Lembrei-me hoje de trazer a este tablado a memória de um grande jornalista e escritor algarvio, César dos Santos, infelizmente já quase esquecido entre os seus comprovincianos e praticamente ignorado pelos portugueses em geral. Embora tivesse ganho a vida como publicista, o certo é que foi intrinsecamente um escritor de enorme talento, cujo livro Terra Morena, é hoje o mais celebrado de toda a sua obra literária, por ser uma espécie de homenagem ao seu Algarve natal. Em todo o caso, posso asseverar aos que desconhecem a sua obra que o livro de contos Neblina é, pelo menos para mim, a sua principal obra, por nela se incluírem pequenas novelas e contos, cujo estilo e inspiração são claramente de transição entre o neorealismo, a que o autor se sentia culturalmente ligado, até ao modernismo, mais positivista do que ficcionista, em que se enformam algumas das histórias contidas neste livro. Não sei por que razão a maioria dos livros que compõem a obra de César dos Santos não obtiveram o conforto da crítica, quer nos órgãos de imprensa quer nas revistas da especialidade, em cujas colunas se teceram diversas notícias e artigos, com palavras de apreço e de enaltecimento dirigidas a livros de muito menor quilate e merecimento. Sinceramente, nunca entendi as razões da má vontade da crítica para com o escritor César dos Santos, um homem que ao longo da sua vida sempre escreveu com isenção, rigor e altruísmo, ainda que para manter o pendor do seu carácter, inabalável e inquebrável, tivesse muitas vezes que enfrentar com coragem as perseguições da Censura e até da polícia do regime. Quem com ele privou, e nesse aspecto estou-me a lembrar de Norberto Lopes, jornalista do «Diário de Notícias» e um dos melhores do seu tempo, que sempre enfrentou com coragem as adversidades políticas com o regime salazarista, escreveu acerca de César dos Santos um breve retrato psicológico do seu estreme profissionalismo e do seu diamantino carácter, que não resisto à tentação de aqui transcrever:
«Como profissional, apreciei sempre o seu escrúpulo, o seu amor da verdade, a sua dedicação ao trabalho, a sua exactidão no cumprimento dos deveres. De feitio naturalmente cordial, não lhe foi difícil conquistar amizades e admirações, que lhe ficaram fiéis em todas as circunstâncias da vida. O tratamento de «camarada» com que distinguia os amigos mais íntimos, e que lhe ficara das lutas sindicais, era conhecido na «Fleet Street» lisboeta, que tem por fronteiras a rua do Século e a ladeira da Misericórdia, incluindo o enclave intelectual da «Brasileira» do Chiado.»
É claro que aqui o Norberto Lopes, acerca da «Fleet Street» lisboeta, está a referir-se às redacções, que por ali existiam, dos jornais mais famosos desse tempo, como o «Século», o «Diário de Lisboa», o «Diário de Notícias», o «Diário Popular» e a «República», cujos principais plumitivos se reuniam, ou melhor, se dispersavam pelas diferentes tertúlias culturais que se concentravam ao fim do dia no café da Brasileira, frente à estátua do poeta Chiado.
Acerca do carácter e da personalidade de César dos Santos, acrescenta ainda: «Camarada César não alimentava ódios nem guardava rancores. Discreto, reservado, paciente, embora algumas vezes explodisse em inesperados arrebatamentos, como todos os introvertidos, não se entregava facilmente». E acerca das suas ideias e do seu posicionamento político esclarece: «Espírito liberal, amava naturalmente todas as ideologias, embora não seguisse nenhuma, que conduzem à libertação do homem e à dignificação da sociedade. Subscreveu todas as representações e protestos que visavam a restituir à Imprensa os direitos e privilégios que lhe são inerentes. Não aceitou a nova orgânica sindical [fascista] e conservou-se fiel aos princípios e às ideias que defendeu sempre, não se deixando deslumbrar por modas que o seu gosto literário repudiava. Embora tímido e por vezes hesitante em definir uma posição de que dependia o seu futuro imediato, procurou sempre seguir a linha de rumo que a sua consciência lhe ditava e as preferências naturais que o seu espírito havia escolhido.
Jornalista e escritor, César Augusto Pires dos
Santos, de seu nome completo, nasceu a 14-11-1907 na cidade de Silves, e
faleceu em Lisboa, a 22-1-1974, com 66 anos de idade.
Desde muito jovem que César dos Santos se dedicava
na capital à prática do jornalismo, colaborando em diversos órgãos nacionais e
estrangeiras, e trabalhando em vária redacções de jornais e revistas. Dentre os
principais jornais em que trabalhou destacamos «O Século» e «República», mas
foi no «Diário de Lisboa», a cujo corpo redactorial pertencia desde 1954, que
mais se distinguiu. Não obstante, colaborou ainda no «Diário do Norte», «A
Bola», «Diário Ilustrado», «Primeiro de Janeiro», «Diário Liberal», e «Notícias
de Lourenço Marques», assim como nas prestigiadas revistas «Ver e Crer», «Vida
Mundial», «Domingo», «Humanidade», e ainda nos jornais do Brasil e portugueses
publicados nos Estados Unidos da América do Norte; sem referir os almanaques,
jornais do Alentejo e Algarve.
