sábado, 13 de fevereiro de 2010

Esplendor renascentista no portico da Igreja de Moncarapacho


José Carlos Vilhena Mesquita


A lendária aldeia de Moncarapacho, pertencente ao concelho de Olhão, cuja origem se perde na longa noite dos séculos, pode orgulhar-se de possuir o mais belo pórtico renascentista de todo o Algarve. A sua beleza, associada à perfeição do estilo, rivaliza muito de perto com a extraordinária fachada da Misericórdia de Tavira, obra primorosa desse obscuro arquitecto que foi André Pillarte, a quem alguns estudiosos quiseram, igualmente, outorgar a autoria do pórtico de Moncarapacho. Pessoalmente, discordo dessa hipótese, visto que nessa altura aquele artista encontrava-se ainda na cidade do Gilão, a completar a sacristia, a casa dos despachos, e outras dependências pertencentes ao referido templo da Misericórdia. Mas isso são questões muito mais complicadas e que não cabem nesta pequena nota de carácter divulgativo, que tem apenas por objectivo chamar a atenção dos leitores para a riqueza do património cultural algarvio.
Assim, a igreja matriz de Moncarapacho, de cujo pórtico iremos falar, data da segunda metade do século XVI, e nesse mesmo local existiu em tempos uma simples capela romano-gótica, que, no século XV, cedeu o seu lugar a um mais amplo edifício da invocação de Santa Maria da Graça, cuja transformação e ampliação ocorreria um século depois, facto esse que facilmente se constata no interior do templo. As razões que motivaram esta adulteração prendem-se, por certo, com o crescimento económico e demográfico da freguesia, que através da construção de tão majestoso templo pretenderia, talvez, demonstrar o seu progressivo florescimento.

Largos rendimentos

Por outro lado, a devoção dos seus habitantes por Santa Maria da Graça originou a legação de avultados cabedais e propriedades aforadas, que por morte deixavam àquela igreja. Daí resultaram largos rendimentos, que se empregaram na ampliação do templo para o seu actual aspecto, assim como permitiram a aquisição de ricas alfaias, paramentos e belíssimas imagens, algumas delas hoje recolhidas no magnífico museu paroquial daquela freguesia.
Não esqueçamos, também, que para aqui vieram residir algumas famílias nobres que se haviam distinguido nas ferozes batalhas do Norte de África e na dura epopeia dos Descobrimentos. Este facto constituiu mais uma das razões do crescimento económico e populacional da freguesia. A título de exemplo, citaremos os solares, alguns deles já desaparecidos, dos Corte-Reais, dos Sárrias ou Sarres e Mendonças, dos Pessanhas, dos Tripauxos e de várias outras famílias de que já não reza a História.
Mas, descendo ao pormenor, devemos acrescentar que a fachada desta igreja deverá datar de 1551, e o seu estilo, como já afirmei, é nitidamente renascentista. E muito lamentamos que o Prof. Albrecht Haupt, considerado como suprema autoridade no renascentismo português, não tivesse conhecido este belo pórtico, pois que dele, por certo, iria tecer as mais favoráveis considerações, comparando-o, muito provavelmente, com outros da mesma espécie que gozam de maior fama.
Na verdade, a monumentalidade deste pórtico, associada à beleza escultórica dos soldados romanos vigiando, cenas da paixão de Cristo, encimadas pela imagem da Virgem sob um formoso baldaquino, no qual o Arcanjo Gabriel a saúda chamando-lhe «Cheia de Graça», levou o Dr. José Fernandes Mascarenhas, dedicado estudioso moncarapachense, a designá-lo de «arco de triunfo do velho e novo testamento em pedra».
A porta apresenta-se em arco de volta perfeita, despido de elementos decorativos, ladeado por duas pilastras, ornadas por elementos naturais estilizados, videiras, loureiros, heras e outros vegetais, desenvolvidos num espiral ascendente. Na base das pilastras vêem-se dois bustos em baixo relevo já muito desgastados. Os capitéis são jónicos e os ábacos emoldurados apresentam-se pouco ortodoxos. Os frisos interiores acham-se decorados em cada métopa com cenas da prisão e sacrifício de Cristo, vendo-se em pormenor alguns puxando cadeias ou empunhando chicotes de suplício. A arquitrave também se encontra decorada com elementos naturais, folhas de abacante e outras, em desenvolvimento horizontal. Na parte superior da cornija encontra-se uma espécie de frontão trapezoidal, ladeado pelas estátuas de S. Pedro e de S. João, tendo ao centro uma clarabóia circular, que talvez pretendesse imitar uma rosácea. Ao cimo, um baldaquino do tipo gótico, dentro do qual se acha a imagem de Nossa Senhora da Graça, que parece aguardar a chegada do anjo Gabriel, que está ao seu lado esquerdo.

