Francis Drake, que as más-línguas apontavam como amante da rainha Isabel I de Inglaterra, por ironia cognominada de «a Virgem».
O referido alvitre partiu do cronista algarvio João Baptista da Silva Lopes, que, nas suas Memórias Eclesiásticas do Bispado do Algarve, a páginas 345 diz o seguinte:«Em 25 de Julho de 1596, foi ella [cidade de Faro] incendiada pelos inglezes, que a accommettêrão com huma esquadra comandada por Francisco Drake, sendo governador do Algarve Rui Lourenço de Távora, e Bispo D. Fernando Martins Mascarenhas, talando e assolando tudo quanto encontrárão até á Aldêa de S. Braz, aonde se diz que chegarão, escapando do incêndio apenas a igreja de S. Pedro, e a da Misericórdia. Então se consumirão os cartórios e livros antigos tão interessantes para a História; consta, por tradição, que boa parte da livraria do Bispo D. Jerónimo Osório, roubada nesta occasião, fora levada para a Universidade de Oxford, onde existe.»
Todavia, sabemos hoje que a invasão não foi chefiada pelo «corsário negro», mas antes pelo duque de Essex, que, para além de incendiar a cidade, assaltou, de facto, a biblioteca que pertenceu ao citado bispo, e famoso humanista, depositando-a depois na universidade de Oxford. Contudo, nem toda a biblioteca foi roubada, pois que aquele nobre inglês, como não era pessoa muito ilustrada, preferiu a beleza das encadernações à qualidade ou ancestralidade das obras e dos manuscritos. Daí que a maior parte dos livros depositados na biblioteca da Universidade de Oxford seja de carácter místico-religioso, principalmente manuais e tratados de teologia, ciência essa que, em larga medida, constituiu a base de formação intelectual daquele insigne estudioso.
Portanto, apesar do prejuízo que este facto acarretou para a história da cultura portuguesa, não podemos deixar de afirmar que a maior parte dos nossos historiadores costuma exagerar um pouco, quando se refere ao apocalíptico acontecimento, visto que sendo livros escritos em latim, que versam temas litúrgicos, não tem hoje a aplicabilidade e o interesse dos tempos de outrora.
Quanto à data apontada como verídica, há ainda quem discorde dela, talvez por que se apoiam em Rebelo da Silva, que, na sua História de Portugal, vol. VIII, a páginas 145, afirma que os ingleses eram senhores de uma armada de 130 velas, chefiada por Lord Effingham, que tinha sob o seu comando oito mil ingleses e uma frota holandesa, que conjuntamente atacaram e destruíram a esquadra de Filipe II, que se encontrava fundeada em Cádis, no dia 20 de Junho de 1596. Um mês depois, avistaram as costas do Algarve, desembarcando então em Faro cerca de três mil homens que, após 48 horas de sangue e fogo, retiraram em direcção aos mares do Norte.
Não nos parece que Rebelo da Silva esteja no pleno uso da razão. No entanto, o que é certo é que, durante esse período de ocupação estrangeira, uma franja do exército inglês derivou até S. Brás, onde, apesar do seu número, foi heroicamente repelido pelos rapazes solteiros da freguesia.
Efectivamente, «tendo os inglezes entrado em Faro, na força de três mil homens, saqueado os haveres dos seus habitantes, incendiando toda a cidade, não escapando cousa que tivesse valor, tiveram conhecimento de que a povoação de S. Braz era rica e importante, e que valia a pena ir sobre ella para a por tambem a saque.
Organizado um forte destacamento, marcharam sobre S. Braz e chegando ali, encontraram todos os habitantes desprevenidos, sendo-lhes fácil roubar o que encontravam. Não contentes, porém, com os roubos e mortes que praticaram, lançaram fogo á egreja, o que produziu uma grande indignação entre os habitantes. Foi então que, passado o primeiro panico, alguns rapazes solteiros, uniram-se como um só homem, e cahindo sobre os inglezes, fizeram n’elles grande chacina obrigando-os a bater em retirada, largando o que tinham saqueado» (in Almanaque de S .Braz d’ Alportel para o ano de 1894, p. 22).