Foram diversíssimos os temas e assuntos versados
pela sua pena de ilustre jornalista e de inspirado escritor, tendo o Algarve e
os algarvios recorrentemente ocupado lugar de relevante preponderância nas
colunas dos jornais por onde passou, através de extensas reportagens onde
propagandeou as suas belezas naturais e as suas potencialidades turísticas.
Como jornalista foi um dedicadíssimo amigo do
Algarve e um estrénuo defensor dos seus mais genuínos valores culturais e
patrimoniais. Por outro lado, foi um magnífico profissional da imprensa
lisboeta, muito preocupado com os interesses da sua classe e com o sucesso dos
seus camaradas. Era, como homem, estruturalmente sério e honesto, e, como
jornalista, bastante competente e metódico nas suas actividades, e estimável
nas suas atitudes.
Foi também um escritor distinto, que burilava a
prosa como um ourives, procurando enriquecê-la com aprimoradas descrições do
ambiente natural, das relações de produção e dos antagonismos sociais. A sua
escrita possuía requintes de estilos diversos, entre o naturalismo e o
neo-realismo, com um forte pendor analítico para os desequilíbrios psíquicos
dos personagens. A observação ambiental e a descrição socioeconómica são dois
atributos que marcam o apreço do público leitor, e impregnam os seus livros com
o incontestável perfume literário dos grandes escritores.
A sua obra literária ficou marcada por uma forte
sensibilidade pela beleza natural das coisas simples, numa simbiose entre o
meio ambiente e a cultura social, um pouco ao gosto do naturalismo oriental.
Aliás, nutria uma especial paixão pela filosofia Zen e pela cultura japonesa,
claramente visível nos dois primeiros livros dados à estampa, O Japão, na
História, na Literatura e na Lenda (1944), e O Japão através da sua Literatura
(1945). Essa admiração pela cultura nipónica advinha-lhe da leitura da notável
obra de Wenceslau de Morais, proeminente escritor e poeta, o mais admirável
cultor da arte, da ética, do humanismo e da sensualidade oriental na nossa
literatura. Outro dos seus interessantes livros, talvez o mais jornalístico de
toda a sua obra, é a colectânea de crónicas e reportagens sobre Lisboa,
intitulada A Cidade das Mil Cores (1946), belíssimas notas
impressionistas sobre a vida sociocultural na velha “capital do império”.
Seguiu-se-lhe o livro de contos, Neblina (1956), que a crítica não
deixou passar incólume, tecendo-lhe justos elogios, embora merecesse maior
sucesso editorial do que aquele que efectivamente teve. O mesmo se passou com o
seu curioso trabalho de ficção intitulado Viagens Maravilhosas às «Terras do
Céu» (1949), talvez a menos conhecida das suas obras. Mas o livro que mais
o notabilizou foi certamente essa brilhante colectânea de crónicas publicadas
no «Diário de Lisboa», depois reunidas nesse verdadeiro poema em prosa
intitulado Terra Morena - Algarve do
Sonho e da Realidade (1965), a sua obra de maior fôlego, onde calorosamente
descreve e analisada a sua região natal, com requintes de artista e de refinado
esteta, glorificando o Algarve nos seus mais relevantes pormenores ambientais,
históricos, etnográficos, patrimoniais, artísticos, literários, paisagísticos,
turísticos, económicos e até mentais. Uma verdadeira “Ode ao Algarve”, numa
rendilhada prosa da mais fina sensibilidade poética.
César dos Santos foi também um dos mais abnegados
dirigentes da Casa da Imprensa e do extinto Sindicato dos Profissionais da
Imprensa de Lisboa. Pertenceu também à aniquilada Sociedade Portuguesa de
Escritores e fazia parte da actual Associação Portuguesa de Escritores. Com
Ferreira de Castro, Assis Esperança e Roberto Nobre e alguns mais, constituíra
uma pequena tertúlia literária na pastelaria «Veneza», na Avenida da Liberdade.
Apesar do seu notável porte físico queixava-se
constantemente da falta de saúde, como se fosse quase uma mania dum cismático
ou dum doente crónico. Ninguém podia, porém, prever que os seus receios e
lamúrias se tornassem numa infeliz realidade, tão prematura e tão injusta, pois
que o colheu ainda na flor da vida.
Foi casado com D. Maria da Glória Lobão Cruz dos
Santos, e era irmão dos srs. Luís Alves Pires dos Santos, chefe da Secção de
Contabilidade de «O Século», e Artur Rodrigues Alves, funcionário público.
Pela sua árdua e proficiente actividade literária,
César dos Santos situa-se entre os mais relevantes jornalistas e escritores
algarvios do século XX, sendo de enaltecer a sua fervorosa dedicação ao
Algarve. Dissipou o seu talento por variadíssimos periódicos nacionais e
estrangeiros, mas, honra lhe seja feita, em todos divulgou com vibrante
entusiasmo o seu Algarve natal, lutando, vigorosa e apaixonadamente, pela sua
divulgação e engrandecimento. Retratou persistentemente o Algarve numa prosa
fluente e brilhante, expondo a sua riqueza paisagística, a beleza das suas
praias e a amenidade climática, atributos propiciadores do desenvolvimento
turístico na região, efectivamente aproveitados nos anos subsequentes à sua morte.