Mescla de estilos

Contudo, o interior do edifício é uma mescla de Gótico e de Renascença, motivado pelas frequentes alterações de que foi alvo ao longo dos séculos. O arco da capela-mor data de 1581, e em estilo renascentista, assim como a abóbada terminal da nave do Evangelho. São também visíveis as reminiscências romano-góticas nos cunhais das cabeceiras, o que demonstra uma diferença de alturas, em tempos existente, entre as naves central e laterais. Observam-se também várias nervuras góticas nas capelas do Senhor dos Passos, de Santo António e das Almas. São igualmente góticos os arcos e as nervuras da capela do Calvário e por detrás da capela-mor vêem-se ainda as mísulas que possivelmente sustentavam a primitiva abóbada da abside gótica. Da ancestral ermida, provavelmente contemporânea da Sé de Faro, ainda permanecem visíveis um capitel e três bocetes de singela feitura.
À parte os elementos arquitectónicos, são ainda dignas de especial referência as pinturas do retábulo da Capela das Almas, representando o Purgatório, as da Capela do Calvário, onde se vê S. Gregório Magno que tem por insígnia um livro de música, e as da Capela de Santo António, cujas pilastras do arco frontal são de uma beleza rara. Os azulejos polícromos que recobrem as paredes destas capelas datam do século XVII e são esplendorosamente belos. O púlpito de pedra tem a forma de cálice, com uma copa octogonal, decorado com pinturas iguais às dos arcos da igreja, datadas do século XVIII.
Algumas das peças de estatuária desta e de outras igrejas encontram-se hoje a recato no magnífico Museu Paroquial, obra de dois grandes beneméritos locais, ao qual nestas mesmas colunas demos em tempos o devido destaque.


(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 10 de Julho de 1983)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O Algarve e a Cortiça ou a ameaça de uma riqueza



José Carlos Vilhena Mesquita

Considerada desde há milénios como uma das principais riquezas naturais à flor da Terra, a cortiça deverá ser encarada no seu dualismo pragmático e económico. Assim, para os mais leigos no assunto, compete-nos informar que no nosso país, fundamentalmente na zona a sul do Tejo, produz-se mais de metade da cortiça mundial. A sua qualidade é, insofismavelmente, a melhor do mundo, fazendo deste produto natural a principal mercadoria do nosso comércio externo.
Como curiosidade, refira-se que cerca de metade do volume da cortiça é composto de ar que se encontra alojado em poliedros estanques revestidos de resina, os quais numa casca com 8 cm de espessura poderão cifrar-se em mais de 500 milhões de células. Devido a esta particularidade, a cortiça é indispensável como isolante do som e do calor, sendo, por isso, a sua aplicação múltipla e variada. Além do mais é levíssima, estanque, sem cheiro ou sabor, é elástica, resistente, impermeável e não é tóxica. Cientificamente, a cortiça (quercus suber) não é mais do que a camada suberificada das células protectoras do córtex da árvore e resulta de um meristema secundário que se radica na periferia do caule como se se tratasse da epiderme humana.
A árvore da cortiça é, como todos sabem, o sobreiro, que só começa a produzir a partir dos 20 anos de vida, e o seu habitat natural situa-se nas regiões arenosas, de terrenos profundos e soltos, com altitudes inferiores a mil metros, sob um clima de forte insolação do tipo mediterrâneo continental caracterizado por verões secos e Invernos rigorosos. A zona de implantação do sobreiro estende-se, por conseguinte, pela bacia mediterrânica e, numa escala decrescente, os principais produtores de cortiça são Portugal, Espanha, Argélia, Itália, Tunísia e França.

