José Carlos Vilhena Mesquita
A lendária aldeia de Moncarapacho, pertencente ao concelho de Olhão, cuja origem se perde na longa noite dos séculos, pode orgulhar-se de possuir o mais belo pórtico renascentista de todo o Algarve. A sua beleza, associada à perfeição do estilo, rivaliza muito de perto com a extraordinária fachada da Misericórdia de Tavira, obra primorosa desse obscuro arquitecto que foi André Pillarte, a quem alguns estudiosos quiseram, igualmente, outorgar a autoria do pórtico de Moncarapacho. Pessoalmente, discordo dessa hipótese, visto que nessa altura aquele artista encontrava-se ainda na cidade do Gilão, a completar a sacristia, a casa dos despachos, e outras dependências pertencentes ao referido templo da Misericórdia. Mas isso são questões muito mais complicadas e que não cabem nesta pequena nota de carácter divulgativo, que tem apenas por objectivo chamar a atenção dos leitores para a riqueza do património cultural algarvio.
Assim, a igreja matriz de Moncarapacho, de cujo pórtico iremos falar, data da segunda metade do século XVI, e nesse mesmo local existiu em tempos uma simples capela romano-gótica, que, no século XV, cedeu o seu lugar a um mais amplo edifício da invocação de Santa Maria da Graça, cuja transformação e ampliação ocorreria um século depois, facto esse que facilmente se constata no interior do templo. As razões que motivaram esta adulteração prendem-se, por certo, com o crescimento económico e demográfico da freguesia, que através da construção de tão majestoso templo pretenderia, talvez, demonstrar o seu progressivo florescimento.
Largos rendimentos
Por outro lado, a devoção dos seus habitantes por Santa Maria da Graça originou a legação de avultados cabedais e propriedades aforadas, que por morte deixavam àquela igreja. Daí resultaram largos rendimentos, que se empregaram na ampliação do templo para o seu actual aspecto, assim como permitiram a aquisição de ricas alfaias, paramentos e belíssimas imagens, algumas delas hoje recolhidas no magnífico museu paroquial daquela freguesia.
Não esqueçamos, também, que para aqui vieram residir algumas famílias nobres que se haviam distinguido nas ferozes batalhas do Norte de África e na dura epopeia dos Descobrimentos. Este facto constituiu mais uma das razões do crescimento económico e populacional da freguesia. A título de exemplo, citaremos os solares, alguns deles já desaparecidos, dos Corte-Reais, dos Sárrias ou Sarres e Mendonças, dos Pessanhas, dos Tripauxos e de várias outras famílias de que já não reza a História.
Mas, descendo ao pormenor, devemos acrescentar que a fachada desta igreja deverá datar de 1551, e o seu estilo, como já afirmei, é nitidamente renascentista. E muito lamentamos que o Prof. Albrecht Haupt, considerado como suprema autoridade no renascentismo português, não tivesse conhecido este belo pórtico, pois que dele, por certo, iria tecer as mais favoráveis considerações, comparando-o, muito provavelmente, com outros da mesma espécie que gozam de maior fama.
Na verdade, a monumentalidade deste pórtico, associada à beleza escultórica dos soldados romanos vigiando, cenas da paixão de Cristo, encimadas pela imagem da Virgem sob um formoso baldaquino, no qual o Arcanjo Gabriel a saúda chamando-lhe «Cheia de Graça», levou o Dr. José Fernandes Mascarenhas, dedicado estudioso moncarapachense, a designá-lo de «arco de triunfo do velho e novo testamento em pedra».
A porta apresenta-se em arco de volta perfeita, despido de elementos decorativos, ladeado por duas pilastras, ornadas por elementos naturais estilizados, videiras, loureiros, heras e outros vegetais, desenvolvidos num espiral ascendente. Na base das pilastras vêem-se dois bustos em baixo relevo já muito desgastados. Os capitéis são jónicos e os ábacos emoldurados apresentam-se pouco ortodoxos. Os frisos interiores acham-se decorados em cada métopa com cenas da prisão e sacrifício de Cristo, vendo-se em pormenor alguns puxando cadeias ou empunhando chicotes de suplício. A arquitrave também se encontra decorada com elementos naturais, folhas de abacante e outras, em desenvolvimento horizontal. Na parte superior da cornija encontra-se uma espécie de frontão trapezoidal, ladeado pelas estátuas de S. Pedro e de S. João, tendo ao centro uma clarabóia circular, que talvez pretendesse imitar uma rosácea. Ao cimo, um baldaquino do tipo gótico, dentro do qual se acha a imagem de Nossa Senhora da Graça, que parece aguardar a chegada do anjo Gabriel, que está ao seu lado esquerdo.
Mescla de estilos
Contudo, o interior do edifício é uma mescla de Gótico e de Renascença, motivado pelas frequentes alterações de que foi alvo ao longo dos séculos. O arco da capela-mor data de 1581, e em estilo renascentista, assim como a abóbada terminal da nave do Evangelho. São também visíveis as reminiscências romano-góticas nos cunhais das cabeceiras, o que demonstra uma diferença de alturas, em tempos existente, entre as naves central e laterais. Observam-se também várias nervuras góticas nas capelas do Senhor dos Passos, de Santo António e das Almas. São igualmente góticos os arcos e as nervuras da capela do Calvário e por detrás da capela-mor vêem-se ainda as mísulas que possivelmente sustentavam a primitiva abóbada da abside gótica. Da ancestral ermida, provavelmente contemporânea da Sé de Faro, ainda permanecem visíveis um capitel e três bocetes de singela feitura.
À parte os elementos arquitectónicos, são ainda dignas de especial referência as pinturas do retábulo da Capela das Almas, representando o Purgatório, as da Capela do Calvário, onde se vê S. Gregório Magno que tem por insígnia um livro de música, e as da Capela de Santo António, cujas pilastras do arco frontal são de uma beleza rara. Os azulejos polícromos que recobrem as paredes destas capelas datam do século XVII e são esplendorosamente belos. O púlpito de pedra tem a forma de cálice, com uma copa octogonal, decorado com pinturas iguais às dos arcos da igreja, datadas do século XVIII.
Algumas das peças de estatuária desta e de outras igrejas encontram-se hoje a recato no magnífico Museu Paroquial, obra de dois grandes beneméritos locais, ao qual nestas mesmas colunas demos em tempos o devido destaque.
(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 10 de Julho de 1983)