Dificilmente se encontram hoje no
Algarve os resquícios da antiga festa natalícia genuinamente regional. Até
mesmo nos lugares mais recônditos da serra algarvia se esbateram as tradições
de antanho, apesar de em toda a região não ser estranha a alegria que a
verdadeira festa do lar traduz no espírito da família. O que hoje se celebra,
em todo o país, é um Natal estereotipado, um decalque euro-americano da festa
da família, que oscila entre o presépio católico e o pinheirinho protestante,
entre o bacalhau dos pobres e o peru dos ricos.
Em boa verdade, Natal minhoto, Natal
transmontano, Natal beirão ou Natal algarvio, todos têm um denominador comum: a
celebração de uma festa religiosa com características muito íntimas e peculiares,
durante a qual se reúne a família numa verdadeira apoteose dos seus naturais
continuadores – as crianças. O Natal é, por excelência, a Festa da Família,
representada na criança, tida como natural prolongamento da estirpe e da
linhagem, uma espécie de personificação da Esperança e do Futuro.
Pinheiro de Natal (Forum Algarve) |
Verifica-se, porém, que as ascendências
culturais, resultantes duma certa heterogeneidade geomorfológica de insondável
ancestralidade, influíram as celebrações religiosas com manifestações
populares, que, de algum modo, as diferenciavam, criando-lhes uma
individualidade algo estranha e curiosa. Com o seu estudo se preocuparam, há
décadas atrás, reputados etnólogos e antropólogos, que publicaram importantes
obras, que são hoje referências incontornáveis. Não previam, todavia, que se
pudesse operar com o tempo um evolutivo esvaziamento das tradições, para o qual
parece estar a contribuir um hodierno progresso tecnológico, emanado de uma
sociedade consumista, e de um mercantilismo alienante, que tende a estandardizar
as próprias raízes culturais dos povos cristãos. O conservadorismo etnográfico,
a reserva do tradicional, assume-se hoje aos olhos cosmopolitas como sintoma de
atraso civilizacional. A mundialização do pinheiro escandinavo e do Pai Natal
normando superaram, por observância da normalização comercial, os padrões
culturais e as manifestações populares do Natal latino, esse sim, genuinamente
cristão e profundamente visigótico. De tal forma assim é que o Natal
secularizou-se para dar lugar a uma festa social, altamente vulgarizada,
profundamente dependente duma indústria de mercado, que a força persuasora da
publicidade e dos meios audiovisuais de comunicação tem vindo a banalizar.
Mesmo assim, apesar de todas as
atrocidades etnográficas a que impavidamente temos vindo a assistir, o Natal é,
e será sempre, a festa do lar e da família, a apoteose da criança, e um hino de
paz que apela à fraternidade humana.
Tal como antes afirmamos, não existe
hoje propriamente um Natal algarvio, contudo tempos houve em que as
manifestações natalícias se transformavam em verdadeiras festas da comunidade,
variando de região para região, às vezes mesmo de concelho para concelho. Nos
“montes”, nos lugares da serra e nas pequenas freguesias rurais, era evidente o
sentimento de solidariedade e de confraternização entre os seus membros, ao
qual o espírito religioso emprestava uma forte consistência. Era, curiosamente,
uma festa deambulatória, se assim se lhe pode chamar, usando o lar e a igreja
como balizas duma intercomunicabilidade fraternal em que as velhas desavenças e
incompatibilidades se desfaziam num amplexo que o respetivo pároco se esforçava
por estreitar. Nas terras do interior serrenho, emolduradas num luminoso
cenário de azul-cobalto, faltava-lhes a neve ou o frio enregelante capaz de
reter as suas gentes no aconchego da cálida lareira.
Era por isso que as famílias se
visitavam, os mais jovens percorriam as ruas a visitar os lares mais queridos e
também os mais abastados, comendo, aqui e ali, deliciosos pastéis de mel e
provando espirituosos vinhos. A bondosa inocência do serrenho algarvio impregnava
o Natal de um calor humano verdadeiramente inigualável.
Na esperança de encontrarmos a chama
ardente desse passado, e das genuínas manifestações culturais natalícias,
deslocámo-nos até ao vasto e recôndito concelho de São Brás de Alportel, que se
espraia, algo perdido e quase esquecido, pela serra algarvia, cujos lugarejos
percorremos ao sabor e à aventura de seculares caminhos. Conversámos com vários
anciãos de provecta idade, em diferentes “montes” e em esconsos sítios, mas
também falámos com pessoas instruídas e até com alguns jovens, que nesta quadra
retornam às suas origens familiares para passarem as suas férias natalícias. No
cômputo desse ligeiro inquérito, verificamos que as tradições antigas já se
perderam, e que na sua maioria são já irrecuperáveis; que a juventude pouco se
interessa com o passado e que despreza as tradições etnográficas; que a
televisão, pela sua massificação telenovelesca, faz reter as pessoas em casa e
retira o convívio social, perdendo-se também o diálogo familiar em torno da
lareira, durante o qual se transmitiam aos jovens as estórias do romanceiro
popular; que a carestia de vida exterminou quase por completo as visitas aos
lares para estreitar relações, trocar conhecimentos agrícolas e acertar preços
para a venda dos seus produtos… Mais consensual entre as diferentes gerações é
a ideia de o Natal ser a época em que se recebem presentes, sendo, enfim, a
consoada uma noite especialmente feliz, mas muito menos alegre do que a noite
da Passagem de Ano.