Produzirmos mais de metade dos valores mundiais

A área total da produção mundial anda à volta dos 2050 milhões de hectares e o rendimento anual é da ordem dos 400 mil toneladas, cujo valor comercial atingiu no ano transacto cerca de 500 milhões de dólares: Especificamente no nosso país, a área de exploração totaliza 656.200 hectares e a produção cifra-se em valores superiores a 200 mil toneladas anuais, o que equivale a dizer que produzimos mais de metade dos valores mundiais.
Refira-se, igualmente, que um sobreiro tem uma longevidade média de 150 anos e que, normalmente, dele não se consegue extrair mais de uma dúzia de «reproduções», se bem que a partir das cinco primeiras “tiradas” a qualidade da cortiça venha a diminuir progressivamente. Em média dum “chaparro” extrai-se pouco mais de uma arroba de cortiça, dum sobreiro cinquentenário obtemos o triplo e dum octogenário mais de 15 arrobas. As árvores descascadas tomam uma cor ferruginosa devido à oxidação dos tecidos em contacto com o ar, iniciando-se imediatamente o processo de recomposição que, por força da natureza, é, apesar disso, bastante lento, visto que só dali a nove anos é que estará em condições de poder sofrer idêntica operação.
A principal aplicação da cortiça situa-se ao nível da indústria rolheira, que absorve 65% de toda a cortiça vendida, senda de primordial qualidade as rolhas de champanhe produzidas nas nossas fábricas de Santa Maria de Lamas. Além disso a cortiça aplica-se na indústria do calçado, na construção civil, na indústria automóvel, nas artes plásticas, na decoração do lar, na caça, na pesca e no desporto em geral. Ultimamente, tomando em consideração a sua baixa combustibilidade, serve para forrar os tubos de ventilação dos submarinos nucleares, para transportar isótopos radioactivos a mais de 800º C, para protecção de naves espaciais e satélites de comunicação e, inclusivamente, foi há bem pouco tempo aplicada cortiça portuguesa como isolante térmico da camada externa da nave espacial «Columbia».

Os preços da arroba baixaram assustadoramente no mercado

Acontece, porém, que um dos problemas que mais afligem os agricultores da serra algarvia é a questão do tratamento e comercialização da cortiça. Fala-se, inclusivamente, de alguns casos em que se verificam situações de pré-ruína, visto que os preços da arroba da cortiça baixaram assustadoramente no mercado, a ponto de atingirem cotações inferiores àquelas que se verificavam em 1980.
Efectivamente, enquanto há dois anos atrás os industriais pagavam 1000$00 por arroba, hoje mostram-se relutantes em oferecer ao produtor 800$00 pela mesma quantidade de matéria-prima. Em contrapartida, os honorários a despender com o aluguer da força de trabalho especializada subiram em flecha, atingindo verbas praticamente incomportáveis. Atendendo a que no Algarve a exploração suberícola se processa nas regiões da serra interior, os custos de extracção da cortiça são substancialmente agravados pelo facto de primeiramente se ter de proceder à decapagem do terreno, que pela sua morfologia se transforma numa faina árdua e onerosa. De facto, para se proceder a tal tarefa é necessário alugar alfaias mecânicas, próprias para o efeito, que cobram ao agricultor entre 1000$00 e 1500$00 escudos à hora. Acontece que a remoção do mato numa propriedade de extensão relativamente pequena nunca custa menos de 20 contos. Saliente-se que esta acção de decapagem do terreno não se processa nos mesmos moldes do Alentejo, onde o solo e plano e árido. Daí podermos afirmar que, à partida, o agricultor algarvio está em desvantagem económica relativamente ao seu vizinho alentejano.

