José Carlos Vilhena Mesquita
A pesca da baleia no litoral
algarvio foi, a par da pesca do coral, uma das primeiras a serem desactivadas,
pertencendo por isso, e de há longa data, às chamadas “pescarias históricas”.
Contudo, temos hoje plena certeza de que a sua efectividade nos mares do
Algarve ascende a tempos muito remotos.
Desde as colonizações fenícias,
cartaginesas, grega, romana e árabe que existem provas arqueológicas, e até
descrições narrativas, duma intensa actividade na captura de cetáceos para lá
das portas de Hercules, ou seja, nas costas do Algarve-Andaluz. A sua
importância económica foi, certamente, relevante. Por isso, a captura daquele
cetáceo constitui um exemplo a reter na análise dos forais de Silves, Tavira,
Faro e Loulé, visto que os citados monarcas reservavam para si os direitos da
baleação.[1]
Isto prova que a pesca da baleia continuava a processar-se com regularidade e,
por certo, de forma bastante rendível, pois de contrário não teria sido alvo
dos interesses da Coroa. Esta constatação serve também para evidenciar que,
após a conquista do Algarve e a unificação do território nacional, continuou a
incentivar-se a navegação de altura, cujo alcance se estendia pelo sudoeste
atlântico, visto serem estes os domínios naturais da pesca da baleia.
Cerro da Vila, povoação piscatória romana, em Vilamoura |
Mas se aqueles forais dizem
respeito às principais urbes do Algarve, poderia deduzir-se que este tipo de
pesca se confinava aos centros mais populosos e habitados pelos antigos
mareantes árabes, cuja experiência de alto mar justificaria o elevado
rendimento do sector. Todavia, parece não ser assim. Os algarvios, do ponto de
vista antropológico, são fruto da miscigenação de várias raças e culturas indo-europeias,
que ao longo dos séculos se cruzaram na grande estrada mediterrâneo-atlântica. O
seu legado foi muito vasto e a herança tecnológica ficou patente no
aproveitamento dos recursos hidrológicos e na agricultura, na mineração e na metalurgia,
nas indústrias da olaria e da cerâmica, na olivicultura, nos linifícios, nas
cordoarias e espartos, na tecelagem e tinturaria, na vinicultura e alcoólase, nas
artes decorativas, na música, na poesia, na arquitectura e em todas as circunstâncias
dependentes do génio inventivo. Desta mesclagem genética resultou o espírito e
o carácter do povo algarvio, inclinado para o desfrute e sabor da vida.
Não obstante a sua herança antropológica,
o Algarve é essencialmente uma região marítima, com uma importância
geo-estratégica incontornável. A sua configuração geográfica tornou-o, desde
tempos imemoriais, num amplo cais de acostagem. Os algarvios são homens
modelados pelo mar, pois que até nas pequenas povoações costeiras se
desenvolveu desde sempre uma intensa actividade piscatória. E a baleia seria um
dos seus alvos preferências. Repare-se nos forais de Castro Marim (tanto o de
1277 como o de 1282),
Aljezur (1280), Cacela (1283) e Porches (1286), todos
eles relativos a pequenos concelhos do litoral, nos quais os “direitos da
baleação” se continuavam a reservar para o monarca.[2]
E não cremos que D. Dinis, ao exarar esta cláusula nos citados forais,
estivesse apenas a copiar uma determinação dos antigos diplomas de seu pai
outorgados por volta de 1266, pois que, duas décadas decorridas, deve ter sido
informado de que a pesca da baleia constituía uma actividade comum a todo o
litoral algarvio. Nesta experiência da faina de alto mar consubstanciavam-se
algumas das razões que explicam a presença do Algarve no contexto dos
Descobrimentos.[3]
Foral de Aljezur, pergaminho original |
Muito embora
a pesca da baleia fosse, em número de capturas, progressivamente diminuindo ao
longo dos anos, registaram-se, contudo, algumas tentativas régias para a sua
protecção e incremento económico. Insere-se, neste caso, o diploma de D. Afonso
IV, datado de 28-9-1340, através do qual se arrendaram ao mercador Afonso
Domingues todas as baleações do reino pelo espaço de seis anos. Durante este
período a coroa forneceria àquele rendeiro 60 moios de trigo de Beja ou de
Serpa e 64 alqueires das salinas de Faro, que se destinavam à conserva da
baleia, ficando as famílias dos pescadores sob a protecção real.[4]
Suponho que terá sido este o primeiro arrendamento da baleação do reino.
No Algarve os baleeiros
mantinham-se em laboração durante todo o ano e apenas sujeitos aos respectivos
tributos foraleiros. A importância desta pesca no comércio algarvio do século xv deve ter sido bastante
significativa, nomeadamente nos anos de escassez de trigo, pois da sua permuta
por carne e óleo de baleia dependia a sustentabilidade de muitas comunidades
piscatórias:
«No
reinado do Senhor D. Afonso IV, era hum objecto mui attendivel da nossa
industria nacional a Pescaria da Balêa feita nas costas do Algarve, porque de
huma Carta de desaggravo daquelle soberano dirigida ao concelho de Tavira no
1.º de Setembro de 1352 consta que em Porto Novo morrião Balêas, e que vinhão
almocreves carregallas para fóra a troco de trigo».[5]
Esta situação – permutação de
pescado por trigo – vai repetir-se constantemente, sendo, por isso, um exemplo
de economia de mercado, visto que os excedentes produtivos do Algarve, pelo seu
valor e procura, eram transaccionados por mercadorias de primeira necessidade.
Por outro lado, também se demonstra que a produção cerealífera no Algarve era,
e foi sempre, deficitária.