O heroísmo dos sambrasenses encontra-se, inclusivamente, narrado na única fonte que a este facto se refere com o rigor do pormenor: «Ha a confraria do nome de Jesus, em que só servem os solteiros, em memoria de quando os inglezes deram fogo a esta egreja, e invocando as taes solteiros o nome de Jesus se opposeram contra aquelles anglicanos, e os lançaram fora, com feliz successo, acção que se obrou em dia de S. Thiago Apóstolo, e n’esse dia lhe fazem a festa com as suas cavalhadas de tarde» (António Pereira. da Silva, «Descripção de S. Braz», manuscrito depositado na Torre do Tombo, dotado de 1757).
Curiosamente, as armas empunhadas pelos rapazes solteiros não passavam de lanças improvisadas machados rústicos, chucos e alfaias agrícolas, com as quais «cahiram destemidamente sobre os inglezes» (Sebastião Joaquim Baçam, «S. Bras do Alportel», 1912). Daí nasceu a alcunha de “cachamorreiros” para os Alportelenses. A única fonte que fala com orgulho desta alcunha pertence a João Manuel Rodrigues de Passos, quando, a dado passo, afirma o seguinte: «Caros, conterrâneos, a palavra cachamorreiros, com que nos alcunharam, parece que teve origem n’aquella data (25 de Julho de 1596), em consequencia. dos nossos ascendentes terem feito retirar á cacheirada a pirataria ingleza. Tal alcunha, pois, é, uma glória para nós filhos d’esta formosa rainha da beira serra». (in Almanaque de S. Bras, de 1894).
Presentemente, a comemoração deste ano heróico constitui uma extraordinária manifestação religiosa, eivada porém de um certo machismo, derivado precisamente do seu carácter histórico.
Esta festa celebra-se no Domingo de Páscoa, e o povo chama-lhe a Procissão das Tochas, pois que os homens empunham uns paus enramalhetados de flores que, pela sua esplendorosa tonalidade mais parecem tochas flamejantes.
Percorrem assim, com as “tochas” floridas, as ruas da vila, gritando em uníssono: «Aleluia, Cristo ressuscitou como disse, Aleluia, Aleluia, Aleluia». Porém, entrementes e à socapa, trazem consigo uma pequena garrafa da mais pura e cristalina medronheira, que emborcam a espaços, enquanto gritam cada vez com mais força e entusiasmo: «Aleluia, Cristo ressuscitou como disse, Aleluia, Aleluia, Aleluia».
Concluída a procissão, as “tochas” são prostradas ordenadamente sobre a calcada, constituindo, assim, um vasto e esplendoroso tapete florido, sobre o qual o sacerdote caminha solenemente, ao mesmo tempo que empunha o Santíssimo. Após a marcha religiosa, o prior celebra então a missa campal, à qual assistem sempre milhares de fiéis, alguns deles ainda arfantes do vigor da solenidade.
Antigamente, e julgo que também ainda hoje, se costuma realizar um concurso para apuramento das mais belas “tochas” que desfilaram na procissão, as quais se distribuem por três grupos, conforme as técnicas empregues na sua elaboração artística. Refira-se que, neste ano [1982], o concurso das melhores tochas organizado pela paróquia terá a especial comparticipação da Câmara Municipal de São Brás de Alportel, da Junta de Freguesia e da Comissão Regional de Turismo do Algarve.
Após a actuação do Rancho Folclórico de Alte e do lançamento dum vistoso fogo-de-artifício, serão encerradas as festividades, que, no seu género, bem poderão ser consideradas como únicas na Península Ibérica.
Pelo seu real valor etnográfico, que, por estranho que pareça, ainda não foi estudado, aqui fica o nosso apontamento, que mais nenhuma pretensão encerra que não seja a de dar a conhecer uma manifestação popular, que em si congrega o espírito profano, mas inocente, do nosso povo com o misticismo cristão da Igreja.
Lamentamos apenas que o dia 25 de Julho, data da invasão inglesa do Algarve, não seja comemorado com o júbilo e a veneração com que os actos de grande heroísmo patriótico costumam ser celebrados no nosso país.
(artigo publicado, no matutino «Diário de Notícias» de 12-04-1982)