Os salários subiram e a cotação da cortiça baixou

Quanto à contratação de mão-de-obra experimentada na arte de descascar o sobreiro, é preciso reconhecer que a sua taxa inflacionista cresceu na razão inversa dos preços que a matéria-prima atinge no mercado. E isto porque enquanto os salários subiram a cotação da cortiça baixou. Assim, nos dias que correm, um “tirador” de cortiça não ganha menos de 2000$00 por dia. A sua função, sendo a mais especializada, baseia-se numa técnica ancestral, transmitida de pais para filhos, que consiste no rigoroso manejo do machado, cuja afiada lâmina penetra, com precisão milimétrica, até ao tecido interior da árvore sem lhe provocar a mais pequena beliscadura.
Aliás, diga-se de passagem, que uma leve incisão no tronco interno provocaria a formação de nódulos que prejudicariam extraordinariamente a futura qualidade da cortiça. Por outro lado, um bom “tirador” é capaz de num dia extrair 360 kg de matéria-prima sem ferir uma única árvore. Daí resulta naturalmente a justificação para a possível exorbitância do seu vencimento.
Após a contratação do “tirador” é preciso proceder de igual modo com o “ajuntador”, cuja função se resume simplesmente ao amontoar das pranchas e canudos da cortiça em local apropriado à sua expedição. Só por isso ele ganha entre 1500$00 e 2000$00 por dia. Por outro lado, como normalmente os sobreiros se estendem por terrenos bastante acidentados, não é possível a utilização de veículos motorizados para o transporte da cortiça, pelo que se terá de colmatar esta dificuldade através da contratação do “homem da besta”. Ora, acontece que o aluguer do homem e da mula anda à volta dos 2500$00 diários. É curioso que ao animal são incorporadas cangalhas laterais que permitem a sustentação da matéria-prima. Normalmente aguenta com algumas centenas de quilos empilhados de forma especial, semelhante a uma abóbada formada por inúmeros canos de cortiça. Só através desta operação é possível descer os íngremes cerros da recôndita serra algarvia. Por vezes, a vários quilómetros de distância, aguarda a sua chegada o motorista, que por seu turno transfere a matéria-prima para os respectivos centros industriais de transformação. Para cumprir essa tarefa o camionista cobra cerca de 15$00 por arroba, fora as despesas da quilometragem que serão cobrados conforme a distância a que se situam as devidas indústrias.

As razões da preocupante baixa dos preços

No apuramento final das despesas de extracção, verifica-se que cada arroba de cortiça custa em média ao produtor cerca de 300$00. Se em 1980 o preço da arroba esteve no mercado a 1000$00, logicamente este ano, atendendo às aludidas despesas, deveria atingir os 1300$00. Mas, por incrível que pareça, oscila entre os 750$00 e os 900$00, o que equivale a dizer que o seu preço real, deduzidos os custos de extracção, é de 500$00.
Agora pergunta-se: a que se deve esta baixa dos preços? Muito naturalmente à inadmissível facilidade de importação da cortiça espanhola que, devido à sua exploração mecanizada, ao câmbio e, sobretudo, à inferior qualidade da mesma, permite atingir no mercado um preço bastante inferior ao vigente no nosso país. Porém, o pior de tudo isto é que esta cortiça, pretensamente portuguesa, é exportada para os nossos clientes do norte da Europa, que ao aperceberem-se da sua inferior qualidade acabarão por perder a confiança na nossa matéria-prima. Em contrapartida, quem ganha com isso é a Espanha, que só exporta para os países da CEE a cortiça de melhor qualidade, equilibrando com isso o seu preço menos competitivo.
Nesta conformidade, o país é duplamente prejudicado, não só internamente como no estrangeiro. Por essa razão, os agricultores do Algarve, na sua maioria, não tem mandado descascar os sobreiros, por não compensarem os preços no mercado, deixando ficar nas árvores a cortiça por mais um ou dois anos à espera de melhores dias, ou seja de melhores preços. Porém, esta disposição de vender a cortiça com 10 ou 11 anos é lesiva ao País, pois são mais dois anos que se perdem na produção, se bem que se melhore na qualidade do produto. Todavia, se os preços se mantiverem mais ou menos a este nível, a qualidade continuará a ser prejudicada pela oferta, o que em boa verdade trará a ruína a muitas casas agrícolas. Cremos mesmo que, por este andar, a cultura do sobreiro, protegida superiormente desde 1310, aquando do reinado de D. Dinis, tem tendência a ser abandonada, senão mesmo substituída por outra mais rentável.

À espera de medidas enérgicas e moralizadoras

Urge, portanto, que o Governo tome medidas enérgicas para atalhar a este estado de coisas que, obviamente, não só prejudicam quem moireja nos campos como, inclusivamente, agravam a economia do País que corre o risco de ver a sua cortiça rejeitada futuramente nos mercados internacionais.
Refira-se que o deputado pelo círculo de Beja, Dr. António Chagas, considerado especialista na matéria, expôs este problema na Assembleia da República, onde a questão mereceu da parte de alguns membros do Governo, entre eles o ministro da Agricultura e Pescas, Dr. Basílio Horta, a mais viva repulsa, a ponto de responsabilizar os industriais pela situação existente no Alentejo e no Algarve. Recorde-se que nos concelhos de São Brás de Alportel, Loulé e Tavira, nomeadamente nas regiões da Cova da Muda, Vale de Luís Netos, Estragamantens e Cachopo, produz-se a mais qualificada cortiça de toda a província do Algarve.
Ficamos, assim, a aguardar a publicação de legislação competente que permita o escoamento da produção interna e proíba os abusos oportunistas dos industriais corticeiros, que na mira de chorudos lucros prejudicam enormemente a economia nacional.