Todavia, algo permanece ainda desse
passado, para uns tão longínquo, para outros tão saudosamente presente,
sobretudo na memória dos mais idosos. Mantém-se nos moldes de antanho a Ceia de
Natal, assim como a gastronomia tradicional, a reunião da família, o presépio e
os grupos de cantadores populares, a que chamam «charolas» e «charoleiros», que
animam as noites frias das janeiras e das reisadas.
A tradição do “madeiro” de Natal
O dia de Natal continua a ser, de forma
insofismável, o dia da Família, cujos diversos membros se reúnem na casa dos
pais, na do filho mais velho ou na do irmão mais “remediado”. Curiosamente, há
certos sítios da serra onde ainda ouvimos falar dos Morgados, termo que serve
para designar os indivíduos mais ricos, em cujos lares se fazem lautas ceias de
vários pratos, imensa doçaria e animada festa, para a qual costumam também
convidar o pároco.
Durante a noite da consoada a animação nos
lares serrenhos faz-se de diversas formas, conforme os hábitos e instrução dos
membros da família; uns jogam às cartas, outros contam histórias antigas,
revivem a memória dos antepassados, cantam velhas modinhas, até chegar o
momento crucial da distribuição prendas. Nessa altura começa-se pelos mais
velhos, dão-se beijos, abraços e sonoras risadas, os avós e os pais tornam-se o
centro das atenções. Seguem-se depois os filhos e os netos, que em certos lares
perfazem numeroso grupo.
madeiro de Natal |
Nos lares mais tradicionais, com antigas
lareiras, queimam-se grossos “madeiros” que se colocam “atrás do fogo”.
Esclareça-se que o “madeiro” é um grosso barrote de azinho, e que “atrás do
fogo” significa colocar esse toro de lenha atrás da grelha do fogo vivo,
encostado ao espelho da lareira, fazendo-o assim arder muito lentamente e
apenas com o calor irradiado pelo lume. Deste modo transforma-se num enorme
braseiro de fogo lento, que se mantém incandescente durante o dia, mantendo a
casa quente. À noite reacende-se a lareira, mas sempre evitando que o “madeiro”
entre em contacto com o fogo. Reza a tradição local que os rapazes solteiros –
para no ano que se avizinha serem bafejados pela sorte – têm que durante a
noite visitar nove “madeiros”, comendo filhós e bebendo vinho novo. Mas hoje já
poucas casas se podem dar ao luxo de receber tanta gente e de ter uma lareira
permanentemente acesa durante todos esses dias. Por outro lado, existem hoje
modernos caloríferos para combater o frio, e poucas são as novas habitações que
possuem fogão de sala.
De qualquer modo, dizem os mais velhos
que, quando o “madeiro” não chega a consumir-se inteiramente até ao Dia de Reis,
deve-se partir o que resta em pequenos pedaços que nos dias de tempestade se
voltam a acender para atrair a protecção divina, evitando-se assim que algum
raio fulmine o lar. Além disso, os antigos também diziam que o Natal era a
festa da lareira ou do fogo sagrado, pelo que quanto maior fosse o “madeiro” e
quanto mais tempo durasse a sua lenta incineração, maior e mais saudável seria
a seara, ou seja, mais profícua e frutuosa poderia vir a ser a próxima safra
agrícola. Curiosa é, porém, a vetusta crença dos serrenhos algarvios de que dá
mau agoiro não comer bolotas nem castanhas nas vésperas de Natal.
Trono do Menino Jesus, tradicional presépio algarvi |
A entronização do Menino Jesus
O presépio é uma tradição inalterável –
ultimamente misturado com o pinheirinho pagão, introduzido nos lares serrenhos
pelas novas gerações. Toda a gente monta o seu presépio, com mais ou menos
figuras e adereços naturais, conforme as possibilidades de cada lar. Nas novas
habitações e bairros sociais vê-se uma crescente subalternização do presépio,
por figurar debaixo do incaracterístico e pouco católico “pinheirinho”, às
vezes feito em plástico, enfeitado com luminosos e musicais conjuntos elétricos.
Nos lares mais antigos, porém,
“entroniza-se o Menino” numa espécie de altar, em forma de peanha com três a
cinco andares, que as moças solteiras constroem sobre uma mesa (ou no próprio
chão da sala), sobrepondo várias gavetas invertidas e de tamanhos
sucessivamente menores, cobertas de níveas toalhas de linho, enfeitadas com
pequenas luminárias de azeite (hoje substituídas por lamparinas de cera),
frutos secos e frescos de diferentes cores e feitios, bonecos alegóricos à
quadra natalícia e as tradicionais “searas”. Convém esclarecer que estas
“searas”, com um significado simbólico de ancestral origem, obtêm-se colocando
em pequenos recipientes uma porção de cereais, geralmente trigo, cevada,
lentilhas, grãos ou centeio, mergulhados em água, que passados alguns dias
germinam e crescem com colorações de um verde vivo que vai amarelando
suavemente, semelhante aos das verdadeiras cearas de trigo. No último degrau
desta curiosíssima pirâmide impõe-se a figura do Menino Jesus, emoldurado pela
luz radiante das lamparinas e de todo aquele conjunto de frutos e searas, numa mescla
entronização do Divino com o Natural. É em volta do trono do Menino Jesus que
os mais jovens entoam alguns cânticos bastante peculiares:
O meu menino Jesus
Está lá alto na tribuna;
Está pedindo à sua mãe
Que nos dê muita fortuna.