Por conseguinte, as pescarias
algarvias contribuíam para o crescimento das transacções comerciais e para o
abastecimento do seu mercado interno, com especial acuidade nas épocas de crise
agrícola.
Selo pendente do Rei D. Dinis |
A intensidade do movimento
comercial marítimo nos portos algarvios era de tal forma cobiçada pelo corso
marroquino que tanto D. Dinis como D. Afonso IV proveram a vigilância destas
águas com:
«huma
Esquadra de guarda-costa de três Galés e cinco navios grandes para protecção do
Commercio maritimo, que era então grande, principalmente em pescarias, tanto
das Provincias do Norte de Portugal, como do Algarve, das quaes se provia o
Reino todo, e se exportavão grandes quantidades deste genero para os Paizes
estrangeiros, dentro e fóra do Mediterrâneo».[6]
Entre as pescarias, que
sustentavam o comércio internacional e os interesses dos empresários
estrangeiros, integrava-se a da baleia, embora se notasse já uma sensível
decadência no índice das capturas.
Como reflexo do
desenvolvimento das pescarias, e sobretudo do comércio externo, era franco e
notório, pelo menos desde o século XIV, que o porto de Tavira se distinguia
claramente dos restantes:
«admitia
navios de alto bordo, o seu comércio era florescente e avantajado e só para ele
havia mais de setenta navios de alto bordo, propriedade de seus habitantes, e
que navegavam para diversos portos, além de um crescido número de embarcações
costeiras e de pesca».[7]
Gravura de 1577 representando a pesca da baleia |
Certamente, muitos desses navios de “alto bordo” caçavam a
baleia de parceria com os de Lagos, que na época eram os principais centros da
navegação do alto. Na verdade, «onde se fazia a maior baleação era na praia da
Senhora da Luz, perto de Lagos, e Porto Novo, pouco distante de Tavira, a qual
sustentava 70 barcos, além de muitas embarcações de alto bordo».[8]
Deveria ser intensa a
procura deste cetáceo nas águas algarvias, especialmente na costa de Lagos, a
cujos baleeiros se concederam certos privilégios em reconhecimento da
importância económica dessas pescarias. Demonstra-o a carta de confirmação de
D. Pedro I, datada de 29-3-1359, sobre os antigos privilégios dos “maiorais da
baleação”, cujos pormenores não discrimina e, por isso, os desconhecemos. [9]
A pesca da baleia
prolongou-se pelo reinado de D. Fernando e exercia-se tanto na costa do Algarve
como nas do Alentejo e Estremadura.[10]
Data dessa época uma carta Regia, de 20-11-1367, na qual aquele monarca ordena:
«os
almoxarifes de Lagos e Tavira dessem ao Bispo e Cabido da Sé de Silves, a cada
um, uma carga de besta cavalar – dez arrobas – metade gorda e metade magra, por
cada baleia ou cavalasso que morresse nas costas do Algarve por conhecença,
como já seu pai e avô tinham feito».[11]
Gravura antiga de Cachalote, espécie muito comum nas águas dos Açores |
O último testemunho
comprovativo da permanência no Algarve da pesca da baleia, ainda que de forma
esporádica, remonta ao reinado de D. João I, que, a 15-5-1386, deu ao seu
anadel-mor dos besteiros, Estevão Vasques Filipe, as rendas e direitos da
baleação de Lagos, acrescentadas das dízimas das mercadorias estrangeiras
alfandegadas naquela vila.[12]
Deste breve apontamento se
pode concluir que até ao final do reinado do Mestre de Avis os baleeiros
lacobrigenses mantiveram-se ainda activos nas perseguições daquele cetáceo. As
notícias que temos sobre este tipo de pescaria – exercida desde longa data no
Algarve – não ultrapassam o século XIV, sendo de presumir que por essa altura
as baleias se tenham afastado desta costa, pelo menos no número e intensidade
de outrora, desactivando-se a partir daquela centúria a sua captura.
[1] Vide Alberto Iria, Descobrimentos
Portugueses, 2 volumes, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1956, Vol. II,
Tomo I, p. 209.
[2] Idem, Idem, vol. II, Tomo I, p. 210.
[3] Cf. Idem, «A Tradição
Marítima no Algarve anterior às navegações do século xv e depois ao serviço do Infante D. Henrique», in Las
Ciencias, Madrid, Ano XI, n.º 3, p. 599 e ss.
[4] Idem, O Algarve e os
Descobrimentos, vol. II, tomo I, pp. 214-215; Vide João Martins da Silva
Marques, Descobrimentos Portugueses,
vol. I, doc. 63, p. 64.
[5] Constantino Botelho de
Lacerda Lobo, «Memoria sobre as Pescarias em Portugal», in Jornal de Coimbra,
Lisboa, 1812, p. 82.
[6] Inácio da Costa Quintela, Annaes
da Marinha Portugueza, tomo I, Lisboa, 1839, pp. 21-22.
[7] Damião Augusto de Brito
Vasconcelos, Noticias Históricas de Tavira (1242-1840), Lisboa, Liv.
Lusitana, 1937, p. 121.
[8] Idem, Idem, p. 139.
[9] ANTT, Chancelaria de D. Pedro
I, Liv. 1.º, fl. 35 v.º; apud João Martins da Silva Marques, op. cit., vol. I, doc. 92, p. 110.
[10] Cf. Constantino Botelho de
Lacerda Lobo, op. cit., p. 82.
[11] Damião A. B. Vasconcelos, op. cit., p. 139; Vide Alberto Iria, op. cit., vol. II, tomo I, p. 218.
[12] ANTT, Chancelaria de D. João
I, Livro 2.º, fl. 27 v.º; vide J. M. Silva Marques, op. cit., Suplemento ao vol. I,
doc. 49, p. 68.