(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 18-08-1982)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O Museu e a Escola

José Carlos Vilhena Mesquita


Com imensa mágoa verifico que a maioria das escolas portuguesas não aproveita convenientemente as potencialidades culturais das áreas geográficas em que se acham inseridas. Assim, raramente os estudantes do ciclo preparatório ou das escolas secundárias fizeram uma visita de estudo aos museus, monumentos e palácios da sua área residencial, sem esquecer os passeios pelo campo, que hoje os professores já não fazem. O que é pena, pois constituem verdadeiras aulas práticas de botânica, geologia, mineralogia, zoologia, etc. Numa época em que assistimos ao crescimento avassalador de uma nova ciência como a Ecologia que, sem ser por acaso, tem congregado o interesse e a atenção dos nossos jovens, não compreendemos porque é que não se abrem as portas da escola para o campo.
O museu é, no seu próprio contexto geográfico, o mais valioso espólio do património local. Nele se deposita a memória dos nossos antepassados e através dele poderemos fazer uma verdadeira e alucinante viagem no tempo. Aí se contacta com testemunhos insubstituíveis cuja observação e estudo nos farão compreender melhor a nossa história. Porém, há que preparar convenientemente essa visita para que não nos confrontemos com situações ou peças museológicas que nada nos dizem por lhes desconhecermos o significado. Não vale a pena levar as crianças a visitar uma praça-forte sem terem previamente uma noção do que foi e em que consistiu o feudalismo.
Na verdade, jamais poderemos esquecer que os testemunhos permanecem eternamente mudos se não os soubermos interrogar e, convêm lembrar, ir ao museu não é o mesmo que ir ao supermercado. Para nele se penetrar é preciso ter cultura, que só se adquire na escola, daí que as visitas só se devam efectuar a partir de um determinado nível etário e intelectual. De contrário, a visita será contraproducente e os jovens poderão contrair a ideia de que os museus são cemitérios inúteis, tristes, aborrecidos, frios, sem alegria nem significado. Raramente lá voltarão.

A formação estética

Mas há um sector pouco explorado, ou pelo menos negligenciado, pelos nossos pedagogos no âmbito da museologia, que é a formação estético-artística dos alunos. Em parte, esta situação também se fica devendo à intrínseca desmotivação dos professores para a expressão estética. E não raras vezes se assiste a retumbantes fracassos quando os mais zelosos professores entregam os seus alunos aos cuidados de um erudito especialista que, naturalmente, não consegue adaptar o seu discurso aos parcos conhecimentos culturais dos jovens. Nessa altura, uma visita que se previa ser um êxito pedagógico transformou-se numa chachada e numa total perda de tempo. Os alunos nada perceberam do que lhes foi dito e normalmente limitam--se, em certos casos, a comentar e ridicularizar os trejeitos e o snobismo intelectual do seu ilustre cicerone. A informação cultural, por mais interessante e correcta que possa ser, deverá sempre obedecer a um esquema pedagógicos.
Por outro lado, uma visita ao museu sem ser guiada está também votada ao fracasso, já que não basta aos alunos a «liberdade da descoberta», pois que necessitam dos meios indispensáveis a essa mesma descoberta. Normalmente, os directores dos museus reprovam este tipo de actuação, visto que, sem preparação nem ordem, os alunos chegam mes mo a causar incómodos e distúrbios de vária ordem.