Qual será o meu destino,
Por ser noite de ano bom,
Venho cantar ao Menino.
Quatro, cinco, nove, seis,
E uma camisinha fina
P’ra vestir Dia de Reis.
Hei-de dar ao Menino
Um galão pra cintura;
Que ele também me há-de dar
Um lugar na sepultura.
A Ceia de Natal
tradicional polvo de natal à algarvia |
Na mesa de Natal dispõem-se pratinhos de
enchidos cortados às rodelas, de fatias de presunto e de carnes frias; mais
atrás ficam as canastrinhas de pinhões, de amêndoas, de figos torrados, de
avelãs, de nozes e de estrelas de figo; mais perto dos limites da mesa desfilam
então os bolos de mel, as filhós, os sonhos ou brinhóis, as fatias douradas, as
empanadilhas de batata-doce, os queijinhos de figo e os de amêndoa, os
dons-rodrigos, e, ao centro, os vinhos espirituosos e a saborosa medronheira
algarvia. Os vinhos da adega da casa, ou comprados ao lavrador a garrafão,
serão depois servidos em jarro de vidro incolor para acompanhar a ceia.
Ao contrário do bacalhau nortenho, do
peru da cidade, do polvo do litoral ou das ameijoas com carne de porco do
interior, aqui na serra algarvia come-se um anafado galo, escolhido alguns
meses atrás para ser “tratado”, leia-se engordado. Desde logo fica marcado como
o “Galo do Natal”, merecendo por isso cuidados especiais. Todavia, nas casas
mais ricas e opulentas, cujas famílias são mais numerosas, costuma-se matar um
porco, cuja carne é cuidadosamente repartida, salgada ou defumada, para que
dure até à Quaresma.
Durante a noite, ou depois da consoada,
alguns grupos de rapazes reúnem-se no adro da igreja para percorrerem a aldeia
a cantar de casa em casa, até à hora da Missa do Galo. Entretanto, os chefes
das famílias mais abastadas da freguesia dirigem-se para a Igreja onde
apresentam os votos de Natal ao pároco, oferecendo donativos em dinheiro ou em
géneros para a caridade e valimento dos pobres. À meia-noite celebra-se a Missa
do Galo, cujo templo foi previamente decorado pelas senhoras mais piedosas e
mais conceituadas da aldeia, com flores e outros adornos naturais, que conferem
odoríferas colorações em torno do presépio popular, sobre o qual, aliás, se concentram
todas as atenções. No fim da Missa, o pároco dá o Menino- Jesus a beijar aos
fiéis, regressando depois todos a casa, com os mais novos a cantarolar algumas
quadras alusivas à época. Por vezes, os moços solteiros reúnem-se no largo da
aldeia em volta de uma crepitosa fogueira, com um enorme madeiro de azinho em
brasa, irradiante de calor, em volta do qual cantam e dançam improvisados
corridinhos. É claro que o calor da fogueira não faz dispensar o ardor da
medronheira nem a energia das azevias de batata-doce, que os casais mais velhos
trazem para oferecer aos jovens, de todas as idades.
No dia seguinte, come-se o que sobrou da
noite da consoada, voltando-se a reunir a família, porém a alegria é bastante
menor. Nas localidades da faixa litoral algarvia, especialmente nos bairros de
pescadores, come-se pelo Natal o célebre “litão” ou peixe de cor, que é muito
concretamente um cação ou uma moreia previamente corado, seco, à soleira da
porta. Este costume ainda hoje se mantém em muitos lares e restaurantes de
Olhão e de Portimão.
Na Passagem de Ano a festa é semelhante à do Natal, embora muito mais alegre, marcada por frequentes libações e
bailaricos, que os mais jovens organizam nas sociedades recreativas ou nos
clubes populares. As janeiras ou charolas são a manifestação mais castiça desta
época, e também a mais característica do povo algarvio. No Dia de Reis era
costume fazer-se o bolo-rei, cuja elaboração difere muito daquele a que já nos
habituamos a consumir durante toda a quadra natalícia. As tradicionais janeiras
ou reisadas cantavam-se pela última vez, encerrando-se deste modo o mais belo
período festivo do ano.
Presentemente, nas cidades do litoral
algarvio já não existem quaisquer manifestações populares que identifiquem
aquilo a que poderíamos chamar um «Natal diferente». As tradições esbateram-se de
forma irrecuperável ou perderam o sentido peculiar do Natal.
Hoje, o Natal é de cada um, nunca de
todos e muito menos do Algarve.