Organizar uma visita

Como proceder então? É simples. Toda e qualquer visita ao museu terá de ser forçosamente preparada em gabinete pelos respectivos responsáveis pedagógicos, que deverão previamente conhecer o espólio museológico e determinar as peças, conjuntos salas ou colecções que mais interessam aos seus alunos.
É fundamental que na aula anterior à visita sejam ministrados aos alunos alguns conselhos sobre o carácter do museu, algumas normas de conduta e de respeito para com a instituição e ainda algumas pistas sobre aquilo que irá ser observado. Nunca e deve privar o aluno do prazer da surpresa e do gosto pela descoberta. O jovem deve directamente contactar com o objecto ou com a obra de arte, para que sinta nisso algum prazer. Nessa altura ele descobre, regista e, sobretudo, familiariza-se com a arte e com a própria instituição.
Torna-se indispensável e até fundamental que o orientador pedagógico da turma ou da disciplina em que essa visita de estudo estiver enquadrada forneça previamente aos alunos um inquérito sobre algumas peças que eles irão descobrir no museu, assim como alguns roteiros cronológicos que possibilitarão caminhos repartidos por grupos (discretamente acompanhados pelo professor), que serão compensados pelo prazer da autodescoberta.
À entrada do museu, deve-se apresentar os alunos ao director e aos conservadores, solicitando-se depois a estes algumas breves palavras de saudação e de esclarecimento sobre os objectivos culturais da própria instituição. Os alunos sentir-se-ão respeitados e satisfeitos, para além de perceberem mais facilmente que estão em presença de um verdadeiro santuário da cultura, que facilmente se poderá transformar em laboratório de investigação histórica.
No final da visita verificaremos, através da leitura dos inquéritos, que nem sempre os melhores observadores são os melhores alunos, pois que a capacidade de análise e reflexão sobre a arte não exige, nesta idade, um «background» cultural de peso, mas antes uma forte sensibilidade, que, como se sabe, é inata. Para esses, devemos dar alguns conselhos e, sobretudo, motivá-los para que não desperdicem as suas intrínsecas inclinações artísticas, de que poderão vir a colher no futuro um glorioso sucesso.

Nas aulas seguintes

Se possível, nas aulas seguintes deverá abrir-se um debate sabre a importância dos museus, a sua necessidade, o seu interesse e ainda sobre o valor de algumas peças nele expostas, as quais poderão eventualmente ser confrontadas com outras da mesma espécie, através da projecção de «slides» ou de gravuras. Veremos que dessa discussão surgirão opiniões interessantíssimas que convirá registar e até, se possível, publicar no jornal da escola. A elaboração de uma reportagem por um grupo de trabalho acerca da visita e da integração do museu na escola seria um exercício complementar da mais elevada importância pedagógica e a sua publicação ou divulgação pública tornar-se-ia imprescindível.
Enfim, aqui está sumariamente a fórmula ideal para a concretização de uma visita de estudo ao museu da nossa localidade, que facilmente se pode adaptar a outros tipos de visitas, como aos monumentos ou ao campo. A posição do professor pode ser activa ou discreta, mas sempre acompanhando os seus alunos, prestando-lhes informações e esclarecimentos que estes registarão no seu bloco de apontamentos. Um relatório final e o preenchimento de um inquérito serão importantes ferramentas pedagógicas para a boa formação estético-artística e histórico-cultural do aluno.
Resta-nos apenas esperar que na província, onde existem dos mais maravilhosos museus do País, se tornem as visitas culturais numa prática corrente das escolas.


(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 12 de Janeiro de 1984)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Algarve precisa de mais museus que falem do seu histórico passado


José Carlos Vilhena Mesquita

A província do Algarve, expoente máximo do turismo nacional, não pode, infelizmente, orgulhar-se de possuir muitos e variados museus, pese embora o seu passado histórico se encontre vincadamente perpetuado nos inúmeros testemunhos arqueológicos deixados pelos povos oriundos das grandes civilizações mediterrânicas.
Saliente-se que a museologia no Algarve nasce, por via de regra, da iniciativa particular e fundamenta-se na doação de colecções pertencentes a comprovincianos obviamente dotados de marcante espírito científico e altruístico. O primeiro exemplo partiu do arqueólogo Estácio da Veiga que em vão pretendeu criar o Museu Arqueológico do Algarve, com sede em Faro. No entanto, grande parte do espólio recolhido aquando das escavações que efectuara para a Carta Arqueológica do Algarve (1878-1883) foi recuperado por Monsenhor Joaquim Maria Pereira Botto, que, a 4 de Março de 1894, fundou na capital desta província o «Museu Archeologico e Lapidar Infante D. Henrique» designação essa que ainda hoje conserva.
Em Lagos, idêntica iniciativa se ficou a dever ao José Formosinho, que nesta cidade erigiu o que pode considerar-se, sem exagero, o segundo melhor museu em todo o Algarve.
Quanto a Vila Real de Santo António, beneficiou da oferta feita, pelo genial xilogravurista Manuel Cabanas, que foi deputado à Assembleia Constituinte, de uma. valiosa colecção de gravuras esculpidas pelo seu punho. Mais recentemente em Moncarapacho, o rev. P. Isidoro Domingos da Silva, sacerdote da mais elevada formação eclesiástica, e o Dr. José Fernandes Mascarenhas, escritor e investigador de reconhecido mérito, ofereceram à sua paróquia duas notáveis colecções, uma de Arte Sacra e outra de Arqueologia, capazes de fazer inveja a qualquer museu do nosso país.
Oficialmente, no Algarve apenas estas localidades possuem um museu de que possam orgulhar-se, com especial destaque para Faro onde podem ainda ser visitados os museus Etnográfico, Marítimo e Antonino.

Museu de Moncarapacho, a concretização de um sonho já antigo

Desta vez, porém, falaremos apenas do Museu Paroquial de Moncarapacho, inaugurado há pouco mais de um ano.
Fundada em 19 de Junho de 1471, pelo então bispo de Silves, D. João de Melo, a freguesia de Moncarapacho possui vestígios de ocupação muito remota, pois nela foram postos a descoberto vários testemunhos pré-históricos, como é o caso de cilindros totémicos de configuração antropomórfica; ídolos neo-eneolíticos e inúmeros artefactos pertencentes a povos metalúrgicos do período neolítico. Posteriormente, ali deixaram assinalada a sua passagem Romanos, Visigodos e Árabes, todos eles representados nas galerias do museu.
Muito embora a ideia da fundação deste museu fosse uma velha aspiração da freguesia, o certo é que foi necessário aguardar pelas comemorações do seu quinto centenário para, definitiva e oficialmente, se encarar com optimismo a concretização deste justo e merecido sonho. Como atrás referi, a iniciativa partiu de dois beneméritos, o padre Isidoro Domingos da Silva e o Dr. José Fernandes Mascarenhas, o primeiro detentor da riquíssima colecção de arte sacra (a que atrás aludi), e o segundo de um não menos notável espólio arqueológico. Refira-se que ambas as colecções foram avaliadas em milhares de contos aquando da inauguração no ano passado, no dia 12 de Julho, do museu que pode assim considerar-se um dos mais importantes museus paroquiais do País.
Por estranho que pareça, desde o lançamento da primeira pedra, que marcou o início da construção do edifício, em Setembro de 1971, até à sua inauguração em Julho de 1981., foram dez anos de canseiras e impedimentos diversos que quase fizeram perigar a sua. Concretização, não fosse a vontade indómita dos seus beneméritos fundadores.
O edifício, modesto de proporções mas sóbrio de linhas, encontra-se adstrito à secular Capela de Santo Cristo onde, segundo reza. a história, muitos prodígios e milagres se registaram ao longo dos últimos cinco séculos.

Como as pratas algarvias «viajaram» até Baiona

A ancestral ermida, cuja construção remonta ao ano de 1632, encontra-se esplendorosamente revestida de azulejos policromos datados de 1663, provenientes de Lisboa, possivelmente de uma das 12 mais importantes olarias que na cidade então existiam.
Por altura das invasões francesas, os soldados de Junot, como represália pela derrota sofrida junto à ponte de Quelfes, assaltaram a indefesa freguesia de Moncarapacho não escapando ao saque os valiosos objectos e alfaias de culto existentes na vetusta Capela de Santo Cristo. A maior parte do espólio, criminosamente obtido, pode apreciar-se, ainda hoje, em alguns museus da França, nomeadamente no de Baiona, que não esconde inclusivamente a proveniência moncarapachense das suas peças de prata.
Enfim... coisas da História que, por tristes e ignóbeis, nos escusamos de recordar. Seja como for, na sua idoneidade e no barroquismo da sua talha, a capela de Santo Cristo não poderia ter melhor aproveitamento do que aquele que o povo de Moncarapacho lhe acaba de dar, ao transformá-la em Museu.
Mas penetremos no edifício. este núcleo museológico divide-se em dois grandes sectores: o da Arqueologia e o da Arte Sacra. O primeiro encontra-se instalado no pavimento inferior do edifício e compõe-se sobretudo de artefactos paleolíticos, de cerâmica calcolítica e de várias peças epigráficas, heráldicas e numismáticas pertencentes às épocas da ocupação romana e árabe. Assumem particular destaque um enorme vaso árabe destinado a ablações religiosas, várias lápides epigráficas islâmicas que o Dr. Garcia Domingues tem estado a decifrar, dezenas de ânforas romanas e tubas árabes, alguns; cipos sepulcrais e marcos miliários; com especial destaque para aquele que o Dr. José Fernandes Mascarenhas identificou como sendo o que assinalava a estrada de Ossónoba a Balsa. Além de tudo isto, podem ainda observa-se inúmeras peças de inegável valor museológico, como uma colecção de lucernas, algumas cornijas arquitectónicas, capitéis coríntios de belo talhe, um túmulo romano em perfeito estado de conservação, lápides; taças, pratos e múltiplas peças de cerâmica provenientes da estação arqueológica romana de Alfanxina, situada nos arredores da freguesia de Moncarapacho.

Valioso presépio do séc. XVIII é peça de interesse nacional

No andar superior está reunida a colecção de arte doada pelo rev.º P.e Isidoro Domingos da Silva, merecendo especial referência um valioso presépio napolitano considerado de interesse nacional, datado do século XVIII, presumivelmente anterior à escola de Machado de Castro, e que pertenceu ao magnata da indústria conserveira, Júdice Fialho. Refira-se que só existe um presépio semelhante no Museu de São Paulo, no Brasil, coevo deste e possivelmente importado da mesma origem por algum português emigrado em terras de Vera Cruz.
O prior Isidoro da Silva adquiriu este presépio a uma freira que se encontrava no orfanato de Santa Isabel, em Faro, e que, atendendo ao confrangedor estado de degradação em que a peça se encontrava, preferiu vendê-la a quem se propunha restaurá-la e conservá-la num museu. Posteriormente, seguiu para o Museu de Arte Antiga, onde se procedeu ao seu gracioso restauro. Regressado ao Museu de Moncarapacho, foi logo considerado como peça de interesse público, já que, na Europa, não há notícia de existir nenhum outro que se lhe assemelhe ou equipare em grandeza e majestosidade artística.
Mas não é só este famoso presépio napolitano que merece a nossa visita atenta e demorada ao Museu de Moncarapacho. Outras peças ali existem de incomensurável valor artístico, nomeadamente um valioso calvário lavrado em marfim e pau-santo do século XVI em estilo indo-português; dezenas de imagens sacras, algumas delas com séculos de existência, recolhidas nas imediações do concelho de Olhão; e ainda alfaias, panejamentos e objectos de culto religioso; além de ricas colecções de cálices, custódias e moedas de valor incalculável; peças de mobiliário, com especial destaque para uma bonita arca setecentista do reinado de D. João V; quadros de interesse regional como os assinados por Bernardo Marques e Henrique Pousão; fotocópias de documentos que atestam o heroísmo do povo olhanense frente às tropas invasoras de Junot; animais embalsamados e toda uma série de pequenas peças de interesse não só artístico como etnográfico.
Em suma, um museu repleto de muita coisa valiosa e rara, à mistura com peças, talvez de pouca importância museológica, mas de inegável valor decorativo. Não obstante isso, gostamos francamente da secção de Arqueologia, que nos pareceu bem ordenada se atendermos à exiguidade do espaço a ela destinado. Além disso, não podemos deixar de salientar a imponência que esse deslumbrante presépio napolitano assume no meio do vasto espólio artístico, aqui e ali marchetado por imagens sacras, algumas de sabor popular a atestar a sua ancestralidade.
Para terminar, cumpre-nos assinalar a carência de um funcionário, a tempo inteiro, que sirva de cicerone aos eventuais visitantes, e, especialmente, de um catálogo ou guia interno do Museu, no qual se discrimine a função e importância de cada uma das peças ali expostas. Isto para não falar já da inexistência dos tradicionais postais e diapositivos reproduzindo as peças de maior valor e que, vendendo-se normalmente à entrada dos museus, não só contribuem para a divulgação da cultura e do património local, como contribuem também para a amortização das graves dificuldades financeiras que se vivem em instituições deste género.
Apenas a título de curiosidade, direi ainda que a entrada é grátis.

(artigo publicado no «Diário de Notícias» de 7-09-1982)